quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — II

  Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



II — Madelaine


A seu respeito só se podia dizer que era um homem de cinquenta anos, pouco mais ou menos, bondoso, parecendo sempre preocupado.

Graças aos rápidos processos da indústria que ele tão admiravelmente reformara, Montreuil-sur-mer tornara-se um considerável centro de comércio. A Espanha que consome muito azeviche, fazia todos os anos grandes encomendas. Neste ramo de comércio, Montreuil-sur-mer fazia concorrência a Londres e a Berlim. Eram tais os lucros do senhor Madelaine, que logo no segundo ano pudera construir uma grande fábrica, em que havia duas vastas oficinas, uma para homens, outra para mulheres. Quem tivesse fome, podia aí apresentar-se, que tinha de antemão a certeza de encontrar trabalho e pão. 

O senhor Madelaine exigia boa vontade dos homens, pureza de costumes das mulheres, e probidade de todos. Para mais facilmente conseguir todas estas coisas, dividira as oficinas, para que, separados os dois sexos, as mulheres e as raparigas não viessem a perverter-se com o contato dos homens, nem estes a deixarem-se arrastar de vergonhosos desvairamentos por aquelas. Neste ponto era inflexível. Era esta a única coisa para a qual se tornava de alguma maneira intolerante, empregando para conter o mal tanta maior severidade, quanto mais frequentes eram na terra as ocasiões de corrupção, por Montreuil-sur-mer ser uma cidade com guarnição militar De resto, a sua vinda tinha sido um benefício e a sua presença era uma providência. Antes da chegada do senhor Madelaine, tudo naquela terra jazia num estado de desalentada languidez; depois todos passaram a viver a vida sã do trabalho, aquecia tudo e penetrava em toda a parte o movimento duma forte circulação. Tanto a falta de trabalho como a miséria eram ali desconhecidos. Não havia bolsa, por mais mesquinha que fosse, em que não se encontrasse algum dinheiro, nem casa tão pobre que não penetrasse um quente raio de alegria. O senhor Madelaine empregava toda a gente, fazendo uma única exigência: «Seja homem de bem! Seja mulher honesta!» 

Como já dissemos, no meio desta atividade, de que era a causa e o eixo, fazia o senhor Madelaine a sua fortuna; mas, coisa assaz singular num simples homem de comércio, não mostrava ser esse o seu principal cuidado. Parecia que cuidava muito nos outros e pouco em si. Em 1820 sabia-se que tinha seiscentos e trinta mil francos, depositados em seu nome na casa Laffite; antes, porém, de reservar para si esses seiscentos e trinta mil francos, tinha gasto mais de um milhão em favor da cidade e dos pobres. 

O hospital estava mal dotado; o senhor Madelaine mandou estabelecer mais dez camas. Montreuil-sur-mer era dividida em cidade alta e cidade baixa A cidade baixa, onde ele morava, tinha apenas uma escola, velho pardieiro quase em ruínas: fundou duas, uma para meninas e outra para rapazes, dando aos professores, do seu bolso, o dobro do magro ordenado oficial que recebiam, dizendo um dia a alguém que se admirava de que ele fizesse estas despesas: «Os primeiros funcionários do Estado são as amas de leite e os professores de instrução primária». Criara a expensas suas uma casa de asilo, coisa então quase desconhecida em França, e uma caixa de socorros para os operários velhos e enfermos. 

Como a sua fábrica se tornasse um centro, surgiu rapidamente em torno dela um novo bairro, onde morava um grande número de famílias indigentes e onde estabeleceu uma farmácia gratuita. 

Ao princípio, quando o viram começar os alicerces da sua fortuna, as boas almas disseram: «É um atrevido que quer enriquecer». Quando o viram enriquecer a terra onde estava, antes de se enriquecer a si próprio, disseram ainda as mesmas boas almas: «É um ambicioso». Isto parecia tanto mais provável, por ele ser religioso e até certo ponto zeloso nas práticas externas, coisa muito bem vista naquela época. Ia regularmente ouvir uma missa rezada todos os domingos. 

O deputado local, que por toda a parte farejava concorrência, não tardou a inquietar-se com a sua religião. Este deputado, que tinha sido membro do conselho geral, participava das ideias religiosas de um padre da Congregação do Oratório, conhecido sob o nome de Fouché, duque de Otranto, de quem fora amigo íntimo. No fundo da sua consciência, ria-se de Deus e das coisas sagradas. Mas quando viu o rico industrial Madelaine ir à missa rezadadas sete horas, entreviu a possibilidade de um candidato e resolveu ultrapassá-lo em zelo, tomando um jesuíta para confessor e nunca faltando à missa cantada e a vésperas.  

Naquele tempo, a ambição era, na verdadeira acepção da palavra, o caminho do campanário. Foi proveito dos pobres, tanto como de Deus, aquele terror, porque o respeitável deputado dotou o hospital com mais duas camas, o que fez subir o seu número a doze. 

Todavia, em 1819, espalhou-se um dia na cidade o boato de que, por proposta do senhor prefeito e em consideração aos serviços prestados àquela localidade pelo senhor Madelaine, ia este ser nomeado pelo rei, maire de Montreuil-sur-mer. Os que à sua chegada o tinham apodado de «ambicioso», aproveitaram com entusiasmo esta ocasião, que todos desejam, para exclamar: «Aí está! Que tínhamos nós dito?» Em Montreuil-surmer não se falava noutra coisa e o boato tinha fundamento. Passados alguns dias apareceu o decreto da nomeação no Monitor e, no dia seguinte, o senhor Madelaine declarou que não aceitava. 

Nesse mesmo ano de 1819, figuravam na exposição industrial os produtos do novo sistema inventado por Madelaine, o que fez em vista do relatório do júri, com que o rei o nomeasse cavaleiro da Legião de Honra. Novo rumor na pequena cidade: «Está visto, o que ele queria era a cruz!» Porém, o senhor Madelaine recusou a venera. 

Decididamente aquele homem era um enigma, mas as boas almas, não o podendo decifrar, saíam do embaraço em que se viam, dizendo: «Afinal de contas, não passa de um aventureiro». 

Como já se viu, a localidade devia-lhe muito e os pobres deviam-lhe tudo; Madelaine era tão útil, que fora indispensável que acabassem por lhe render o respeito que lhe era devido, era tão bondoso, que tinha sido impossível deixarem de lhe querer bem; os seus operários, especialmente, adoravam-no, adoração que ele recebia com uma espécie de gravidade melancólica. 

Depois de se tornar incontestável a sua riqueza, as «pessoas da sociedade» passaram a cumprimentá-lo, chamando-lhe todos na cidade o senhor Madelaine; contudo, os seus operários e as crianças continuaram a chamar-lhe senhor Madelaine, sendo isto o que o fazia sorrir de melhor grado. A medida que subia, choviam sobre ele os convites. A «sociedade» reclamava-o. 

As mesquinhas e pretensiosas salas de Montreuil-sur-mer, que, bem entendido, se teriam fechado nos primeiros tempos ao homem, trabalhador, abriram as suas portas de par em par ao milionário, Madelaine, porém, esquivou-se sempre aos convites. 

Ainda desta vez as boas almas não puderam conter-se: «É um homem ignorante e de fraca educação. Ninguém sabe de onde veio, e seria incapaz de portar-se com decência entre pessoas de sociedade. Nem ainda se provou que saiba ler». 

Quando o viram ganhar dinheiro, disseram: «É um comerciante». Ao vê-lo distribuir o dinheiro que ganhara, bradaram: «É um ambicioso». Quando viram que repelia todas as honras, exclamaram: «É um aventureiro!» E, finalmente, disseram, ao vê-lo fugir esquivo à convivência da sociedade: «É um homem grosseiro!» 

Em 1820, cinco anos depois da sua chegada a Montreuil-sur-mer, eram já tão notáveis os serviços que prestara à localidade em que se estabelecera e o voto de todo o distrito fora de tal modo unânime, que o rei nomeou-o novamente maire. Tornou a recusar, mas o prefeito resistiu à sua recusa, as pessoas notáveis instaram todas com ele para que aceitasse, o povo, mesmo no meio da rua, suplicava-lhe; numa palavra, viu-se de tal modo solicitado, que aceitou finalmente. 

Notou-se que o que pareceu sobretudo decidi-lo, foi a apóstrofe quase irritada de uma velha mulher do povo, que lhe gritara com mau modo do limiar da sua porta: 

Um bom maire é muito útil. Ninguém tem o direito de recuar diante do bem que pode fazer. Foi esta a terceira fase da sua ascensão. O senhor Madelaine tinha-se tornado o senhor Madelaine, o senhor Madelaine tornou-se o senhor maire.



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)



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