terça-feira, 4 de maio de 2021

Poemança Africana: Francisco José Tenreiro (São Tomé e Príncipe)

  Poesia Africana - 30


língua portuguesa




CORAÇÃO


Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África

ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos períodos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities
                                        [boulevards e baixa da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do
                                        [orçamento que não equilibra
do Benfica venceu Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro clue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) –
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadei-
                                                                   [ra eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em
                                                     [África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
na inocência de Mac Gee) – ;
três linhas no jornal como falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas
                                                                    [de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I tôo
                                                             [am América
de coração em áfrica com as árvores renascidas em
                        [todas estações nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro
                    [conheceu e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em
                                                     [versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
                                          [Congo de coração em África
de Coração em África ao meio-dia do dia de coração em
                                                                          [África
com o Sol sentado nas delícias do zênite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros.
Amodorrando no próprio calor da reverberação os mos-
                                        [quitos da nocturna picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o
                                                     [olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou
                                                    [escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de crianças com papagaios
                                                                        [garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e
                                                                        [mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta sussura olha o preto (que
          [bom) olha um negro (óptimo) olha um mulato
                     [(tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa
                                                                      [da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e
                                                          [sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
                                     [perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e o pés trambolhos
                                                                     [disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos
                                                     [estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas
                                                    [das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a
                                                     [própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos
                                                                         [homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de
                               [homens negros escravos dos homens
e também aqueles que ninguém fala e eu Negro não
                                                                 [esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu
                                                                           [sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu
                                                                        [coração
de uma só vez (oh órgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da
          [metralha e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de
                                    [Trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da
                                                                             [Terra
distribuíra o pão o vinho e o azeite pelos alíseos;
na esperança de que às entranhas hiantes de um menino
                                                                       [antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo
                             [que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
Deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela
                                                    [paleta viva de Rivera
E pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso
                                                            [sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração
                                                                  [em África.






Canção do Mestiço



CANÇÃO DO MESTIÇO



Mestiço

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
– mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...








MÃOS



Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.

Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da ventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!

Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.

Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!

Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!

Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.

Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!




A professora e pesquisadora Naduska Mário apresenta o poeta poeta santomense Francisco José Tenreiro.






CANTO DE OBÓ


O sol golpeia as costas do negro
e rios de suor ficam correndo.

Ardor!
 
O machim golpeia o pau
rios de seiva escorrendo

Ardor!

Os olhos do branco
como chicotes
ferem o mato que está gritando...

Só a água sussurante/calmo
corre prao mar
tal qual a alma da terra!






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Francisco José Tenreiro - (1921-1963)

Nasceu na ilha de São Tomé donde partiu, ainda novo, para o Continente onde estudou em Lisboa. Foi professor no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina.

Obras: Ilha do Nome Santo, "Novo Cancioneiro", Coimbra, 1942; Obra Poética de Francisco José Tenreiro, 1967; A Ilha de São Tomé-Estudo Geográfico, Lisboa, 1961


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