sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Gente Pobre - 35. Venha já, suplico-lhe! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


35.




15 de setembro



Meu querido Makar Alexeievitch



Estou numa excitação terrível. Ouça o que me sucedeu. Tenho o pressentimento de uma fatalidade. O meu bom amigo atenda e julgue: o Sr. Buikov está outra vez em S. Petersburgo! 

A Fédora encontrou-o. Ele ia de carro, reconheceu-a, mandou logo parar, dirigiu-se a ela e perguntou-lhe onde morava. A Fédora, claro, não lhe disse. Então ele, com um sorriso, deu a entender que sabia quem vivia com ela. (Deve ter sido Ana Fedorovna que lhe contou tudo.) Ao ouvir aquilo, Fédora ficou furiosa e insultou-o ali mesmo, na rua, dizendo-lhe que ele era um imoral e o único causador das minhas desgraças. Então ele respondeu-lhe que quem não possui um kopek é por força um desgraçado. A Fédora replicou-lhe que eu ganho bem a vida com o meu trabalho, e que posso casar-me ou arranjar um emprego; mas que perdi a felicidade para sempre, que estou muito doente e pouco durarei. 

Buikov observou que, apesar de muito jovem ainda, parecia ter perdido o juízo e que as minhas boas qualidades se tinham turvado um pouco (foram exatamente estas as suas palavras). 

Tanto eu como Fédora julgávamos que ele ignorava a nossa morada; mas ontem, enquanto fui ao Gostini Dvor fazer umas compras, ele veio a nossa casa. Pelo visto, não queria encontrar-se aqui comigo! Começou por fazer a Fédora uma série de perguntas acerca da vida que levávamos, reparando em tudo com muita atenção, até nos meus trabalhos. De súbito, por fim, perguntou: 

— Quem é esse funcionário vosso amigo? 

Precisamente, daquele instante, o senhor atravessava o pátio e Fédora mostrou-o. Ele espreitou da janela e em seguida desatou a rir. Fédora convidou-o a ir-se embora, dizendo-lhe que eu não estava muito boa de saúde por causa dos desgostos, e não me seria muito agradável encontrá-lo ali quando regressasse. Mas ele, sem dar qualquer resposta, conservou-se calado por um bocado e acabou por declarar que fora ali por ir , pois não tinha nada que fazer. Por fim, quis, a toda a força, dar à Fédora vinte e cinco rublos, que ela, claro, não aceitou.

Que quererá dizer tudo isto? Porquê e para quê terá ele vindo a nossa casa? Não sei como conseguiu saber tudo o que se relaciona conosco. Perco-me em conjeturas. 

Diz a Fédora que Aksina, sua cunhada, a qual nos visita de vez em quando, é muito bem dada com Nastásia, a lavadeira, e esta tem um primo empregado no mesmo escritório em que trabalha um dos mais íntimos amigos de Ana Fedorovna. Não terão, por essa via, chegado aos seus ouvidos todas essas intriguices? Não sabemos o que pensar. Será capaz de voltar cá? O simples pensamento de que tal venha a acontecer me revolta! Quando, ontem, a Fédora me contou o que se passara, fiquei tão assustada que ia desmaiando de angústia. Que quererá de mim esse homem? Se eu não quero saber dessa gente para nada! Que têm eles comigo? Ai, se soubesse a ansiedade em que vivo! Parece-me, a cada momento, ver Buikov na minha frente. Que há de ser de mim? Que mais me reservará o destino? 

Por amor de Deus, venha cá o mais breve possível, peço-lhe, Makar Alexeievitch! Venha já, suplico-lhe!






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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