sábado, 20 de fevereiro de 2021

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII: Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha.

D. Quixote de la Mancha



Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes



PRIMEIRA PARTE

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO VII


Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha.




Naquilo se estava, quando principiou a dar brados D. Quixote, dizendo:

— Aqui, aqui, valorosos cavaleiros! aqui é mister mostrar a possança dos vossos valorosos braços, que os cortesãos levam a melhoria no torneio!

Para acudir àqueles gritos, não se passou adiante com o exame dos livros que ainda faltavam; e assim se crê que não deixariam de ir ao lume, sem serem vistos nem ouvidos, a Caroléia e Leão de Espanha, com os feitos do Imperador, compostos por D. Luís de Ávila, que sem dúvida deviam de estar entre os remanescentes; e talvez, se o cura os visse, não padecessem tão rigorosa sentença.

Quando chegaram a D. Quixote, já ele estava levantado da cama, e prosseguia nas vozes e desatinos, dando cutiladas e reveses para todas as partes, estando tão acordado, como se nunca tivera dormido.

Arcaram com ele, e à força o deitaram no leito; e, depois que serenou um tanto mais, tornando-se a falar com o cura, lhe disse:

— Senhor Arcebispo Turpin, não há dúvida que é grande desar, para os que nós chamamos Doze Pares, deixarmos sem mais nem mais levar a vitória deste torneio aos cavaleiros cortesãos, tendo nós outros, os aventureiros, ganhado o prêmio dos três dias antes.

— Cale Vossa Mercê a boca, senhor compadre — disse o cura — que Deus há de ser servido de que a sorte se mude, e o que hoje se perde amanhã se ganhe. Por agora o que importa é tratar da saúde, que, segundo me parece, deve estar muitíssimo cansado, a não ser que esteja até mal ferido.

— Ferido não — interrompeu D. Quixote; — porém moído e quebrantado, sem dúvida que o estou, porque aquele filho da mãe de D. Roldão me moeu à bordoada com o tronco de uma azinheira; e tudo por inveja: por ver que eu só à minha banda contrapeso todas as suas valentias. Mas Reinaldo de Montalvão não torne eu a chamar, se em me levantando deste leito não pagar, a despeito de todos os seus encantamentos; e por agora tragam-me de jantar, que sei que é o mais preciso, e o vingar-me fica a meu cuidado.

Assim se fez. Deram-lhe de comer, e recaiu no sono, deixando a todos admirados de tamanho desorientamento.

Naquela noite incendiou e destruiu a ama quantos livros havia no pátio e em toda a casa; e alguns arderiam ainda que merecessem ser guardados em perpétuos arquivos. Mas não o quis assim a mofina e a pressa do seletor; cumpriu-se o rifão que diz: que às vezes paga o justo pelo pecador.

Um dos remédios que o barbeiro e o cura por então idearam, foi que se condenasse e emparedasse a sala dos livros, para que ao levantar-se o amigo não pudesse dar com ela (tirada a causa, talvez cessasse o efeito). Dir-lhe-iam que um encantador os tinha levado com o aposento e tudo, e assim se executou com a maior presteza.

A dois dias andados, ergueu-se D. Quixote, e o que primeiro fez foi ir-se ver os seus livros, e, como não achava o quarto em que os tinha deixado, corria de uma parte para outra a procurá-lo.

Chegava onde costumava estar a porta, e tenteava-a às apalpadelas, e volvia e revolvia os olhos por todos os cabos, sem proferir palavra. Porém, depois de um grande espaço, perguntou à ama a que parte ficava o aposento dos seus livros.

A ama, que já estava bem precavida do que havia de responder, lhe disse:

— Que aposento ou que história busca Vossa Mercê? Já não há aposento nem livros nesta casa, carregou com tudo o mesmo diabo.

— Não era diabo — acudiu a sobrinha — era um encantador que veio numa nuvem, numa noite depois daquele dia em que Vossa Mercê se abalou daqui, e, apeando-se de uma serpe em que vinha encavalgado, entrou no aposento. Não sei o que fez lá dentro; ao cabo de um breve espaço, saiu voando pelo telhado, deixando a casa cheia de fumarada, e, quando tornamos em nós, e fomos ver o que tinha feito, não vimos nem livros, nem aposento algum. Só nos lembra muito bem a mim e à ama que, ao tempo de partir-se, aquele malvado velho proferiu em altas vozes, que, por inimizade secreta, que tinha com o dono daquela livraria e estância, deixava feito o dano que depois se veria. Disse também que se chamava o sábio Munhatão.

— Frestão é que havia de dizer — acudiu D. Quixote.

— Não sei — interrompeu a ama — se era Frestão ou Fritão; só sei que o nome acabava em tão.

— Isso mesmo — disse D. Quixote — é esse um sábio encantador grande inimigo meu, e que me tem osga, porque sabe por suas artes e letras, que, pelo andar dos tempos, tenho de pelejar em singular batalha com um cavaleiro a quem ele favorece, e o hei de vencer sem que ele mo possa estorvar; por isso procura fazer-me quantas sensaborias pode, e eu digo-lhe que mal poderá ele evitar o que do céu nos está determinado.

— Disso ninguém duvida — disse a sobrinha — mas quem o mete, senhor tio, a Vossa Mercê nessas pendências? Não será melhor estar-se manso e pacífico em sua casa, em vez de se ir pelo mundo procurar pão que o diabo amassou, sem se lembrar de que muitos vão buscar lã e vêm tosquiados?

— Ai sobrinha, sobrinha! — respondeu D. Quixote

— Como andas fora da conta! Primeiro que a mim me tosquiem, terei peladas e arrancadas as barbas a quantos imaginarem tocar-me na ponta de um só cabelo.

Não quiseram as duas replicar-lhe mais nada, vendo que o agastamento lhe queria ir a mais.

O caso é que teve o nosso herói de passar em casa quinze dias mui quedo, sem dar mostras de querer recair nos seus primeiros devaneios; quinze dias em que passou graciosíssimos contos com os seus dois compadres, o cura e o barbeiro.

Era sempre a sua teima, que de nada precisava tanto o mundo, como de cavaleiros andantes; e oxalá essa cavalaria andante cá ressuscitara! O cura algumas vezes o contradizia, e outras ia com ele, porque sem essa velhacaria, como se haviam de entender?

Neste meio tempo, solicitou D. Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe martelou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de escudeiro.

Dizia-lhe entre outras coisas D. Quixote, que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé para a mão ganhasse alguma ilha, e o deixasse por governador dela.

Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança (que assim se chamava o lavrador) deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo.

Deu logo ordem D. Quixote a buscar dinheiros; e, vendendo umas coisas, empenhando outras, e malbaratando-as todas, juntou uma quantia razoável. Apetrechou-se com uma rodela, que pediu emprestada a um amigo; e, consertando a sua celada, o melhor que pôde, notificou ao seu escudeiro Sancho o dia e a hora em que tencionava porem-se a caminho, para que ele se arranjasse do que lhe fosse mais preciso; sobretudo lhe recomendou que levasse alforjes. Respondeu ele que os levaria, e que também pensava em levar um asno que tinha mui bom, porque não estava costumado a andar muito a pé.

Naquilo do asno é que D. Quixote não deixou de refletir o seu tanto, cismando se lhe lembraria que algum cavaleiro andante teria trazido escudeiro montado asnalmente; mas nenhum lhe veio à memória. Apesar disso, decidiu que podia levar o burro, com o propósito de lhe arranjar cavalgadura de maior foro apenas se lhe deparasse ocasião, que seria tirar o cavalo ao primeiro cavaleiro descortês que topasse.

Preveniu-se de camisas, e das mais coisas que pôde, conforme o conselho que o vendeiro lhe havia dado.

Feito e cumprido tudo, sem se despedir Pança dos filhos e mulher, nem D. Quixote da ama e da sobrinha, saíram uma noite do lugar sem os ver alma viva, e tão de levada se foram, que ao amanhecer já se iam seguros de que os não encontrariam, por mais que os rastejassem.

Ia Sancho Pança sobre o seu jumento como um patriarca, com os seus alforjes e a sua borracha, e com muita ânsia de se ver já governador da ilha que o amo lhe havia prometido.

Acertou D. Quixote de seguir a mesma direção que levara na primeira jornada, que foi pelo campo de Montiel, por onde caminhava mais satisfeito que da primeira vez, por ser ainda de manhã e dar-lhes de escape o sol, o que sempre importunava menos.

Disse então Sancho Pança a seu amo:

— Olhe Vossa Mercê, senhor cavaleiro andante, não se esqueça do que me prometeu a respeito da ilha, que lá o governá-la bem, por grande que seja, fica por minha conta.

— Hás de saber, amigo Sancho Pança — disse D. Quixote — que foi costume muito usado dos antigos cavaleiros andantes fazerem governadores aos seus escudeiros das ilhas ou reinos que ganhavam; e eu tenho assentado em que, por minha parte, se não dê quebra a esta usança de agradecido, antes nela me desejo avantajar; porque os outros, algumas vezes, e as mais delas, estavam à espera de que os seus escudeiros chegassem a velhos, e já depois de fartos de servir, e de levar maus dias e piores noites, é que lhes davam algum título de Conde, ou pelo menos de Marquês de algum vale ou província de pouco mais ou menos; e tu, se viveres e mais eu, bem poderá ser que antes de seis dias andados eu ganhe um reino com outros seus dependentes, que venham mesmo ao pintar para eu te coroar a ti por seu Rei. E não te admires do que te digo, pois coisas e casos acontecem aos tais cavaleiros, por modos tão nunca vistos e pensados, que facilmente eu te poderia dar até mais do que te prometo.

— Desse modo — respondeu Sancho Pança — se eu fosse Rei por algum milagre dos que Vossa Mercê diz, pelo menos Joana Gutierres, meu conchego, chegaria a ser Rainha, e os meus filhos infantes.

— Quem o duvida? — respondeu D. Quixote.

— Duvido eu — replicou Sancho Pança — porque tenho para mim que, ainda que Deus chovera reinos sobre a terra, nenhum assentaria bem na Maria Gutierres. Saiba, senhor meu, que ela para Rainha não vale dois maravedis; lá Condessa muito melhor acertara, e assim mesmo com a ajuda de Deus.

A Nosso Senhor encomenda tu, meu Sancho, o negócio, que ele lhe dará o que mais lhe acerte; mas não apouques tanto os teus espíritos, que venhas a contentar-te com menos que ser adiantado.

— Esteja descansado, senhor meu — respondeu Sancho — tenho ânimo, tenho, e mais servindo a um amo tão principal como é Vossa Mercê, que me há de saber dar tudo que me esteja bem, e me couber nas forças.


continua página 52...


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Leia também:


D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo II
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo III
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo IV
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo V
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VIII


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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho


Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com



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