quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general

 Capítulo 3



continuando...


Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general de mesmo nome, viu a cena de dentro e continua a narrativa numa carta, muito deteriorada também, que tardiamente chegou a uma amiga em Tunbridge Wells. A srta. Penelope não era menos pródiga, em seu entusiasmo, do que o galante oficial. “Deslumbrante”, ela exclama dez vezes em uma página, “maravilhoso... além de qualquer descrição... baixelas de ouro... candelabros... negros de calças de pelúcia... pirâmides de gelo... fontes de ponche... gelatinas representando os navios de Sua Majestade... cisnes representando nenúfares... pássaros em gaiolas douradas... cavalheiros em trajes de veludo vermelho... senhoras com penteados de pelo menos seis pés de altura... caixas de música... o sr. Peregrine disse que eu estava absolutamente encantadora, o que só repito para você, minha querida, pois sei... Oh! ... que saudade tenho de todos vocês! ... ultrapassando o que vimos em Pantiles... oceanos para beber... alguns cavalheiros se excederam... Lady Betty maravilhosa... a pobre Lady Bonham cometeu o erro de sentar-se sem ter uma cadeira... cavalheiros todos muito elegantes... suspirei mil vezes por você e pela querida Betsy... mas o espetáculo principal, a atração de todos os olhares... como todos admitiam, pois ninguém podia ser tão vil que negasse tal coisa, era o próprio embaixador. Que pernas! que semblante! Que maneiras principescas!!! vê-lo entrar no salão! vê-lo sair novamente! e algo atraente na expressão, que faz sentir, embora não se saiba por quê, que ele tem sofrido! Dizem que uma dama foi a causadora disso. Um monstro sem coração!!! Como pode uma pessoa de nosso chamado sexo frágil ter tido esta coragem!!! Ele é solteiro, e metade das damas daqui está apaixonada por ele... Milhares e milhares de beijos para Tom, Gerry, Peter e o querido Mew” [presumivelmente o seu gato].

Da Gazeta da época extraímos que “quando o relógio bateu meia-noite, o embaixador apareceu na sacada central, que estava adornada com tapeçarias preciosas. Seis turcos de Guarda Imperial, cada um com seis pés de altura, seguravam tochas à direita e à esquerda. Foguetes subiram quando ele surgiu, e um grande clamor elevou-se da multidão, ao que o embaixador retribuiu, inclinando-se profundamente e falando algumas palavras de agradecimento em turco, fluentemente, o que era uma de suas conquistas. Depois, Sir Adrian Scrope, em uniforme de gala de almirante britânico avançou; o embaixador dobrou um dos joelhos; o almirante colocou-lhe ao pescoço o colar da nobilíssima Ordem de Bath e prendeu a Estrela em seu peito; depois disso, um outro cavalheiro do corpo diplomático se adiantou solenemente e colocou sobre seus ombros as vestes ducais e entregou-lhe a coroa ducal, numa almofada vermelha”.

Por fim, com um gesto de extraordinária majestade e graça, primeiro inclinando-se profundamente, depois levantando-se orgulhosamente, Orlando tomou o círculo dourado de folhas de morango e colocou-o sobre a fronte, com um gesto que os que viram jamais esqueceram. Foi nesse momento que o primeiro distúrbio começou. Ou o povo tinha esperado um milagre — alguns dizem que tinha sido profetizado que uma chuva de ouro cairia dos céus —, o que não aconteceu, ou esse era o sinal escolhido para começar o ataque; ninguém parece saber; mas, quando a coroa foi colocada na fronte de Orlando, grande tumulto elevou-se. Os sinos começaram a tocar; os ásperos gritos dos profetas eram ouvidos acima dos clamores da multidão; muitos turcos se atiraram ao chão e tocaram a terra com suas testas. Uma porta foi arrombada. Os nativos precipitaram-se nos salões de banquete. Mulheres gritavam. Uma certa dama, que diziam estar morrendo de amor por Orlando, pegou um candelabro e jogou-o ao chão. O que poderia ter acontecido, se não fosse a presença de Sir Adrian Scrope e de uma esquadra de marujos ingleses, ninguém pode dizer. Mas o almirante ordenou que soassem as cornetas; uma centena de marujos postou-se instantaneamente em alerta; a desordem foi domada, e a calma, pelo menos no momento, foi restabelecida.

Até agora temos estado no terreno firme, embora estreito, da verdade comprovada. Mas ninguém jamais soube com exatidão o que aconteceu mais tarde naquela noite. O testemunho das sentinelas e de outras pessoas parece, entretanto, comprovar que a embaixada ficou vazia, e as portas foram fechadas, como de costume, por volta das duas da manhã. O embaixador foi visto dirigindo-se para o seu quarto, ainda usando as insígnias de seu posto, e fechou a porta. Alguns dizem que ele trancou-a, o que era contrário aos seus hábitos. Outros afirmam que tarde da noite, no pátio, sob a janela do embaixador, ouviram música de natureza rústica, como a tocada pelos pastores. Uma lavadeira, que ficara acordada com dor de dente, disse que tinha visto uma figura de homem, envolta em uma capa ou roupão, aparecer na sacada. Depois, disse, uma mulher inteiramente encapotada, mas aparentemente de origem camponesa, subiu por uma corda que o homem lhe jogou da sacada. Lá, a lavadeira disse, abraçaram-se apaixonadamente “como amantes”, entraram juntos no quarto e fecharam as cortinas, de modo que nada mais pôde ser visto.

Na manhã seguinte, o duque, como devemos chamá-lo agora, foi encontrado por seus secretários profundamente adormecido, em meio às roupas de cama bastante desarrumadas. Havia uma certa desordem no quarto, a coroa rolara ao chão, seu manto e a liga atirados sobre uma cadeira. A mesa estava cheia de papéis. Não havia suspeitas, a princípio, pois as fadigas da noite haviam sido grandes. Mas, quando chegou a tarde e ele continuava dormindo, chamaram um médico. Ele aplicou os remédios que haviam sido usados numa ocasião anterior, emplastros, urtigas, vomitórios etc., mas sem sucesso. Orlando continuava dormindo. Seus secretários acharam então que era seu dever examinar os papéis sobre a mesa. Muitos estavam rabiscados com versos, com frequentes alusões a um carvalho. Havia também vários documentos oficiais e outros de natureza privada, relativos à administração de suas propriedades na Inglaterra. Mas, finalmente, chegaram a um documento de enorme significado. Era nada menos, na verdade, que uma promessa de casamento, redigida, assinada e testemunhada, entre Sua Senhoria Orlando, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira etc. etc. etc., e Rosina Pepita, dançarina, de pai desconhecido, mas tido como cigano, mãe também desconhecida, mas tida como vendedora de ferro-velho na praça do mercado, em frente à ponte Gálata. Os secretários se olharam atônitos. E Orlando continuava dormindo. Manhã e noite eles o observavam, mas, exceto por sua respiração, que era regular, e suas faces ainda rosadas, ele não dava sinal de vida. O que a ciência ou a engenhosidade podiam fazer para acordá-lo foi feito. Porém ele continuava dormindo.

No sétimo dia de seu transe (quinta-feira, 10 de maio), foi disparado o primeiro tiro daquela terrível e sangrenta insurreição, cujos primeiros sintomas o tenente Brigge tinha detectado. Os turcos levantaram-se contra o sultão, incendiaram a cidade e condenaram à espada ou ao bastão todos os estrangeiros que encontraram. Alguns ingleses conseguiram escapar; mas, como era de se esperar, os cavalheiros da embaixada britânica preferiram morrer defendendo seus cofres vermelhos ou, em casos extremos, engolir molhos de chaves a deixá-los cair nas mãos dos infiéis. Os amotinados invadiram o quarto de Orlando, mas, vendo-o estirado com aparência de morto, não o tocaram, somente roubaram a coroa e os trajes da Jarreteira.

E agora novamente a obscuridade cai, e oxalá fosse mais profunda! Oxalá, quase exclamamos do fundo do coração, fosse tão profunda que não pudéssemos ver nada através de sua opacidade! Oxalá pudéssemos aqui pegar a caneta e escrever finis em nosso trabalho! Oxalá pudéssemos poupar o leitor do que ainda virá e dizer-lhe em algumas palavras que Orlando morreu e foi sepultado. Mas aqui, ai de nós! a Verdade, a Franqueza e a Honestidade, austeras Deusas que observam e guardam o biógrafo pelo tinteiro, gritam Não! Colocando as trombetas de prata nos lábios, demandam em uníssono Verdade! E novamente gritam Verdade! e de novo, pela terceira vez, juntas estrondeiam A Verdade, e nada mais que a Verdade!

Ao que — Deus seja louvado! pois nos concede um espaço para respirar — as portas foram abertas delicadamente, como se um sopro do mais amável e sagrado zéfiro as tivesse empurrado, e três figuras entram. Primeiro vem Nossa Senhora da Pureza, cuja fronte é ornada com fitas da mais branca lã de cordeiro; cujo cabelo é como uma avalanche de neve deslizante; e em cuja mão repousa uma pluma branca de uma gansa virgem. Em seguida, com passo mais imponente, vem Nossa Senhora da Castidade, em cuja fronte repousa como um torreão de fogo, ardendo sem parar, um diadema de pingentes de gelo; seus olhos são puras estrelas, e seus dedos, se nos tocam, nos gelam até os ossos. Perto e atrás dela, protegida pela sombra de suas irmãs mais nobres, vem Nossa Senhora da Modéstia, a mais frágil e a mais bonita das três, cuja face somente é mostrada como a lua crescente, quando é fina, tem forma de foice e está meio oculta entre as nuvens. Cada uma avançou para o centro do quarto, onde Orlando ainda jaz dormindo; e, com gestos que ao mesmo tempo apelam e ordenam, Nossa Senhora da Pureza fala primeiro: “Sou a guardiã dos cervos adormecidos; a neve me é cara, e o nascer da lua, e o mar prateado. Com minhas roupas, cubro os ovos das galinhas pintadas e as conchas marinhas listradas; cubro o vício e a pobreza. Sobre todas as coisas frágeis ou escuras ou duvidosas o meu véu desce. Por isso não fales, não reveles. Piedade, oh, piedade!”

Aqui as trombetas estrondeiam.

“Pureza, fora! Vai-te, Pureza!”

Então, Nossa Senhora da Castidade fala: “Eu sou aquela cujo toque congela e cujo olhar transforma em pedra. Detive a estrela em sua dança e a onda em sua queda. Os mais altos Alpes são meu domicílio; e quando caminho, os relâmpagos brilham nos meus cabelos; onde os meus olhos pousam, matam. Em vez de deixar Orlando acordar, eu o congelarei até os ossos. Piedade oh, piedade!”

Aqui as trombetas estrondeiam.

“Castidade, fora! Vai-te, Castidade!”

Então Nossa Senhora da Modéstia fala, tão baixo que dificilmente se ouve: “Eu sou aquela que os homens chamam de Modéstia. Sou virgem e sempre serei. Não são para mim os campos fecundos nem os vinhedos férteis. A multiplicação é odiosa para mim; e, quando as maçãs brotam ou os rebanhos dão cria, fujo, fujo; deixo meu manto cair; meu cabelo cobre-me os olhos. Não vejo. Piedade, oh, piedade!”

De novo as trombetas estrondeiam.

“Modéstia, fora! Vai-te!, Modéstia!”

Com gestos de aflição e lamento, as três irmãs agora dão-se as mãos e dançam devagar, agitando seus véus e cantando:

“Verdade, não saias da tua horrível caverna. Esconde-te profundamente, temível verdade. Pois ostentas na brutal claridade do sol coisas que eram melhores se desconhecidas e não feitas; tu descobres o vergonhoso; esclareces o obscuro. Esconde-te, esconde-te, esconde-te!”

Aqui fazem como se fossem cobrir Orlando com seus véus. As trombetas, enquanto isso, ainda ressoam fortemente.

A Verdade e nada mais que a Verdade.

Então as Irmãs tentam colocar seus véus sobre as bocas das trombetas para abafá-las, mas em vão, porque agora todas as trombetas ressoam juntas,

“Horríveis Irmãs, parti!”

As irmãs ficam aflitas e choram em uníssono, ainda dançando e agitando os véus para cima e para baixo.

“Nem sempre foi assim! Mas os homens não nos querem mais; e as mulheres nos detestam. Vamos embora, vamos embora. Eu para o poleiro das galinhas (diz a Pureza). Eu para os picos ainda não violados de Surrey (diz a Castidade). Eu para qualquer recanto onde haja hera e cortinas em profusão (diz a Modéstia).”

“Pois lá, e não aqui (todas falam juntas, de mãos dadas, fazendo gestos de despedida e desespero em direção à cama onde Orlando jaz adormecido), moram ainda, em ninhos e toucadores, escritórios e cortes de justiça, aqueles que nos amam; aqueles que honram virgens e cidadãos; advogados e médicos; aqueles que proíbem; aqueles que negam; aqueles que reverenciam sem saber por quê, aqueles que elogiam sem entender, e ainda a numerosa (Deus seja louvado) tribo dos respeitáveis; que preferem não ver; desejam não saber; amam a escuridão; aqueles que ainda nos adoram com razão; pois nós lhes demos Poder, Prosperidade, Conforto e Bem-estar. A eles nos encaminhamos, e te deixamos. Vinde, Irmãs, vinde! Isto aqui não é lugar para nós.”

Elas retiram-se às pressas, agitando seus véus sobre as cabeças como se para afastar completamente alguma coisa que não se atrevem a olhar, e fecham a porta.

Ficamos então agora inteiramente sozinhos no quarto com o adormecido Orlando e os trombeteiros. Os trombeteiros, organizando-se lado a lado, sopram um terrível toque: — “A VERDADE!” — e com isso Orlando despertou.

Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé completamente despido diante de nós, e enquanto as trombetas soavam Verdade! Verdade! Verdade! não temos escolha senão confessar — ele era uma mulher.


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continua pag 58...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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