quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)

Diante da Dor dos Outros




para David



… aux vaincus!
Baudelaire



A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson




3.


continuando....


Callot teve sucessores, como Hans Ulrich Franck, um artista alemão menor que, em 1643, perto do fim da Guerra dos Trinta Anos, começou a fazer aquilo que viria a constituir (em 1656) uma série de 25 gravuras em água forte, retratando o assassínio de camponeses por soldados. Mas a suprema concentração nos horrores da guerra e na vilania dos soldados chega ao paroxismo em Goya, no início do século XIX. Los desastres de lª guerra (As desgraças da guerra), uma sequência numerada de 83 gravuras em água-forte feitas entre 1810 e 1820 (e só publicadas pela primeira vez, reduzidas a apenas três gravuras, em 1863, portanto 35 anos após a morte do artista), retrata as atrocidades perpetradas pelos soldados de Napoleão ao invadir a Espanha, em 1808, para sufocar a insurreição contra o domínio francês. As imagens de Goya comovem o espectador quase ao ponto do horror. Todos os ornamentos do espetacular foram suprimidos: a paisagem é uma atmosfera, uma escuridão, apenas ligeiramente esboçada. A guerra não é um espetáculo. E a série de gravuras de Goya não é uma narrativa: cada imagem, legendada por uma breve frase que deplora a iniquidade dos invasores e a monstruosidade do sofrimento que infligiram, se sustenta de forma independente das demais. O efeito cumulativo é devastador.

As crueldades horripilantes em As desgraças da guerra têm o intuito de abalar, chocar, ferir o espectador. A arte de Goya, como a de Dostoiévski, parece representar um ponto crucial na história dos sentimentos morais e da dor — igualmente profunda, original, exigente. Com Goya, tem início na arte um novo padrão de receptividade aos sofrimentos. (E novos temas para a solidariedade: como, por exemplo, na sua pintura de um operário ferido, carregado para fora de um prédio em construção.) O relato das crueldades da guerra é construído como um ataque à sensibilidade do espectador. As palavras expressivas gravadas ao pé de cada imagem constituem comentários provocadores. Enquanto a imagem, como toda imagem, é um convite ao olhar, a legenda, na maioria das vezes, insiste na dificuldade exatamente de olhar. Uma voz, supostamente do artista, atormenta o espectador: você suporta olhar para isto? Uma legenda declara: Não se pode olhar (No se puede mirar.) Outra diz: Isto é ruim (Esto es malo). E outra retruca: Isto é pior (Esto es peor). Outra esbraveja: Isto é o pior! (Esto es lo peor!). Outra proclama: Bárbaros! (Bárbaros!). Que loucura! (Que locura!), grita outra. E uma outra: É demais! (Fuerte cosa es!). E outra: Por quê? (¿Por qué?).

A legenda de uma foto é, tradicionalmente, neutra, informativa: uma data, um lugar, nomes. Uma foto de reconhecimento da Primeira Guerra Mundial (a primeira guerra em que câmeras foram amplamente utilizadas pelo serviço militar de informações) dificilmente seria legendada assim: “Não vejo a hora de devastar tudo isto!”, e do mesmo modo não anotariam no raio X de uma fratura múltipla: “O paciente na certa vai ficar manco!”. Tampouco deveria haver a necessidade de falar pela foto, na voz do fotógrafo, dando garantias da veracidade da imagem, como faz Goya em As desgraças da guerra, ao escrever ao pé de uma imagem: Eu vi isto (Yo lo vi). E ao pé de outra: Esta é a verdade (Esto es lo verdadero). É claro que o fotógrafo o viu. E, a menos que haja algum embuste ou deturpação, é a verdade.

A linguagem comum estabelece a diferença entre imagens feitas à mão, como as de Goya, e fotos, mediante a convenção de que artistas “fazem” desenhos e pinturas, ao passo que fotógrafos “tiram” fotos. Mas a imagem fotográfica, na medida em que constitui um vestígio (e não uma construção montada com vestígios fotográficos dispersos), não pode ser simplesmente um diapositivo de algo que não aconteceu. É sempre a imagem que alguém escolheu; fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir. Além disso, modificar fotos precede de muito tempo a era da fotografia digital e das manipulações do programa Photoshop: para os fotógrafos, sempre foi possível adulterar uma foto. Uma pintura ou um desenho são considerados uma fraude quando se revela não terem sido feitos pelo artista a quem foram atribuídos. Uma foto — ou um documento filmado, exibido na tevê ou na internet — é considerada uma fraude quando se revela que engana o espectador quanto à cena que se propõe retratar.

O fato de as atrocidades perpetradas na Espanha pelos soldados franceses não haverem acontecido exatamente como estão retratadas — digamos, a vítima não era assim, não aconteceu perto de uma árvore — não chega a desqualificar As desgraças da guerra. As imagens de Goya são uma síntese. Garantem: coisas assim aconteceram. Em contraste, uma só foto ou diafilme garante representar exatamente o que estava diante da lente da câmera. Não se espera que uma foto evoque, mas sim que mostre. Por isso as fotos, ao contrário das imagens feitas à mão, podem servir como provas. Mas provas de quê? A insistente suspeita de que a foto de Capa intitulada “Morte de um soldado republicano” talvez não mostre o que alega (uma hipótese é que a foto registra um treinamento, perto da linha de frente) continua a assediar as discussões sobre a fotografia de guerra. Todos são literalistas quando se trata de fotos.


continua pág 127...

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Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (3)


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."



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