segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Úrsula - IV A primeira impressão

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



IV - A primeira impressão 



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Lágrimas tinha ele na voz e no coração; que lha embargaram e o impediram de atar o fio da sua narração. Fez por último um esforço sobre si e começou:

— Úrsula, se eu vos não encontrara meiga, e desvelada, no caminhar de minha amarga existência, odiosa me fora ela, e a recordação do passado seria para mim um prolongado martírio.

O segredo de minhas dores seria para sempre sepultado no mais fundo do meu coração; mas eu vos amo, e o vosso amor dá-me forças para tamanho sacrifício. Ouvi-me, pois, e perdoai-me.

Só apartei-me de minha mãe quando fui para São Paulo cursar as aulas de Direito, e seis anos de saudades aí passei, tendo-a sempre em meus pensamentos; porque amava-a com uma ternura que só vós podeis compreender. Num dia recebi o grau de bacharel e noutro segui para a minha terra natal.

Ah! Como me transbordava a alma de prazer! Eu vinha rever aquela que cercara de amor e de cuidados a minha infância!

Afeição alguma me pôde reter em São Paulo; minha mãe, o lugar onde eu tive meu berço, meus amigos de infância, não os podia esquecer. Parti pois com prazer duma terra onde tinha vivido longos anos de saudade e de pesares.

E eu vi essa mulher, que me dera a vida, essa mulher, que era ídolo do meu coração, e lancei-me nos seus braços, chorando de alegria por tornar a vê-la; mas ela estava desfeita, e suas feições denunciavam grande abatimento moral.

Nunca tive felicidade a que se não viesse misturar sentimentos de angústia; nunca fui completamente feliz.

— Sê-lo-eis ainda – disse-lhe a donzela com indefinível ternura.

— Sim, agora o creio – respondeu ele com confiança. — Vós, Úrsula, sois a mulher com quem sonhava minha alma em seu contínuo devanear.

— E junto de minha pobre mãe – continuou o cavaleiro, após breve silêncio – eu vi uma mulher bela e sedutora, dessas que enlouquecem desde a primeira vista.

No primeiro transporte de alegria, enquanto minha mãe chorava de satisfação, ela com os olhos fitos em um bordado, que tinha entre as mãos, parecia distraída; e eu revia-me na sua beleza tão pura como a estrela da manhã.

Oh! Minha doce Úrsula, eu amei a essa encantadora donzela, e o meu amor foi puro, arrebatador; mas ela não o compreendeu.

— Meu filho – disse-me minha mãe, apresentando-me a formosa donzela – eis Adelaide, a minha querida Adelaide. É filha de minha prima, e órfã de mãe e pai. Recolhi-a e amo-a como se fora minha própria filha.

— Tancredo – continuou – não poderei esperar de ti desvelada proteção para aquela que adotei por filha, para aquela que tem enxugado as lágrimas de tua mãe na ausência de seu filho?!...

— Minha Úrsula adorada, de joelhos prometi a minha infeliz mãe ser o escudo da formosa órfã.

Então ela, em sinal de reconhecimento, estendeu-me a mão, que apertei com enlevo. Creio que meus olhos exprimiam algum sentimento terno a seu respeito; porque seu rosto se tingiu de carmim, e depois um débil suspiro, como que a muito reprimido, saiu meio abafado de seus róseos lábios.

Ouvi-o, e julguei, – louco de mim! – que esse suspiro era a primeira expressão de um repentino e profundo afeto: julguei que sonhava, porque nunca havia sentido o que então se passava em mim.

Mais tarde, veio meu pai felicitar-me. Mostrava-se feliz e orgulhoso de seu filho; e abraçou-me com transporte.

Não sei por quê; mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura.

Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher.

Quantas vezes na infância, malgrado meu, testemunhei cenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que revoltavam! E meu coração alvoroçava-se nessas ocasiões apesar das prudentes admoestações de minha pobre mãe.

É que as lágrimas da infeliz, e os desgostos que a minavam, tocavam o fundo da minha alma.

E meu pai ressentia-se da afeição que tributava a esse ente de candura e bondade; mas foram as suas carícias, os seus meigos conselhos, que soaram a meus ouvidos, que me entretiveram nos primeiros anos; ao passo que o gênio rude de meu pai me amedrontava.

O desprazer de ver preferida a si a mulher que odiava, fez com que meu implacável pai me apartasse dela seis longos anos, não me permitindo uma só visita ao ninho paterno; e minha mãe finava-se de saudades; mas sofria a minha ausência, porque era a vontade de seu esposo. Mas eu voltava agora para o seu amor, e seus dias vinham a ser belos e cheios de doce esperança.

Entretanto, eu também era feliz. Aprazia-me ver Adelaide, no arrebol da vida, tão casta, tão encantadora, compartilhando ora a dor, que nos oprimia, ora o prazer que enchia os nossos corações. Em Adelaide minha mãe encontrara uma desvelada amiga; a sua extrema beleza, e a dedicação àquela mulher, que eu tanto amava, atraíam-me incessantemente para ela; e a primeira vez que a vi, o meu coração adivinhou que havia de amá-la.

Sim, amei-a loucamente, amei-a com todas as forças de um primeiro amor, e quando um dia lhe revelei o profundo afeto que me inspirava, conheci que era correspondido, não obstante o ela dizer-me:

— Tancredo, sou pobre, e teu pai se há de opor a semelhante união.

— Ah! – prorrompeu o cavaleiro com azedume mal disfarçado – mulher infame e ambiciosa!

E minha mãe conheceu a afeição que nos ligava, e estremeceu de horror.

— Meu filho, – disse-me um dia, chorando – tu amas Adelaide, eu o tenho adivinhado; porque ao coração de uma mãe nada se oculta. Vais amargurar a tua existência...

Tancredo, meu filho, não cedas a um amor que te pode vir a ser funesto. Adelaide é pobre órfã, e teu pai não consentirá que sejas seu esposo.

Adelaide entrou, sorriu-se para mim, e foi abraçar minha mãe, e eu continuei a conversação.

— Sim, minha querida mãe, amo Adelaide, e seu coração retribui-me, meu pai ama-me, não poderá portanto contrariar a minha primeira inclinação. Não, minha mãe, abençoai primeiro que ele o nosso amor; porque esta há de ser a esposa do vosso filho. Não é verdade, minha Adelaide?

Ela corou de pejo, e redarguiu:

— Tancredo, sou uma pobre órfã, vosso pai...

— Oh! Pelo céu – interrompi-a – pelo céu... Meu pai não tem coração de tigre.

— Ah! Meu filho! – objetou minha pobre mãe com voz tão trêmula que semelhou um choro amargo: – Receio...

— Receais!...

— Receio a prepotência de teu pai, e uma oposição tenaz e exorbitante.

— Tendes razão! – disse-lhe, porque as recordações do passado se erguiam ante mim como pavorosos fantasmas de dor e de vergonha. – Creio no entanto que ele cederá a seu filho o único favor que lhe há pedido em toda a vida.

— Duvido! – replicou, abanando tristemente a cabeça – Meus filhos, o céu que lhe ilumine as trevas do pensamento cobiçoso e que eu os veja unidos e felizes.

— Sim, minha boa e terna mãe – lhe tornei com convicção – haveis de ver-nos felizes, e vós o sereis também. Estou que meu pai não me poderá negar a esposa que meu coração escolheu.

Notei que meu pai começou a ser mais comunicativo e mais tratável, e com isso minhas esperanças robusteciam e minha mãe cedeu a essa enganosa ilusão.

Oh! Como escoaram felizes esses dias! Eu amava, e meu amor correspondido bastava para a minha ventura.

Todo embevecido no meu amor, não curava de meus interesses e nem de ilustrar meu nome na carreira pública. Toda minha ambição era essa mulher tão loucamente amada. Mas isto não podia durar muito – era ventura demais para um pobre mortal.

Era o dia dos anos de Adelaide. Esse dia! Que amargas recordações me traz!...

Decidi-me a ir comunicar a meu pai o segredo do meu coração – esse segredo que me transbordava já da alma, e que ele fingia não conhecer.

— Qualquer que seja a impressão que a meu pai possam causar minhas palavras, – disse a minha mãe – Adelaide há de ser minha.

Ela olhando-me com severidade, redarguiu:

— Tancredo, não chames sobre ti a cólera de teu pai. Oh! Deus não protege a quem se opõe à vontade paterna!

Baixei os olhos confuso e magoado, e quando os ergui duas lágrimas lhe sulcavam o rosto.

— Oh! Minha pobre mãe – exclamei reconhecido – perdoai-me!

Então ela sorriu-se, porém seu sorriso era amargo e terno a um tempo!

Ah! Ela temia seu esposo, respeitava-lhe a vontade férrea; mas com uma abnegação sublime quis sacrificar-se por seu filho.

— Irei eu – disse-me, e saiu.

Corri para o meu quarto, contíguo ao de meu pai, e ouvi tudo quanto se passou entre ele e minha mãe.

O que ouvi, ainda hoje enche-me de espanto, e reconheci desde então que meu pai era mais desapiedado e cruel do que imaginava.

E minha desditosa mãe tudo arrostou, porque era a causa de seu filho que advogava! Era às vezes tão débil e trêmula a sua voz, e tão áspera e violenta a de meu pai, que seus acentos chegavam a meus ouvidos como a queixa ao longe de sentida rola.

Mas outras vezes vinha ela aos meus ouvidos, e eu acreditei que era minha mãe uma santa.

Deus meu! Parece-me que inda a escuto!

A mansidão com que se exprimia desarmaria a uma fera; mas meu pai irritado e fora de si exclamou com voz terrível, que ecoou medonha em meus ouvidos.

— E acreditastes, senhora, que eu consentiria em semelhante união? Estais louca? Sem dúvida perdestes a razão. Ide-vos, e não continueis a alimentar no coração desse louco uma esperança que jamais lhe deveria ter nascido.

— Mas, senhor... – aventurou-se a retorquir-lhe minha desvelada mãe – Adelaide é a filha de uma parenta querida! Amo-a; e porque não será ela digna de meu filho?...

— Calai-vos, vo-lo ordeno. – interrompeu aceso em ira.

— Julgais que por ser essa mísera órfã vossa parenta, e porque a amais, hei de desposá-la a meu filho só por ser essa a vossa vontade? Decididamente que enlouquecestes.

E sorriu-se, mas com um sorriso sardônico que me gelou de angústia.

Não se aterrou, e respondeu-lhe com uma voz tão débil, que não ouvi; mas tão meiga e queixosa, que o acalmou um pouco.

— Louvo-vos a generosidade, minha nobre mensageira; – disse pouco depois com tom de sarcasmo, que me fulminou – guardai para uma esposa mais digna de Tancredo essa parte de vossa fortuna com que pretendeis tão desinteressadamente dotar a vossa Adelaide.

E terminou isto com estrepitosas gargalhadas.

— Oh! Senhor, pelo amor do céu! É só para me roubardes a última ventura de um coração já morto pelos desgostos, que me negais o primeiro favor, que vos hei pedido! Que vos hei feito para merecer tanta dureza da vossa parte? Que vos há feito meu filho para vos opordes a sua felicidade?! Oh! Quanto sois implacável em odiar-me... Sim, a lealdade e o amor de uma esposa, que sempre vos acatou, merece-vos tão prolongado, desabrido e maligno tratamento?!

Perdoai-me... Mas tanto tenho sofrido; tantas lágrimas me têm sulcado o rosto desfeito pelos pesares; tanta dor me tem amargurado a alma, que estas palavras, nascidas do íntimo do peito, pungentes, como toda a minha existência, não vos podem ofender. Arranca-as, senhor, dos abismos da minha alma a agonia lenta, que nela tem gerado o desprezo e o desamor com que me tendes tratado!

E extenuada por tamanho esforço e pela dor não pôde continuar.

E meu pai ouvia em silêncio: quando ela terminou suas magoadas expressões, ele, com tom seco e firme, tão estranho aos queixumes da esposa, como se os não ouvira, exclamou:

— Ide-vos! – e acrescentou no mesmo tom – Dizei a vosso filho que a vontade de seu pai não a domastes vós, e ninguém o conseguirá.

— E nem uma palavra de esperança?... – soluçou minha infeliz mãe.

— Ide-vos – tornou-lhe o endurecido esposo.

Ela obedeceu.



continua pág 53...


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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.


Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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