Diante da Dor dos Outros
3.
continuando....
Callot teve sucessores, como Hans Ulrich Franck, um artista alemão menor que, em 1643, perto do fim da Guerra dos Trinta Anos, começou a fazer aquilo que viria a constituir (em 1656) uma série de 25 gravuras em água forte, retratando o assassínio de camponeses por soldados. Mas a suprema concentração nos horrores da guerra e na vilania dos soldados chega ao paroxismo em Goya, no início do século XIX. Los desastres de lª guerra (As desgraças da guerra), uma sequência numerada de 83 gravuras em água-forte feitas entre 1810 e 1820 (e só publicadas pela primeira vez, reduzidas a apenas três gravuras, em 1863, portanto 35 anos após a morte do artista), retrata as atrocidades perpetradas pelos soldados de Napoleão ao invadir a Espanha, em 1808, para sufocar a insurreição contra o domínio francês. As imagens de Goya comovem o espectador quase ao ponto do horror. Todos os ornamentos do espetacular foram suprimidos: a paisagem é uma atmosfera, uma escuridão, apenas ligeiramente esboçada. A guerra não é um espetáculo. E a série de gravuras de Goya não é uma narrativa: cada imagem, legendada por uma breve frase que deplora a iniquidade dos invasores e a monstruosidade do sofrimento que infligiram, se sustenta de forma independente das demais. O efeito cumulativo é devastador.
A legenda de uma foto é, tradicionalmente, neutra, informativa: uma data, um lugar, nomes. Uma foto de reconhecimento da Primeira Guerra Mundial (a primeira guerra em que câmeras foram amplamente utilizadas pelo serviço militar de informações) dificilmente seria legendada assim: “Não vejo a hora de devastar tudo isto!”, e do mesmo modo não anotariam no raio X de uma fratura múltipla: “O paciente na certa vai ficar manco!”. Tampouco deveria haver a necessidade de falar pela foto, na voz do fotógrafo, dando garantias da veracidade da imagem, como faz Goya em As desgraças da guerra, ao escrever ao pé de uma imagem: Eu vi isto (Yo lo vi). E ao pé de outra: Esta é a verdade (Esto es lo verdadero). É claro que o fotógrafo o viu. E, a menos que haja algum embuste ou deturpação, é a verdade.
A linguagem comum estabelece a diferença entre imagens feitas à mão, como as de Goya, e fotos, mediante a convenção de que artistas “fazem” desenhos e pinturas, ao passo que fotógrafos “tiram” fotos. Mas a imagem fotográfica, na medida em que constitui um vestígio (e não uma construção montada com vestígios fotográficos dispersos), não pode ser simplesmente um diapositivo de algo que não aconteceu. É sempre a imagem que alguém escolheu; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir. Além disso, modificar fotos precede de muito tempo a era da fotografia digital e das manipulações do programa Photoshop: para os fotógrafos, sempre foi possível adulterar uma foto. Uma pintura ou um desenho são considerados uma fraude quando se revela não terem sido feitos pelo artista a quem foram atribuídos. Uma foto — ou um documento filmado, exibido na tevê ou na internet — é considerada uma fraude quando se revela que engana o espectador quanto à cena que se propõe retratar.
O fato de as atrocidades perpetradas na Espanha pelos soldados franceses não haverem acontecido exatamente como estão retratadas — digamos, a vítima não era assim, não aconteceu perto de uma árvore — não chega a desqualificar As desgraças da guerra. As imagens de Goya são uma síntese. Garantem: coisas assim aconteceram. Em contraste, uma só foto ou diafilme garante representar exatamente o que estava diante da lente da câmera. Não se espera que uma foto evoque, mas sim que mostre. Por isso as fotos, ao contrário das imagens feitas à mão, podem servir como provas. Mas provas de quê? A insistente suspeita de que a foto de Capa intitulada “Morte de um soldado republicano” talvez não mostre o que alega (uma hipótese é que a foto registra um treinamento, perto da linha de frente) continua a assediar as discussões sobre a fotografia de guerra. Todos são literalistas quando se trata de fotos.
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
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