quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Qual é a condecoração que distingue? (VIII)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo VIII

QUAL É A CONDECORAÇÃO QUE DISTINGUE?




Tua água não me refresca, disse o gênio sequioso. – No entanto, este é o poço mais fresco de todo o Diar Bekir. 

PELLICO







JULIEN RETORNAVA, um dia, da encantadora terra de Villequier, às margens do Sena, que o sr. de La Mole via com interesse, porque, de todas as suas terras, era a única que pertencera ao célebre Boniface de La Mole. Na mansão, encontrou a marquesa e a filha, que chegavam de Hyères.
Julien era agora um dândi e compreendia a arte de viver em Paris. Demonstrou uma frieza perfeita para com a srta. de La Mole. Parecia não guardar nenhuma lembrança dos tempos em que ela lhe pedia tão alegremente detalhes sobre sua queda do cavalo.
A srta. de La Mole achou-o mais seguro e pálido. Seu porte, suas maneiras nada mais tinham de provinciano; o mesmo não acontecia com sua conversação, ainda muito séria, afirmativa. Apesar dessas qualidades razoáveis, não tinha nada de subalterno, e isto graças a seu orgulho; percebia-se apenas que ele considerava ainda muitas coisas como importantes. Mas via-se que era um homem de convicções.

– Falta-lhe leveza, mas não espírito, disse a srta. de La Mole ao pai, brincando com ele sobre a medalha que dera a Julien. Meu irmão vem solicitando-a há dezoito meses, e é um La Mole!...

– Sim, mas Julien tem o imprevisto, é o que jamais aconteceu com o La Mole de que me fala.

Anunciaram o sr. duque de Retz.
Mathilde sentiu uma vontade irresistível de bocejar; ela reconhecia as antigas douraduras e os antigos frequentadores do salão paterno. Fazia uma imagem perfeitamente aborrecida da vida que ia retomar em Paris. Em Hyères, porém, sentia falta de Paris.
E tenho apenas dezenove anos!, pensava: é a idade da felicidade, dizem todos esses livros tolos com bordas douradas. Ela olhava oito ou dez volumes de poesias novas, acumulados, durante a viagem à Provença, sobre o console do salão. Tinha o azar de ter mais espírito que os srs. de Croisenois, de Caylus, de Luz, e os outros amigos. Imaginava tudo o que iam lhe dizer sobre o belo céu da Provença, a poesia, o sul etc. etc.
Esses olhos tão belos, onde transparecia o tédio mais profundo e, pior ainda, o desespero de encontrar prazer, detiveram-se em Julien. Pelo menos, ele não é exatamente como um outro qualquer.

– Senhor Sorel, disse com aquela voz viva, breve e que nada tem de feminino, empregada pelas moças da alta sociedade, senhor Sorel, irá esta noite ao baile do sr. de Retz?

– Senhorita, não tive a honra de ser apresentado ao sr. duque. (Alguém diria que essas palavras e esse título machucavam a boca do provinciano orgulhoso.)

– Ele encarregou meu irmão de levá-lo à casa dele; e, se fosse, poderia dar-me detalhes sobre a terra de Villequier, quero visitá-la na primavera. Gostaria de saber se o castelo é habitável e se os arredores são tão bonitos como dizem. Há tantas reputações usurpadas!

Julien não respondia.

– Vá ao baile com meu irmão, ela acrescentou, num tom bastante seco.

Julien cumprimentou com respeito. Assim, mesmo durante o baile, devo contas a todos os membros da família. Não sou pago como homem de negócios? Seu mau humor acrescentou: Sabe lá se o que eu disser à filha não irá contrariar os projetos do pai, do irmão, da mãe! É uma verdadeira corte de príncipe soberano. Seria preciso ser de uma nulidade perfeita, mas sem dar a ninguém o direito de queixar-se.
Como essa moça me desagrada! pensou, vendo afastar-se a srta. de La Mole, que a mãe chamara para apresentá-la a várias mulheres de seus amigos. Ela exagera todas as modas, seu vestido cai-lhe dos ombros... Está ainda mais pálida do que antes da viagem... Que cabelos sem cor, de tão louros! Dir-se-ia que a luz os atravessa. Quanta altivez na maneira de cumprimentar, no olhar! Que gestos de rainha!
A srta. de La Mole acabava de chamar o irmão, no momento em que ele ia deixar o salão. O conde Norbert aproximou-se de Julien:

– Meu caro Sorel, disse ele, onde quer que eu lhe pegue à meia-noite para o baile do sr. de Retz? Ele encarregou-me expressamente de levá-lo.

– Sei bem a quem devo tantas amabilidades, respondeu Julien, curvando-se quase até o chão.

Seu mau humor, nada podendo censurar no tom de polidez e mesmo de interesse com que Norbert lhe falara, voltou-se contra a resposta que ele, Julien, havia dado àquele convite atencioso. Via nela um traço de baixeza.
À noite, ao chegar ao baile, ficou impressionado com a magnificência da mansão de Retz. O pátio de entrada estava coberto por um imenso toldo de brim avermelhado com estrelas douradas: nada mais elegante. Embaixo desse toldo, o pátio transformara-se num bosque de laranjeiras e loureiros floridos. Como tiveram o cuidado de enterrar suficientemente os vasos, os loureiros e as laranjeiras davam a impressão de sair do chão. O caminho que as carruagens percorriam estava coberto de saibro.
Essa ornamentação pareceu extraordinária ao nosso provinciano. Ele não fazia ideia de tal magnificência; num instante sua imaginação estava a mil léguas do mau humor. Na carruagem a caminho do baile, Norbert estava feliz, enquanto ele via tudo sombrio; logo que entraram no pátio, os papéis se inverteram.
Norbert mostrava-se sensível apenas a alguns detalhes que, em meio a tanta magnificência, tinham sido descuidados. Avaliava o gasto com cada rosa e, à medida que constatava uma soma elevada, Julien observou que mostrava quase ciúmes por isso e ficava de mau humor.
Quanto a ele, chegou seduzido, deslumbrado e quase tímido de tanta emoção, ao primeiro dos salões onde dançavam. À porta do segundo, havia tanta gente comprimida que lhe foi impossível avançar. A decoração desse segundo salão representava a Alhambra de Granada.

– É a rainha do baile, há que convir, dizia um jovem de bigode, cujo ombro batia no peito de Julien.

– A srta. Fourmont, que durante todo o inverno foi a mais bonita, respondeu-lhe o vizinho, sente que caiu para o segundo lugar: observe sua expressão singular.

– De fato, ela faz de tudo para agradar. Veja seu sorriso gracioso no momento em que está sozinha nesta contradança. Realmente, é impagável.

– A srta. de La Mole dá a impressão de ser dona do prazer que lhe dá seu triunfo, do qual tem plena consciência. Parece temer agradar a quem lhe fala.

– Exatamente! Eis aí a arte de seduzir.

Julien fazia vãos esforços para avistar essa mulher sedutora; sete ou oito homens mais altos que ele barravam-lhe a visão.

– Há muita coqueteria nessa reserva tão nobre, continuou o jovem de bigode.

– E os grandes olhos azuis que se abaixam lentamente no momento em que parecem estar a ponto de se traírem, acrescentou o vizinho. Palavra, nunca vi nada tão hábil.

– Veja como perto dela a elegante Fourmont parece vulgar, disse um terceiro.

– Esse ar de reserva quer dizer: quanta amabilidade teria por você, se fosse um homem digno de mim!

– E quem pode ser digno da sublime Mathilde? disse o primeiro: algum príncipe soberano, elegante, espirituoso, bonito, herói de guerra, e com vinte anos no máximo.

– O filho natural do imperador da Rússia... que, graças a esse casamento, ganharia uma soberania; ou simplesmente o conde de Thaler, com seu ar de camponês bem-vestido...

A porta ficou desimpedida, Julien pôde entrar.
Já que ela é tida como notável aos olhos desses bonecos, vale a pena estudá-la, pensou. Compreenderei o que é a perfeição para essa gente.
Quando ele a buscava com os olhos, Mathilde reparou nele. Meu dever me chama, pensou Julien; mas havia apenas mau humor em sua expressão. A curiosidade o fazia avançar com um prazer que o vestido bem abaixo dos ombros de Mathilde logo aumentou, em verdade de um modo pouco lisonjeiro para seu amor-próprio. Sua beleza tem juventude, ele pensou. Cinco ou seis jovens, entre os quais reconheceu os que ele ouvira à porta, estavam entre ela e ele.

– O senhor, que passou aqui todo o inverno, disse-lhe ela, não é verdade que este é o melhor baile da estação? 

Ele não respondia.

– Esta quadrilha de Coulon é admirável; e estas damas dançam-na de maneira perfeita. Os jovens viraram-se para ver quem era o homem afortunado do qual se exigia uma resposta. Esta não foi alentadora.

– Eu não saberia ser um bom juiz, senhorita; passo a vida escrevendo: é o primeiro baile de tal magnificência a que assisto.

Os jovens de bigode ficaram escandalizados.

– É um sábio, senhor Sorel, ela retomou com um interesse mais acentuado; assiste a esses bailes, a essas festas, como um filósofo, como J.-J. Rousseau. Essas loucuras o espantam sem seduzi-lo.

Uma palavra extinguiu a imaginação de Julien e expulsou de seu coração qualquer ilusão. Sua boca adquiriu uma expressão de desdém talvez um pouco exagerado.

– J.-J. Rousseau, respondeu, é para mim apenas um tolo, quando ousa julgar a alta sociedade; ele não a compreende, e tinha o coração de um lacaio que subiu na vida.

– Ele escreveu o Contrato social, disse Mathilde, com o tom da veneração.

– Embora pregasse a república e a derrubada das dignidades monárquicas, esse novo-rico embriagava-se de felicidade se um duque mudava a direção de seus passeios, depois do almoço, para acompanhar um de seus amigos.

– Ah! Sim, o duque de Luxembourg em Montmo rency acompanhou um certo sr. Coindet a caminho de Paris..., retomou a srta. de La Mole, com o prazer e o descaso da primeira demonstração de pedanteria. Estava embriagada com seu saber, mais ou menos como o acadêmico que descobre a existência do rei Feretrius. [1] O olhar de Julien permaneceu penetrante e severo. Mathilde tivera um momento de entusiasmo; a frieza de seu interlocutor desconcertou-a profundamente. Ficou tanto mais espantada porque era ela que tinha o costume de produzir esse efeito nos outros.

Naquele momento, o marquês de Croisenois avançava com desvelo em direção à srta. de La Mole. Ficou um instante a três passos dela, sem poder aproximar-se por causa da multidão. Olhava para ela, sorrindo do obstáculo. A jovem marquesa de Rouvray estava perto dele, era prima de Mathilde. Dava o braço ao marido, com quem estava casada há apenas quinze dias. O marquês de Rouvray, também muito jovem, mostrava aquele amor simplório de um homem que, tendo feito um casamento de conveniência arranjado pelos notários, encontra uma pessoa perfeitamente bela. O sr. de Rouvray ia ser duque com a morte de um tio bastante idoso.
Enquanto o marquês de Croisenois, não podendo atravessar a multidão, olhava Mathilde com ar sorridente, ela pousava seus grandes olhos, de um azul celeste, sobre ele e seus vizinhos. Nada mais vulgar do que todo esse grupo!, pensava. Eis ali Croisenois, que quer casar comigo; é doce, polido, tem maneiras perfeitas como o sr. de Rouvray. Sem o tédio que me causam, esses senhores seriam muito amáveis. Também ele me acompanhará ao baile com esse ar limitado e satisfeito. Um ano depois do casamento, minha carruagem, meus cavalos, meus vestidos, meu castelo a vinte léguas de Paris, tudo isso será o suficiente para fazer morrer de inveja uma mulher que subiu na vida, uma condessa de Roiville, por exemplo; e depois?...
Mathilde entediava-se na esperança. O marquês de Croisenois conseguiu aproximar-se e falar-lhe, mas ela devaneava sem escutá-lo. O ruído de suas palavras confundia-se para ela com o burburinho do baile. Seguia maquinalmente o olhar de Julien, que se afastara com um ar respeitoso, mas altivo e descontente. Avistou num canto, longe da multidão circulante, o conde Altamira, condenado à morte em seu país, como o leitor já sabe. No reinado de Luís XVI, uma de suas parentas desposara um certo príncipe de Conti; essa lembrança o protegia um pouco contra a polícia da Congregação.
Só a condenação à morte distingue um homem, pensou Mathilde: é a única coisa que não se compra.
Ah! É uma bela frase que acabo de dizer-me! Pena que não tenha ocorrido de modo a fazer-me honrar por ela! Mathilde tinha demasiado gosto para levar à conversação uma bela frase feita antecipadamente; mas também era muito vaidosa para não ficar encantada consigo mesma. Um ar de felicidade substitui em seu rosto o do tédio. O marquês de Croisenois, que continuava a falar-lhe, julgou entrever o sucesso e redobrou a verbosidade.
O que poderia objetar à minha bela frase uma pessoa mal-intencionada? pensou Mathilde. Eu responderia ao crítico: um título de barão, de visconde, é algo que se compra; uma medalha é algo que se oferece; meu irmão acaba de tê-la, e o que ele fez? Uma graduação obtém-se: com dez anos de guarnição ou um parente ministro da guerra consegue-se ser chefe de esquadrão, como Norbert. Uma grande fortuna!... É ainda o que há de mais difícil e, portanto, de mais meritório. Engraçado! É o contrário de tudo o que dizem os livros... Pois bem! Para a fortuna, casa-se com a filha do sr. Rothschild.
Realmente minha frase tem profundidade. A condenação à morte é ainda a única coisa que ninguém ousa solicitar.

– Conhece o conde Altamira?, perguntou ao sr. de Croisenois.

Ela parecia voltar de tão longe e essa pergunta tinha tão pouco a ver com o que o pobre marquês lhe dizia há cinco minutos, que a amabilidade dele ficou desconcertada. No entanto, era um homem de espírito e muito renomado como tal.
Mathilde é esquisita, ele pensou; é um inconveniente, mas ela oferece uma posição social tão boa a quem for seu marido! Não sei como faz esse marquês de La Mole; ele está ligado com o que há de melhor em todos os partidos; é um homem que não pode soçobrar. E, aliás, essa esquisitice de Mathilde pode passar por gênio. Com um alto nascimento e muita fortuna, o gênio de maneira nenhuma é ridículo, e que distinção oferece! Além disso, ela possui, quando quer, aquela mistura de espírito, de caráter e de oportunidade que faz a amabilidade perfeita... Sendo difícil fazer bem duas coisas ao mesmo tempo, o marquês respondeu com um ar vazio, como se recitasse uma lição:

– Quem não conhece esse pobre Altamira? E contou a ela a história de sua conspiração frustrada, ridícula, absurda.

– Muito absurda!, disse Mathilde, como se falasse a si mesma, mas ele agiu. Quero ver um homem; traga-o a mim, disse ela ao marquês, muito chocado.

O conde Altamira era um dos admiradores mais declarados do ar altivo e quase impertinente da srta. de La Mole; em sua opinião, ela era uma das pessoas mais belas de Paris.

– Como ela seria bela num trono! disse ao marquês de Croisenois, e deixou-se levar sem dificuldade.

Não faltam pessoas na sociedade que julgam nada haver de mais inconveniente que uma conspiração, cheira a coisa de jacobino. E o que há de mais feio que um jacobino sem sucesso?
O olhar de Mathilde zombava do liberalismo de Altamira com o sr. de Croisenois, mas ela o escutava com prazer.
Um conspirador no baile forma um belo contraste, pensou. Ela via neste, com seu bigode preto, a figura do leão quando repousa; mas logo notou que o espírito dele tinha uma única atitude: a utilidade, a admiração pela utilidade.
Com exceção do que podia dar a seu país o governo das duas Câmaras, o jovem conde achava que nada era digno de sua atenção. Com prazer deixou Mathilde, a mais sedutora figura do baile, porque viu entrar um general peruano.
Desiludido da Europa, o pobre Altamira reduzira-se a pensar que, quando os Estados da América do Sul fossem fortes e poderosos, poderiam devolver à Europa a liberdade que Mirabeau lhes enviara. [2]
Um turbilhão de jovens de bigode aproximara-se de Mathilde. Ela percebera que Altamira não fora seduzido e estava irritada com sua partida; via seus olhos negros brilharem ao falar com o general peruano. A srta. de La Mole olhava os jovens franceses com aquela seriedade profunda que nenhuma de suas rivais podia imitar. Qual deles, pensava, poderia fazer-se condenar à morte, mesmo supondo que tivesse todas as chances a seu favor?
Esse olhar singular lisonjeava os que tinham pouco espírito, mas inquietava os outros. Eles temiam a explosão de alguma frase picante e de difícil resposta.
Um alto nascimento oferece inúmeras qualidades cuja ausência me ofenderia; vejo isso pelo exemplo de Julien, pensava Mathilde; contudo, debilita aquelas qualidades da alma que fazem condenar à morte.
Naquele momento, alguém dizia perto dela: esse conde Altamira é o segundo filho do príncipe de San Nazaro Pimentel; foi um Pimentel que tentou salvar Conradin, decapitado em 1268. É uma das mais nobres famílias de Nápoles.
Aí está, pensou Mathilde, a prova elegante de minha máxima: o alto nascimento tira a força de caráter sem a qual ninguém faz-se condenar à morte! Estou predestinada a dizer disparates esta noite. Como sou apenas uma mulher como as outras, então vamos dançar! Cedeu às instâncias do marquês de Croisenois que há uma hora solicitava uma dança. Para distrair-se de seu infortúnio em filosofia, Mathilde quis ser perfeitamente sedutora. O sr. de Croisenois ficou encantado.
Mas nem a dança, nem o desejo de agradar um dos homens mais atraentes da corte, nada conseguiu distrair Mathilde. Era impossível ter mais sucesso. Ela era a rainha do baile, percebia isso, mas com frieza.
Que vida apagada vou passar com uma pessoa como Croisenois!, ela pensava, quando ele a reconduzia a seu lugar uma hora depois... Onde está o prazer para mim, acrescentou tristemente, se, depois de seis meses de ausência, não o encontro num baile que faz a inveja de todas as mulheres de Paris? Além disso, estou cercada de homenagens de uma sociedade que não posso imaginar mais bem composta. Não há aqui burgueses, com exceção talvez de um ou outro, como Julien. No entanto, acrescentava com uma tristeza crescente, que vantagens o destino me deu? Ilustração, fortuna, juventude... Tudo, menos a felicidade!
As mais duvidosas de minhas vantagens são ainda aquelas de que me falaram durante a noitada: no espírito acredito, pois não resta dúvida que amedronto a todos. Se ousam abordar um assunto sério, ao cabo de cinco minutos chegam, sem fôlego e como quem faz uma grande descoberta, a uma conclusão que eu vinha lhes repetindo há uma hora. Sou bela, tenho essa vantagem pela qual Madame de Staël teria sacrificado tudo, e no entanto morro de tédio. Há uma razão para que me entedie menos quando tiver mudado meu nome pelo do marquês de Croisenois?
Mas, meu Deus!, acrescentou, quase com vontade de chorar, ele não é um homem perfeito? É a obra-prima da educação deste século; não se pode olhá-lo sem que encontre algo amável e mesmo espirituoso a nos dizer; é corajoso... Mas esse Sorel é singular, ela pensou, e seu olhar passou do abatimento à irritação. Disse-lhe que precisava falar com ele, e ele não se digna aparecer!


continua página 202...

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[1] Alusão a um sábio que, como conta Stendhal em Promenades dans Rome, traduziu “Júpiter Feretrius” por “Júpiter e o rei Feretrius”. (N.T.)

[2] Esta folha, redigida antes de 25 de julho de 1830, foi impressa em 4 de agosto [nesse intervalo ocorreu a insurreição popular que pôs fim à Restauração e instituiu a Monarquia de Julho] (Nota do editor da 1a edição francesa).

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.


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