terça-feira, 23 de março de 2021

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.3) - ... as suas nove noites de velório

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(2.3)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





Fizeram-lhe as suas nove noites de velório. No tumulto que se reunia no pátio para tomar café, contar piadas e jogar cartas, Amaranta teve ocasião de confessar o seu amor a Pietro Crespi, que poucas semanas antes tinha formalizado o seu compromisso com Rebeca e estava instalando uma loja de instrumentos musicais e brinquedos de corda, no mesmo bairro onde vegetavam os árabes que em outros tempos trocavam bugigangas por papagaios e que o povo conhecia como a Rua dos Turcos. O italiano, cuja cabeça coberta de cachos lustrosos suscitava nas mulheres uma irreprimível necessidade de suspirar tratou Amaranta como uma menina caprichosa a quem não valia a pena levar muito a sério.

— Tenho um irmão mais novo — disse a ela. — Vai vir me ajudar na loja.

Amaranta sentiu-se humilhada e disse a Pietro Crespi, com rancor virulento, que estava disposta a impedir o casamento irmã ainda que tivesse que atravessar na porta o seu próprio cadáver. Impressionou-se tanto o italiano com essa dramática ameaça que não resistiu à tentação de comentá-la com Rebeca. Foi assim que a viagem de Amaranta, sempre adiada pelas ocupações de Úrsula, se aprontou em menos de semana. Amaranta não opôs resistência, mas quando deu em Rebeca o beijo de despedida, sussurrou-lhe ao ouvido:

— Não tenha ilusões. Ainda que me levem até o fim do mundo eu encontro a maneira de impedir que você se case, mesmo que tenha de matá-la.

Com a ausência de Úrsula, com a presença invisível de Melquíades, que continuava o seu perambular sigiloso pelos quartos, a casa pareceu enorme e vazia. Rebeca tinha ficado encarregada da ordem doméstica, enquanto a índia se ocupava da padaria. Ao anoitecer, quando Pietro Crespi chegava precedido de um fresco hálito de alfazema e trazendo sempre um brinquedo de presente, a noiva recebia a sua visita na sala principal, com portas e janelas abertas para estar a salvo de toda suspeita. Era uma precaução desnecessária, porque o italiano tinha demonstrado ser tão respeitoso que nem sequer pegava na mão da mulher que seria sua esposa antes de um ano. Aquelas visitas foram enchendo a casa de brinquedos prodigiosos. As bailarinas de corda, as caixas de música, os chimpanzés acrobatas, os cavalos trotadores, os palhaços tamborileiros, enfim a rica e assombrosa fauna mecânica que Pietro Crespi trazia, dissiparam a aflição de José Arcadio Buendía pela morte de Melquíades, e o transportaram de novo aos seus antigos tempos de alquimista. Vivia então num paraíso de animais destripados, de mecanismos desfeitos, tentando aperfeiçoá-los com um sistema de movimento contínuo baseado nos princípios do pêndulo. Aureliano, por outro lado, tinha descuidado da oficina para ensinar a pequena Remedios a ler e escrever. No começo, a menina preferia as bonecas ao homem que chegava todas as tardes e que era o culpado de que a separassem dos seus brinquedos para banhá-la e vesti-la e sentá-la na sala para receber a visita. Mas a paciência e a devoção de Aureliano acabaram por seduzi-la, a ponto de passar muitas horas com ele, estudando o sentido das letras e desenhando num caderno, com lápis de cor, casinhas com vacas nos currais e sóis redondos com raios amarelos que se escondiam detrás dos morros. Só Rebeca era infeliz com a ameaça de Amaranta. Conhecia o temperamento da irmã, a altivez do seu espírito, e se assustava com a virulência do seu rancor. Passava horas inteiras chupando o dedo no banheiro, aferrando-se a um esforço extenuante de vontade para não comer terra. Em busca de alívio para a angústia, chamou Pilar Ternera para que lesse o seu futuro. Depois de um rosário de imprecisões convencionais, Pilar Ternera prognosticou:

— Você não vai ser feliz enquanto seus pais permanecerem insepultos.

Rebeca estremeceu. Como na lembrança de um sonho, viu-se a si mesma entrando em casa, muito garota ainda, com o baú e a cadeirinha de balanço e um saco de lona cujo conteúdo nunca soube. Lembrou-se de um cavalheiro calvo, vestido de linho e com o colarinho da camisa fechado com um ouro, que nada tinha que ver com o rei de copas. Lembrou-se de uma mulher muito jovem e muito bela, de mãos frágeis e perfumadas, que nada tinham em comum com as mãos reumáticas do valete de ouros, e que lhe punha flores no cabelo para levá-la a passear de tarde por um povoado de ruas verdes.

— Não estou entendendo — disse.

Pilar Ternera pareceu desconcertada:

— Nem eu, mas isso é o que dizem as cartas.

Rebeca ficou tão preocupada com o enigma que contou para José Arcadio Buendía, e este a repreendeu por dar créditos a prognósticos de baralho, mas se deu ao silencioso trabalho de revistar armários e baús, afastar móveis e virar camas e estrados, procurando o saco dos ossos. Recordava-se de não tê-lo visto desde os tempos da reconstrução. Chamou em segredo os pedreiros e um deles revelou que tinha emparedado em algum quarto, porque lhe atrapalhava o serviço. Depois de vários dias de auscultações, com a orelha colada nas paredes, perceberam o cloc cloc profundo. Perfuraram o muro e ali estavam os ossos no saco intacto. Nesse mesmo dia, sepultaram-no numa tumba sem lápide, improvisada junto à de Melquíades, e José Arcadio Buendía voltou para casa liberado de uma carga que por um momento pesou tanto na sua consciência como a lembrança de Prudencio Aguilar. Ao passar pela cozinha deu um beijo na testa de Rebeca.

— Tire as más ideias da cabeça — disse a ela. — Você será feliz.

A amizade de Rebeca abriu para Pilar Ternera as portas fechadas por Úrsula desde o nascimento de Arcadio. Chegava a qualquer hora do dia, como um pé-de-vento, e descarregava a sua energia febril nos trabalhos mais pesados. Às vezes entrava na oficina e ajudava Arcadio a sensibilizar as lâminas do daguerreótipo com uma eficácia e uma ternura que acabaram por confundi-lo. Aquela mulher o aturdia. O moreno da sua pele, o seu cheiro de fumo, a desordem do seu riso no quarto escuro perturbavam a sua atenção e o faziam tropeçar nas coisas.

Certa ocasião, Aureliano estava ali, trabalhando em ourivesaria, e Pilar Ternera se apoiou na mesa para admirar a sua paciente tenacidade. De repente aconteceu. Aureliano percebeu que Arcadio estava no quarto escuro antes de levantar a vista e encontrar os olhos de Pilar Ternera, cujo pensamento era perfeitamente visível, como que exposto à luz do meio-dia.

— Bem — disse Aureliano. — Diga o que é.

Pilar Ternera mordeu os lábios com um sorriso triste.

— Você é bom para a guerra — disse. — Onde bota o olho, acerta o chumbo.

Aureliano descansou com a comprovação do presságio. Voltou a se concentrar no trabalho, como se nada tivesse acontecido, e a sua voz adquiriu uma repousada firmeza.

— Eu reconheço — disse. — Terá o meu nome.

José Arcadio Buendía conseguiu por fim o que procurava: conectou a uma bailarina de corda o mecanismo do relógio, e o brinquedo dançou sem interrupção, ao compasso da sua própria música, durante três dias. Aquela descoberta o excitou muito mais do que qualquer das suas empresas descabeladas. Não voltou a comer. Não voltou a dormir. Sem a vigilância e os cuidados de Úrsula, deixou-se arrastar pela sua imaginação até um estado de delírio perpétuo do qual não voltou a se recuperar. Passava as noites andando no quarto, pensando em voz alta, procurando a maneira de aplicar os princípios do pêndulo aos carros de boi, às grades do arado, a tudo o que fosse útil posto em movimento. Cansou-o tanto a febre da insônia que certa madrugada não pôde reconhecer o ancião de cabeça branca e gestos incertos que entrou no seu quarto. Era Prudencio Aguilar. Quando por fim o identificou, assombrado de que também os mortos envelhecessem, José Arcadio Buendía sentiu-se abalado pela nostalgia. “Prudencio”, como é que você veio aqui tão longe!” Após muitos anos de morte, era tão imensa a saudade dos vivos, tão premente a necessidade de companhia, tão aterradora a proximidade da outra morte que existia dentro da morte, que Prudêncio Aguilar tinha acabado por amar o pior dos seus inimigos . Fazia muito tempo que o estava procurando. Perguntava por ele aos mortos de Riohacha, aos mortos que chegavam do vale de Upar, aos que chegavam do pantanal e ninguém lhe fornecia a direção, porque Macondo foi um povoado desconhecido para os mortos até que chegou Melquíades e o marcou com um pontinho negro nos disparatados mapas da morte. José Arcadio Buendía conversou com Prudencio Aguilar até o amanhecer. Poucas horas depois, devastado pela vigília, entrou na oficina de Aureliano e perguntou: “Que dia é hoje?” Aureliano respondeu que era terça-feira. “É o que eu pensava”, disse José Arcadio Buendía. “Mas de repente reparei que continua sendo segunda-feira, como ontem. Olha olha as paredes, olha as begônias. Hoje também é segunda-feira.” Acostumado com as suas esquisitices, Aureliano não lhe deu importância. No dia seguinte, quarta-feira, Arcadio Buendía voltou à oficina. “Isto é uma desgraça“, disse. “Olha o ar, ouve o zumbido do sol, igualzinho a anteontem. Hoje também é segunda-feira.” Nessa noite Pietro Crespi o encontrou no corredor, chorando o chorinho sem graça dos velhos, chorando por Prudencio Aguilar,por Melquíades, pelos pais de Rebeca, por seu pai e sua mãe, por todos os que podia lembrar e que então estavam sozinhos na morte. Deu-lhe de presente um urso de corda que andava sobre duas patas num arame, mas não conseguiu distraí-lo da sua obsessão. Perguntou-lhe o que tinha acontecido com o projeto que lhe expusera dias antes, sobre a possibilidade de construir uma máquina de pêndulo que servisse ao homem para voar e ele respondeu que era impossível porque o pêndulo podia levantar qualquer coisa no ar, mas não podia levantar-se a si próprio. Na quinta-feira voltou a aparecer com um doloroso aspecto de terra arrasada. “A máquina do tempo estragou”, quase soluçou, “e Úrsula e Amaranta tão longe!” Aureliano repreendeu-o como a um menino e ele adotou um ar submisso. Passou seis horas examinando as coisas, tentando encontrar uma diferença do aspecto que tiveram no dia anterior, procurando descobrir nelas alguma mudança que revelasse o transcurso do tempo. Ficou toda a noite na cama com os olhos abertos, chamando Prudencio Aguilar, Melquíades, todos os mortos, para que viessem compartilhar do seu desgosto. Mas ninguém acudiu. Na sexta-feira, antes que todos se levantassem, voltou a observar a aparência da natureza, que não teve a menor dúvida de que continuava sendo segunda-feira. Então agarrou a tranca de uma porta e com a violência selvagem da sua força descomunal espedaçou, até transformar em poeira, os aparelhos de alquimia, o gabinete de daguerreotipia, a oficina de ourivesaria, gritando como um endemoniado num idioma altissonante e fluido, mas completamente incompreensível. Dispunha-se a arrasar com o resto da casa, quando Aureliano pediu ajuda aos vizinhos. Foram necessários dez homens para subjugá-lo, quatorze para amarrá-lo, vinte para arrastá-lo até o castanheiro do quintal, onde o deixaram amarrado, ladrando em língua estranha, e deitando espuma verde pela boca. Quando Úrsula e Amaranta chegaram, ainda estava atado pelos pés e pelas mãos ao tronco do castanheiro, ensopado de chuva e num estado de inocência total. Falaram com ele e ele olhou para elas sem reconhecê-las, e lhes disse alguma coisa incompreensível. Úrsula lhe soltou as munhecas e os tornozelos, ulcerados pela pressão das cordas, e o deixou amarrado apenas pela cintura. Mais tarde construíram uma pequena coberta de sapé para protegê-lo do sol e da chuva.


continua página 53...


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