quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (c)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica

continuando...



Enquanto, no processo opressor, as elites vivem da “morte em vida” dos oprimidos e só na relação vertical entre elas e eles se autenticam, no processo revolucionário, só há, um caminho para a autenticidade da liderança que emerge: “morrer” para reviver através dos oprimidos e com eles.

Na verdade, enquanto no primeiro, é lícito dizer que alguém oprime alguém, no segundo, já não se pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão. Com isto, não queremos diminuir o valor e a importância da liderança revolucionária. Pelo contrário, estamos enfatizando esta importância e este valor. E haverá importância maior que conviver com os oprimidos, com os esfarrapados do mundo, com os “condenados da terra”?

Nisto, a liderança revolucionária deve encontrar não só a sua razão de ser, mas a razão de uma sã alegria. Por sua natureza, ela pode fazer o que a outro, por sua natureza, se proíbe de fazer, em termos verdadeiros.

Daí que toda aproximação que aos oprimidos façam os opressores, enquanto classe, os situa inexoravelmente na falsa generosidade a que nos referimos no primeiro capítulo deste trabalho. Isto não pode fazer a liderança revolucionária: ser falsamente generosa. Nem tampouco dirigista.

Se as elites opressoras se fecundam, necrofilamente, no esmagamento dos oprimidos, a liderança revolucionária somente na comunhão com eles pode fecundar-se.

Esta é a razão pela qual o quefazer opressor não pode ser humanista, enquanto o revolucionário necessariamente o é. Tanto quanto o desumanismo dos opressores, o humanismo revolucionário implica na ciência. Naquele, esta se encontra a serviço da “reificação”; nesta, a serviço da humanização. Mas, se no uso da ciência e da tecnologia para “reificar”, o sine qua desta ação é fazer dos oprimidos sua pura incidência, já, não é o mesmo o que se impõe no uso da ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui, os oprimidos ou se tornam sujeitos, também, do processo, ou continuam “reificados”.

E o mundo não é um laboratório de anatomia nem os homens são cadáveres que devam ser estudados passivamente.

O humanista científico revolucionário não pode, em nome da revolução, ter nos oprimidos objetos passivos de sua análise, da qual decorram prescrições que eles devam seguir.

Isto significa deixar-se cair num dos mitos da ideologia opressora, o da absolutização da ignorância, que implica na existência de alguém que a decreta a alguém.

No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer- se tem nos outros o seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra “verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os oprimidos, roubados de sua palavra.

Desenvolve-se no que rouba a palavra dos outros, uma profunda descrença neles, considerados como incapazes. Quanto mais diz a palavra sem a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder e o gosto de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem.

Desta forma, é impossível o diálogo. Isto é próprio das elites opressoras que, entre seus mitos, têm de vitalizar mais este, com o qual dominam mais.

A liderança revolucionária, pelo contrário, científico-humanista, não pode absolutizar a ignorância das massas. Não pode crer neste mito. Não tem sequer o direito de duvidar, por um momento, de que isto é um mito.

Não pode admitir, como liderança, que só ela sabe e que só ela pode saber – o que seria descrer das massas populares. Ainda quando seja legítimo reconhecer-se em um nível de saber revolucionário, em função de sua mesma consciência revolucionária, diferente do nível de conhecimento ingênuo das massas, não pode sobrepor-se a este, com, o seu saber.

Por isto mesmo é que não pode sloganizar as massas, mas dialogar com elas para que o seu conhecimento experiencial em torno da realidade, fecundado pelo conhecimento crítico da liderança, se vá transformando em razão da realidade.

Assim como seria ingênuo esperar das elites opressoras a denúncia deste mito da absolutização da ignorância das massas, é uma contradição que a liderança revolucionária não o faça e, maior contradição ainda, que atue em função dele.

O que tem de fazer a liderança revolucionária é problematizar aos oprimidos, não só este, mas todos os mitos de que se servem as elites opressoras para oprimir. Se assim não se comporta, insistindo em. imitar os opressores em seus métodos dominadores, provavelmente duas respostas possam dar as massas populares. Em determinadas circunstâncias históricas, se deixarem “domesticar” por um novo conteúdo nelas depositado. Noutras, se assustarem diante de uma “palavra” que ameaça ao opressor “hospedado” nelas. [1]


[1] Às vezes, nem sequer esta palavra é dita. Basta a presença de alguém (não necessariamente pertencente a um grupo revolucionário) que possa ameaçar ao opressor "hospedado" nas massas, para que elas, assustadas, assumam posturas destrutivas. Contou-nos um aluno nosso, de um país latino - americano, que, em certa comunidade camponesa indígena de seu país, bastou que um sacerdote fanático denunciasse a presença de dois "comunistas" na comunidade, “pondo em risco a fé católica", para que, na noite deste mesmo dia, os camponeses, unânimes, queimassem vivos aos dois simples professores primários que exerciam seu trabalho de educadores infantis. Talvez esse sacerdote tivesse visto, na casa daqueles infelizes maestros rurales algum livro em cuja capa houvesse a cara de um homem barbado.

Em qualquer dos casos, não se fazem revolucionários. No primeiro, a revolução é um engano; no segundo, uma impossibilidade.

Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, “que sendo demorado o processo [2] dialógico – o que não é verdade – se deve fazer a revolução sem comunicação, através dos ‘comunicados' e, depois de feita, então, se desenvolverá um amplo esforço educativo. Mesmo porque, continuam, não é possível fazer educação antes da chegada ao poder. Educação libertadora.”


[2] Salientamos, mais uma vez, que não estabelecemos nenhuma dicotomia entre o diálogo e a ação revolucionária, como se houvesse um tempo de diálogo, e outro, diferente, de revolução. Afirmamos, pelo contrário, que o diálogo é a “essência” da ação revolucionária. Daí que na teoria desta ação, seus atores, intersubjetivamente, incidam sua ação sobre o objetivo, que é a realidade que os mediatiza, tendo, como objetivo, através da transformação desta, a humanização dos homens. Isto não ocorre na teoria da ação opressora, cuja “essência” é antidialógica. Nesta, o esquema se simplifica. Os atores têm, como objetos de sua ação, a realidade e os oprimidos, simultaneamente e, como objetivo, a manutenção da opressão, através da manutenção da realidade opressora.

Há alguns pontos fundamentais a analisar nas afirmações dos que assim pensam.

Acreditam (não todos), na necessidade do diálogo com as massas, mas não creem na sua viabilidade antes da chegada ao poder. Ao admitirem que não é possível uma forma de comportamento educativo - critica, antes da chegada ao poder por parte da liderança, negam o caráter pedagógico da revolução, como Revolução cultural. Por outro lado, confundem o sentido pedagógico da revolução com a nova educação a ser instalada com a chegada ao poder.

A nossa posição, já afirmada e que se vem afirmando em todas as páginas deste ensaio, é que seria realmente ingenuidade esperar das elites opressoras uma educação de caráter libertário. Mas, porque a revolução tem, indubitavelmente, um caráter pedagógico que não pode ser esquecido, na razão em que é libertadora ou não é revolução, a chegada ao poder é apenas um momento, por mais decisivo que seja. Enquanto processo, o “antes” da revolução está na sociedade opressora e é apenas aparente.

A revolução se gera nela como ser social e, por isto, na medida em que é ação cultural, não pode deixar de corresponder às potencialidades do ser social em que se gera.

É que todo ser se desenvolve (ou se transforma) dentro de si mesmo, no jogo de suas contradições.

Os condicionamentos externos, ainda que necessários, só são eficientes se coincidem com aquelas potencialidades [3].


[3] No ensaio já citado, Ação Cultural para Liberdade, discutimos mais detidamente as relações entre ação cultural e revolução cultural.

O novo da revolução nasce da sociedade velha, opressora, que foi superada. Daí que a chegada ao poder que continua processo, seja apenas, como antes dissemos, um momento decisivo deste.

Por isto é que, numa visão dinâmica e não estática da revolução, ela não tenha um antes e um depois absolutos, de que a chegada ao poder fosse o ponto de divisão.

Gerando-se nas condições objetivas, o que busca é a superação da situação opressora com a instauração de uma sociedade de homens em processo de permanente libertação.

O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz “revolução cultural” também, tem de acompanhá-la em todas as suas fases.

É ele ainda um dos eficientes meios de evitar que o poder revolucionário se institucionalize, estratificando-se em “burocracia” contra-revolucionária, pois que a contra-revolução também é dos revolucionários que se tornam reacionários.

E, se não é possível o diálogo com as massas populares antes da chegada ao poder, porque falta a elas experiência do diálogo, também não lhes é possível chegar ao poder, porque lhes falta igualmente experiência do poder. Precisamente porque defendemos uma dinâmica permanente no processo revolucionário, entendemos que é nesta dinâmica, na práxis das massas com a liderança revolucionária, que elas e seus líderes mais representativos aprenderão tanto o diálogo quanto o poder. Isto nos parece tão óbvio quanto dizer que um homem não aprende a nadar numa biblioteca, mas na água.

O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos uma tática a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos homens para a “pronúncia” do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização.

Se “uma ação livre somente o é na medida em que o homem transforma seu mundo e a si mesmo, se uma condição positiva para a liberdade é o despertar das possibilidades criadoras humanas, se a luta por uma sociedade livre não o é a menos que, através dela, seja criado um sempre maior grau de liberdade individual” [4], se há de reconhecer ao processe revolucionário o seu caráter eminentemente pedagógico. De uma pedagogia problematizante e não de uma “pedagogia” dos “depósitos”, "bancária”. Por isto é que o caminho da revolução é o da abertura às massas populares, não o do fechamento a elas. É o da convivência com elas, não o da desconfiança delas. E, quanto mais a revolução exija a sua teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar com as massas, para que possa estar contra o poder opressor.


[4]Ver Mao Tsé- Tung, On Contradictions. “A free action (diz Gajo Petrovic), can only be one by which a man changes his world and himself”. (...) A positive condition of freedom is the knowledge of the limits of necessity, the awa reness of human creative possibilites. (...) The struggle for a free society is not a struggle for a free society unless through it an ever greater degree of individual freedom is created”. Gajo Petrovic, Man and Freedom, In Socialism Humanism. Editado por Erich Fromm, Nova Iorque, Anchor Books, 1966, pp. 274 -5-6. Do mesmo autor, é importante a leitura de Marx in the Mid -Twentieth Century. Anchor, 1967.


continua página 078...



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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (d)

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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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