sexta-feira, 7 de maio de 2021

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)

  Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


3.


continuando....



Não é de surpreender que muitas imagens clássicas dos primórdios da fotografia de guerra tenham sido encenadas, ou que seus temas tenham sido adulterados. Depois de chegar ao vale exaustivamente bombardeado nas cercanias de Sebastopol com sua câmara escura puxada a cavalo, Fenton fez duas chapas da mesma posição, com a câmera sobre um tripé: na primeira versão da célebre foto que ele viria a chamar de “O vale da sombra da morte” (apesar do título, não foi naquela paisagem que a Brigada Ligeira fez sua carga funesta), as balas de canhão são numerosas no terreno à esquerda da estrada, mas, antes de tirar a segunda foto — aquela que é sempre reproduzida —, ele supervisionou uma operação para espalhar as balas de canhão sobre o leito da estrada. A foto de um local ermo onde ocorreu, de fato, um grande número de mortes, a imagem feita por Beato do palácio Sikandarbagh devastado, demandou uma preparação mais cuidadosa do seu tema e foi um das primeiras representações do aspecto horripilante da guerra. O ataque ocorreu em novembro de 1857, em seguida as tropas britânicas vitoriosas e os indianos leais deram uma busca no palácio, em todos os cômodos, mataram a golpes de baioneta 1800 soldados indianos sobreviventes, que eram, então, seus prisioneiros e lançaram os cadáveres no pátio; abutres e cães fizeram o resto. Para a foto que tirou em março de 1858, Beato preparou o cenário em ruína como um cemitério de cadáveres insepultos, postando alguns nativos junto a duas colunas ao fundo e espalhando ossos humanos pelo pátio.

Pelo menos, eram ossos antigos. Hoje se sabe que a equipe de Brady rearrumou e deslocou alguns dos cadáveres de soldados recém-mortos em Gettysburg: a foto intitulada “A casa do atirador de elite rebelde, Gettysburg” é na verdade a foto do cadáver de um soldado confederado que foi deslocado de onde estava caído, no campo de batalha, para um local mais fotogênico, um abrigo formado por várias rochas que flanqueavam uma barricada de pedras, e inclui um rifle cenográfico que Gardner pôs encostado na barricada, junto ao cadáver. (Parece não ser o tipo de rifle especial que um atirador de elite usaria, mas um rifle comum de infantaria; Gardner não sabia disso, ou não se importou.) O estranho não é que tantas célebres fotos jornalísticas do passado, entre elas algumas das mais lembradas fotos da Segunda Guerra Mundial, tenham sido, ao que tudo indica, encenadas. O estranho é que nos surpreenda saber que foram encenadas e que isso sempre nos cause frustração.

As fotos que mais nos decepcionam ao se revelarem montagens e encenações são aquelas que parecem registrar momentos de clímax íntimos, sobretudo de amor e de morte. O importante em “A morte de um soldado republicano” é que se trata de um momento real, captado por acaso; ela perderá todo valor se descobrirmos que o soldado que cai estava apenas representando para a câmera de Capa. Robert Doisneau nunca reivindicou abertamente a condição de instantâneo para uma foto tirada em 1950, para a revista Life, de um jovem casal beijando-se na calçada perto do Hôtel de Ville, em Paris. Contudo, a revelação, mais de quarenta anos depois, de que a foto foi uma encenação dirigida, com um homem e uma mulher contratados por um dia de trabalho para ficarem de beijinhos diante da câmera de Doisneau, provocou muitos espasmos de tristeza entre aqueles que a tinham como uma imagem venerada do amor romântico e da Paris romântica. Queremos que o fotógrafo seja um espião na casa do amor e da morte e que as pessoas fotografadas não estejam conscientes da câmera, estejam “desprevenidas”. Nenhuma ideia sofisticada do que a fotografia é ou pode ser jamais enfraquecerá a satisfação proporcionada por uma foto de um acontecimento inesperado, apanhado em pleno curso, por um fotógrafo alerta.

Se só admitirmos como autênticas as fotos de guerra que resultem de o fotógrafo ter estado perto, com o obturador aberto e no momento exato, poucas fotos que documentam vitórias receberão o certificado de autenticidade. Tomemos o ato de fincar a bandeira numa elevação enquanto a batalha perde o ímpeto. A famosa foto do levantamento da bandeira americana em Iwo Jima, no dia 23 de fevereiro de 1945, vem a ser uma “reconstrução” feita por um fotógrafo da Associated Press, Joe Rosenthal, com base na foto da cerimônia matinal do hasteamento da bandeira que se seguiu à captura do monte Suribachi, ocorrida mais tarde naquele dia, e com uma bandeira maior. A história oculta por trás de uma foto igualmente consagrada, tirada no dia 2 de maio de 1945 pelo fotógrafo de guerra soviético Ievguêni Khaldei, de soldados russos hasteando a bandeira vermelha no topo do Reichstag enquanto Berlim arde em chamas, é de que essa proeza também foi encenada para a câmera. O caso de uma foto otimista, muito reproduzida, tirada em Londres em 1940, durante a Blitz, é mais complicado, pois o fotógrafo e, portanto, as circunstâncias do ato de fotografar são desconhecidos. A foto mostra, através da parede desmoronada da biblioteca sem teto e completamente destruída da Holland House, três cavalheiros de pé sobre o entulho, a uma certa distância uns dos outros, diante de duas paredes de estantes de livros miraculosamente intactas. Um deles olha para os livros; outro fisga com o dedo a lombada de um volume que está prestes a puxar da estante; o outro, com um livro na mão, está lendo — o quadro, tão elegantemente composto, só pode ter sido encenado. É agradável imaginar que a foto não seja a invenção calculada de um fotógrafo que perambulava por Kensington após um ataque aéreo e que, ao descobrir a biblioteca da grande mansão do tempo do rei James i destruída e com a parte interna à mostra, levou para o seu interior três homens a fim de fazerem o papel de leitores imperturbáveis, mas sim que três cavalheiros foram flagrados no momento em que cediam aos apelos do seu apetite de aficionados por livros, dentro da mansão destruída, e que o fotógrafo fez pouco mais do que espaçá-los de um modo distinto a fim de produzir uma foto mais incisiva. Seja como for, a foto conserva seu encanto de época e sua autenticidade como celebração de um ideal, hoje extinto, de firmeza e de sangue-frio nacionais. Com o tempo, muitas fotos encenadas se convertem em um testemunho histórico, ainda que de um tipo impuro — como a maior parte dos testemunhos históricos.

Só a partir da Guerra do Vietnã passou a ser quase certo que nenhuma das fotos mais afamadas constituíam encenações. E isso é essencial para a autoridade moral daquelas imagens, que arderam na consciência de uma geração. A foto de horror que se tornou símbolo da Guerra do Vietnã, tirada em 1972 por Huynh Cong Ut, de crianças a correr por uma estrada e a gritar de dor, em fuga de uma aldeia que acabara de ser arrasada por bombas napalm americanas, pertence ao reino das fotos que não podem, em hipótese alguma, ser posadas. O mesmo é verdade para as fotos mais conhecidas da maioria dos fotógrafos de guerra a partir de então. O fato de ter havido tão poucas fotos de guerra encenadas desde a Guerra do Vietnã sugere que os fotógrafos têm-se mantido num padrão mais elevado de probidade jornalística. Uma parte da explicação para isso pode estar na circunstância de que, no Vietnã, a televisão tornou-se o meio de comunicação supremo no que tange a mostrar imagens de guerra, e o intrépido fotógrafo solitário com sua Leica ou sua Nikon na mão, trabalhando boa parte do tempo fora de vista, tinha agora de competir com a proximidade das equipes de tevê e aturar sua presença: o testemunho da guerra, hoje, quase nunca é uma aventura solitária. Em termos técnicos, as possibilidades de retocar e manipular fotos eletronicamente são maiores do que nunca — quase ilimitadas. Mas o costume de inventar dramáticas fotos jornalísticas, encená-las para a câmera, parece em via de se tornar uma arte perdida.



continua pág 159...

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Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."



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