Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(2.2)
Aureliano foi o único a entender tanta desolação. Essa tarde e, enquanto Úrsula tentava tirar Rebeca dos alagados do delírio, ele foi com Magnífico Visbal e Gerineldo Márquez à taberna de Catarino. O estabelecimento tinha sido ampliado com uma galeria de quartos de madeira onde viviam mulheres sozinhas cheirando a flores mortas. Um conjunto de tambores executava as canções de Francisco, o Homem, que fazia vários anos tinha desaparecido de Macondo.Os três amigos beberam garapa fermentada. Magnífico e Gerineldo, contemporâneos de Aureliano, porém mais experientes nas coisa do mundo, bebiam metodicamente com as mulheres sentadas nos joelhos. Uma delas, murcha e com a dentadura obturada a ouro, fez a Aureliano uma carícia estremecedora. Ele a repeliu. Tinha descoberto que quanto mais bebia mais se lembrava de Remedios, mas suportava melhor a tortura da lembrança. Não soube em que momento começou a flutuar. Viu seus amigos e as mulheres navegando numa reverberação radiante, sem peso nem volume, dizendo palavras que não saíam dos lábios e fazendo sinais misteriosos que não correspondiam aos seus gestos. Catarino pôs-lhe a mão no ombro e disse: “São quase onze horas.” Aureliano voltou a cabeça, viu o enorme rosto desfigurado com uma flor de feltro na orelha e então perdeu a memória, como nos tempos do esquecimento, e voltou a recobrá-la numa madrugada alheia e num quarto que lhe era completamente desconhecido, onde estava Pilar Ternera de combinação, descalça, desgrenhada, alumiando-o com um lampião e pasmada de incredulidade.
— Aureliano!
Aureliano se firmou nos pés e levantou a cabeça. Ignorava como tinha chegado até ali, mas sabia qual era o propósito, porque o trazia escondido desde a infância num lago inviolável do coração.
— Venho dormir com a senhora — disse.
Tinha a roupa manchada de lama e de vômito. Pilar Ternera, que então vivia somente com os seus dois filhos menores, não lhe fez nenhuma pergunta. Levou-o para a cama. Limpou-lhe a cara com um trapo úmido, tirou-lhe a roupa e logo se despiu por completo e abaixou o mosquiteiro para que não a vissem os filhos, se acordassem. Tinha cansado de esperar o homem que ficou, pelos homens que foram embora, pelos incontáveis homens que erraram o caminho da sua casa, confundidos pela incerteza das cartas. Na espera, sua pele tinha enrugado, seus seios tinham murchado e se havia apagado a brasa do coração. Procurou Aureliano na escuridão, pôs-lhe a mão no ventre e beijou-o no pescoço com uma ternura maternal. “Meu pobre menininho”, murmurou. Aureliano estremeceu. Com um desembaraço repousado, sem a menor dificuldade, deixou para trás as escarpas da dor e encontrou Remedios transformada num pântano sem horizontes, cheirando a animal cru e a roupa recém passada a ferro. Quando boiou estava chorando. Primeiro foram soluços involuntários e entrecortados. Depois se esvaziou num manancial desatado, sentindo que algo tumefato e doloroso tinha arrebentado no se interior. Ela esperou, coçando-lhe a cabeça com a ponta do dedos, até que seu corpo se desocupasse da matéria escura que não o deixava viver. Então, Pilar Ternera lhe perguntou “Quem é?” E Aureliano lhe disse. Ela deu a risada que e outros tempos espantava os pombos e que agora nem sequer acordava as crianças.
“Você vai ter que acabar de criá-la” zombou. Mas atrás da brincadeira Aureliano encontrou um remanso de compreensão. Quando abandonou o quarto, deixando ali não só a incerteza da sua virilidade mas também peso amargo que durante tantos meses suportara no coração, Pilar Temera lhe tinha feito uma promessa espontânea.
— Vou falar com a menina — disse a ele — e você vai ver como a trago numa bandeja.
Cumpriu. Mas num mau momento, porque a casa tinha perdido a paz dos outros dias. Ao descobrir a paixão de Rebeca, que não foi possível manter em segredo por causa dos seus gritos, Amaranta teve um acesso de febre. Também ela sofria o espinho de um amor solitário. Fechada no banheiro, se desafogava do tormento de uma paixão sem esperanças, escrevendo cartas febris que se conformava em esconder no fundo do baú. Úrsula não chegou para as encomendas, no atender as duas doentes. Não conseguiu, em prolongados e insidiosos interrogatórios, averiguar as causas da prostração de Amaranta. Por fim, em outro momento de inspiração, forçou a fechadura do baú e encontrou as cartas amarradas com fitas cor-de- rosa, inchadas de açucenas frescas e ainda úmidas de lágrimas, dirigidas e nunca enviadas a Pietro Crespi. Chorando de raiva, maldisse hora em que lhe passou pela cabeça comprar a pianola, proibiu as aulas de bordado e decretou uma espécie de luto sem morto, que se haveria de prolongar até que as filhas desistissem das suas esperanças. Foi inútil a intervenção de José Arcadio Buendía, que tinha retificado sua primeira impressão sobre Pietro Crespi e admirava a habilidade no manejo das máquinas musicais. De modo que quando Pilar Ternera disse a Aureliano que Remedios estava decidida a se casar, ele compreendeu que a notícia acabaria de transtornar os pais. Mas enfrentou a situação. Convocados à sala de visitas para uma entrevista formal, José Arcadio Buendía e Úrsula escutaram impávidos a declaração do filho. Ao tomar conhecimento do nome da noiva, entretanto, Arcadio Buendía enrubesceu de indignação. “O amor é uma peste”, trovejou. “Havendo tantas moças bonitas e direitas, a única coisa que lhe passa pela cabeça e casar com a filha do inimigo.” Mas Úrsula concordou com a escolha. Confessou o seu afeto pelas sete irmãs Moscote, pela sua formosura, sua diligência, seu recato e sua boa educação, e festejou o acerto do seu filho. Vencido pelo entusiasmo da mulher, José Arcadio Buendía impôs então uma condição: Rebeca, que era a correspondida, casaria com Pietro Crespi. Úrsula levaria Amaranta numa viagem à capital da província, quando tivesse tempo, para que o contato com outras pessoas a aliviasse da sua desilusão. Rebeca recobrou a saúde logo que soube do trato, e escreveu ao namorado uma carta jubilosa que submeteu à aprovação dos pais e pôs no correio sem se servir de intermediários. Amaranta fingiu aceitar a decisão e pouco a pouco se restabeleceu da febre, mas prometeu a si mesma que Rebeca só se casaria se passasse por cima do seu cadáver.
No sábado seguinte José Arcadio Buendía pôs o terno de fazenda escura, o colarinho duro e as botas de camurça que tinha estreado na noite da festa, e foi pedir a mão de Remedios Moscote. O delegado e sua esposa o receberam ao mesmo tempo satisfeitos e embaraçados, porque ignoravam o propósito da visita imprevista, e em seguida pensaram que ele tinha confundido o nome da pretendida. Para resolver a questão, a mãe acordou Remedios e a levou no colo para a sala, ainda zonza de sono. Perguntaram-lhe se na verdade estava decidida a se casar e ela respondeu choramingando que só queria que a deixassem dormir. José Arcadio Buendía, compreendendo o embaraço dos Moscote, foi esclarecer as coisas com Aureliano. Quando voltou, o casal Moscote já estava vestido em traje de passeio, tinha mudado a posição dos móveis e colocado flores novas nas floreiras, e o esperavam na companhia das filhas mais velhas. Agoniado pela situação ingrata e pelo incômodo do colarinho duro, José Arcadio Buendía confirmou que, na verdade, Remedios era a escolhida. “Isto não tem sentido”, disse consternado o Sr. Apolinar Moscote. “Temos mais seis filhas, todas solteiras e em idade de casar, que estariam encantadas em ser esposas digníssimas de cavalheiros sérios e trabalhadores como o seu filho, e Aurelito volta os olhos exatamente para a única que ainda faz pipi na cama.” Sua senhora, uma mulher bem conversada, de pestanas e gestos aflitos, reprovou-lhe a incorreção. Quando acabaram de tomar o refresco de frutas, tinham aceitado satisfeitos a decisão de Aureliano. Só que a Sra. Moscote suplicava o favor de falar a sós com Úrsula. Intrigada, reclamando que a estava envolvendo em assuntos de homem, mas na verdade intimidada pela emoção, Úrsula foi visitá-la no dia seguinte. Meia hora depois, voltou com a notícia de que Remedios era impúbere. Aureliano não considerou isso como um empecilho grave. Tinha esperado tanto que podia esperar quanto fosse necessário até que a noiva estivesse em idade de conceber.
A harmonia restaurada só foi interrompida pela morte de Melquíades. Ainda que o acontecimento fosse previsível, não o foram as circunstâncias. Poucos meses depois da sua volta, operara-se nele um processo de envelhecimento tão rápido e crítico que logo foi tomado como um desses bisavôs inúteis que perambulam como sombras pelos quartos, arrastando os pés, recordando melhores tempos em voz alta, e de quem ninguém se ocupa nem se lembra na verdade até o dia em que amanhecem mortos na cama. No princípio, José Arcadio Buendía o secundava nas suas tarefas, entusiasmado com a novidade da daguerreotipia e as predições de Nostradamus. Mas pouco a pouco o foi abandonando à sua solidão, porque cada vez mais se fazia difícil a comunicação. Estava perdendo a vista e o ouvido, parecia confundir os seus interlocutores com pessoas que conhecera em épocas remotas da humanidade e respondia às perguntas numa intrincada barafunda de línguas. Caminhava tateando o ar, embora se movesse por entre as coisas com uma fluidez inexplicável, como se estivesse dotado de um instinto de orientação baseado em pressentimentos imediatos. Um dia se esqueceu de colocar a dentadura postiça que deixava de noite num copo de água junto à cama e não voltou a usá-la. Quando Úrsula ordenou a ampliação da casa, fez construir um quarto especial para ele, contíguo à oficina de Aureliano, longe dos ruídos e da movimentação doméstica com uma janela inundada de luz e uma estante onde ela mesma arrumou os livros quase desmanchados pela poeira e pelas traças, os quebradiços papéis abarrotados indecifráveis e o copo com a dentadura postiça, onde tinham colocado umas plantinhas aquáticas de minúsculas flores amarelas. O novo lugar pareceu agradar a Melquíades, pois não se voltou a vê-lo sequer na sala de jantar. Ia somente à oficina de Aureliano, onde passava horas e horas garranchando a sua literatura enigmática nos pergaminhos que trouxera consigo e que pareciam fabricados de uma matéria árida que se esfarelava como uma empada. Comia ali os alimentos que Visitación lhe levava duas vezes por dia, embora nos últimos tempos tivesse perdido o apetite e só se alimentasse de legumes. Em pouco tempo adquiriu o aspecto de desamparo próprio dos vegetarianos. A pele se cobriu de um musgo macio, semelhante ao que prosperava no casaco anacrônico que não tirou nunca, e a sua respiração passou a exalar um bafo de animal adormecido. Aureliano acabou por se esquecer dele, absorto na redação dos seus versos, mas em certa ocasião acreditou entender alguma coisa do que ele dizia nos seus monótonos monólogos e prestou atenção. Na verdade, a única coisa que pôde colher naquelas confidências pedregosas foi o insistente martelar da palavra equinócio equinócio equinócio, e o nome de Alexandre Von Humboldt. Arcadio se aproximou um pouco mais dele, quando começou a ajudar Aureliano na ourivesaria. Melquíades correspondeu àquele esforço de comunicação soltando, de vez em quando, algumas frases em castelhano que tinham muito pouco a ver com a realidade. Uma tarde, entretanto, pareceu iluminado pela emoção repentina. Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcadio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíades o fez escutar várias páginas da sua escrita impenetrável, que evidentemente não entendeu, mas que ao serem lidas em voz alta pareciam encíclicas cantadas. Depois sorriu pela primeira vez em muito tempo e disse em castelhano: “Quando eu. morrer, queimem mercúrio durante três dias no meu quarto.” Arcadio contou isso para José Arcadio Buendía, e este tratou de obter uma informação mais explícita, mas só conseguiu uma resposta: “Alcancei a imortalidade.” Quando a respiração de Melquíades começou a cheirar mal, Arcadio levava-o a tomar banho no rio toda quinta-feira pela manhã. Pareceu melhorar. Despia-se e se metia na água junto com os rapazes, e seu misterioso sentido de orientação o permitia escapar dos lugares profundos e perigosos. “Somos da água”, disse em certa ocasião. Assim, passou muito tempo sem que ninguém o visse em casa, a não ser na noite em que fez um comovedor esforço para consertar a pianola, e quando ia ao rio com Arcadio, levando debaixo do braço a cuité e a bola de sabão de óleo de palmeira embrulhadas numa toalha. Certa quinta-feira antes de que chamassem para ir ao rio, Aureliano o ouviu dizer: “Morri de febre nas dunas de Cingapura.” Nesse dia meteu-se n’água por um mau caminho e só o encontraram na manhã seguinte, vários quilômetros mais abaixo, encalhado numa curva luminosa e com um urubu solitário de pé sobre o ventre. Contra os escandalizados protestos de Úrsula, que o chorou com mais dor que a seu próprio pai, José Arcadio Buendía se opôs a que o enterrassem. “E imortal”, disse “ele mesmo revelou a fórmula da ressurreição.” Reviveu o esquecido alambique e pôs para ferver uma caldeira de mercúrio junto ao cadáver que pouco a pouco se ia enchendo de bolhas azuis. O Sr. Apolinar Moscote atreveu-se a recordar-lhe que um afogado insepulto era um perigo para a saúde pública. “Nada disso, já que está vivo”, foi a réplica de José Arcadio Buendía, que completou as setenta e duas horas de incensos mercuriais quando já o cadáver começava a se arrebentar numa floração lívida, cujos assovios tênues impregnaram a casa de um vapor fedorento. Só então permitiu que o enterrassem, mas não de qualquer maneira, e sim com as honras reservadas ao maior benfeitor de Macondo. Foi o primeiro e o mais concorrido que se viu no povoado, superado apenas um século depois pelo carnaval funerário da Mamãe Grande. Sepultaram-no numa tumba erigida no centro do terreno que destinaram ao cemitério, com uma lápide onde ficou escrita a única coisa que se soube dele: MELQUÍADES.
continua página 49...
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