quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Dia Seguinte (XVI)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XVI

O DIA SEGUINTE

He turn’d his lips to hers, and with his hand 
Called back the tangles of her wandering hair.

DON JUAN, C. I, est. 170




FELIZMENTE, PARA A GLÓRIA DE JULIEN, a sra. de Rênal ficara por demais agitada, por demais espantada, para perceber a tolice do homem que num instante tornara-se tudo no mundo para ela. 

Instava-o a retirar-se, ao ver despontar o dia: 

– Oh! Meu Deus, dizia, se meu marido ouviu um ruído, estou perdida. 

Julien, que tinha tempo de compor frases, lembrou-se desta: 

– Lamentaria perder a vida? 

– Ah! Muito, neste momento! Mas não lamentaria ter conhecido você. 

Julien achou que convinha à sua dignidade retirar-se, de propósito, com imprudência e à luz do dia. 

A atenção contínua com que estudava suas menores ações, na ideia insana de parecer um homem experiente, só teve uma vantagem; quando tornou a ver a sra. de Rênal no almoço, sua conduta foi uma obra-prima de prudência. 

Quanto a ela, não podia olhar para ele sem corar intensamente, e não podia ficar um instante sem observá-lo; percebia a perturbação dele, aumentada pelos esforços para ocultá-la. Julien levantou os olhos somente uma vez para ela. Primeiro, a sra. de Rênal admirou sua prudência. Logo, vendo que esse único olhar não se repetia, ficou alarmada: Será que não me quer mais? pensou. Ai, sou muito velha para ele, tenho dez anos mais que ele. 

Ao passar da sala de jantar para o jardim, ela apertou a mão de Julien. Na surpresa que lhe causou uma prova de amor tão extraordinária, ele a olhou com paixão, pois ela lhe parecera muito bonita durante o almoço e, embora ele baixasse os olhos, passara o tempo a imaginar seus encantos. Esse olhar consolou a sra. de Rênal; não lhe tirou todas as inquietudes, mas suas inquietudes tiravam-lhe quase todo o remorso em relação ao marido. 

No almoço, este nada percebera; o mesmo não aconteceu com a sra. Derville: ela julgou a sra. de Rênal na iminência de sucumbir. Durante todo o dia, sua amizade ousada e incisiva não deixou de mostrar, em meias palavras e sob cores medonhas, o perigo que a outra corria. A sra. de Rênal ansiava por ficar sozinha com Julien; queria perguntar-lhe se ainda a amava. Apesar da doçura inalterável de seu caráter, esteve várias vezes a ponto de dar a entender à amiga o quanto esta era importuna. À noite, no jardim, a sra. Derville arranjou as coisas de tal modo que se colocou entre a sra. de Rênal e Julien. A sra. de Rênal, que fizera uma imagem delicio​sa do prazer de apertar a mão de Julien e de levá-la a seus lábios, não pôde sequer dirigir-lhe uma palavra.

Esse contratempo aumentou sua agitação. Estava devorada por um remorso. Repreendera tanto a Julien pela imprudência de ir a seu quarto na noite anterior que temia que ele não fosse, nesta. Deixou bastante cedo o jardim e foi recolher-se no quarto. Mas, não contendo a impaciência, veio colar o ouvido contra a porta de Julien. Apesar da incerteza e da paixão que a devoravam, não ousou entrar. Esse ato parecia-lhe a última das baixezas, pois serve de tema a um ditado da província. 

Os criados estavam todos deitados. A prudência obrigou-a finalmente a voltar a seu quarto. Duas horas de espera pareceram dois séculos de tormentos. 

Mas Julien era muito fiel ao que ele chamava o dever para deixar de executar ponto por ponto o que se prescrevera. 

Quando soou uma hora, ele saiu de mansinho de seu quarto, certificou-se de que o dono da casa dormia profundamente e entrou no quarto da sra. de Rênal. Nessa noite, encontrou mais felicidade junto da amante, pois pensou menos constantemente no papel a desempenhar. Teve olhos para ver e ouvidos para ouvir. O que a sra. de Rênal lhe disse de sua idade contribuiu para dar-lhe uma certa tranquilidade. 

– Ai! Tenho dez anos mais que você! como pode me amar?, ela repetia sem motivo, e porque essa ideia a oprimia. 

Julien não compreendia esse desgosto mas viu que era real, e esqueceu quase todo o seu temor de ser ridículo. 

A ideia tola de ser visto como um amante subalterno, por causa de seu nascimento obscuro, desapareceu também. À medida que seus transportes tranquilizavam sua tímida amante, esta readquiria um pouco de felicidade e a capacidade de julgar Julien. Nessa noite, felizmente, ele não tinha aquele ar fingido que fizera do encontro da véspera uma vitória, mas não um prazer. Se ela tivesse notado sua preocupação em desempenhar um papel, essa triste descoberta lhe teria tirado para sempre toda a felicidade. Ela não teria podido ver nisso outra coisa senão um triste efeito da desproporção das idades. 

Embora a sra. de Rênal jamais tivesse pensado nas teorias do amor, a diferença de idade é, depois da de fortuna, um dos grandes lugares-comuns das pilhérias de província, sempre que se fala do amor. 

Em poucos dias, entregue ao ardor de sua idade, Julien sentiu-se perdidamente apaixonado. 

É preciso convir, ele pensava, que ela tem uma bondade de alma angélica, e é impossível ser mais bonita. 

Ele perdera quase inteiramente a ideia do papel a desempenhar. Num momento de abandono, confessou a ela inclusive todas as suas inquietudes. Essa confidência levou ao auge a paixão que ele inspirava. Então não tive rival feliz!, pensava a sra. de Rênal com delícias. Ousou interrogá-lo sobre o retrato pelo qual demonstrara tanto interesse; Julien jurou-lhe que era o de um homem. 

Quando tinha bastante tranquilidade para refletir, a sra. de Rênal não se refazia do espanto de que tal felicidade existisse, sem que dela jamais suspeitasse. 

Ah!, dizia-se, se eu tivesse conhecido Julien dez anos atrás, quando ainda podia ser considerada bonita!

Julien estava muito distante desses pensamentos. Em seu amor havia ainda ambição; era a alegria de possuir, ele, uma pobre criatura infeliz e desprezada, uma mulher tão nobre e tão bela. Seus atos de adoração, seus trans​​portes diante dos encantos da amiga, acabaram por tranquilizá-la um pouco sobre a diferença de idade. Se ti​vesse um pouco daquela educação que uma mulher de trinta anos possui nos lugares mais civilizados, ela temeria pela duração de um amor que parecia viver apenas de surpresa e de exaltação do amor-próprio. 

Em seus momentos de esquecimento da ambição, Julien admirava com enlevo até os chapéus e os vestidos da sra. de Rênal. Não se cansava do prazer de sentir seu perfume. Abria o armário de espelho e ficava horas inteiras admirando a beleza e o arranjo de tudo que ali encontrava. Sua amiga, apoiada sobre ele, olhava-o, enquanto ele olhava aquelas joias, aqueles enfeites que, na véspera de um casamento, enchem uma corbelha de núpcias. 

Eu podia ter casado com esse homem!, pensava às vezes a sra. de Rênal; que alma de fogo! Que vida arrebatadora com ele! 

Quanto a Julien, ele jamais estivera tão perto desses terríveis instrumentos de artilharia feminina. É impossível, dizia a si mesmo, que em Paris haja alguma coisa mais bela! Então, não encontrava objeção à sua felicidade. Com frequência, a sincera admiração e os transportes de sua amante faziam-no esquecer a vã teoria que o tornara tão comedido e quase tão ridículo nos primeiros momentos dessa ligação. Houve momentos em que, apesar de seus hábitos de hipocrisia, sentia uma doçura extrema em confessar a essa grande dama que o admirava sua ignorância de uma porção de pequenas práticas. A condição social de sua amante parecia elevá-lo acima de si mesmo. A sra. de Rênal, por seu lado, sentia a mais doce das volúpias morais em instruir assim, numa série de pequenas coisas, esse jovem cheio de talento e que era visto por todos como tendo um grande futuro. Mesmo o subprefeito e o sr. Valenod não podiam deixar de admirá-lo, no que lhe pareciam então menos tolos. Quanto à sra. Derville, ela estava longe de poder exprimir os mesmos sentimentos. Desesperada com o que acreditava adivinhar, e vendo que seus sábios conselhos tornavam-se odiosos a uma mulher que, literalmente, perdera a cabeça, deixou Vergy sem dar uma explicação, que se abstiveram de pedir-lhe. A sra. de Rênal derramou algumas lágrimas, mas logo lhe pareceu que sua felicidade redobrava. Com essa partida, via-se quase o dia inteiro a sós com seu amante. 

Julien entregava-se tanto mais à doce companhia de sua amiga porque, quando ficava sozinho por muito tempo, a proposta fatal de Fouqué voltava a agitá-lo. Nos primeiros dias dessa nova vida, houve momentos em que ele, que jamais amara, que jamais fora amado por ninguém, encontrou um prazer tão delicioso em ser sincero que esteve a ponto de confessar à sra. de Rênal a ambição que até então fora a essência mesma de sua existência. Chegou a querer consultá-la sobre a estranha tentação suscitada pela proposta de Fouqué, mas um pequeno acontecimento impediu qualquer franqueza.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Dia Seguinte (XVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)


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