Sobre fotografia
Ensaios
Susan Sontag
EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (03)
continuando...
Não pode ser coincidência o fato de que, exatamente no momento em que os fotógrafos pararam de discutir se a fotografia é ou não uma arte, ela passou a ser aclamada como tal pelo público em geral e ingressou, à força, nos museus. A naturalização da fotografia como arte pelo museu é a vitória conclusiva da campanha de um século travada pelo gosto modernista em favor de uma definição de arte sem fronteiras, uma vez que a fotografia oferecia um campo muito mais conveniente do que a pintura para esse esforço. Pois a fronteira, na fotografia, entre amador e profissional, primitivo e sofisticado, não é só mais difícil de traçar do que na pintura — ela tem pouco sentido. A fotografia ingênua, comercial ou apenas utilitária não difere, no tipo, da fotografia praticada pelos profissionais mais talentosos: há fotos tiradas por amadores anônimos tão interessantes, tão formalmente complexas, tão representativas das potencialidades características da fotografia quanto uma foto de Stieglitz ou de Evans.
A circunstância de todos os tipos de fotografia formarem uma tradição contínua e interdependente exprime a premissa outrora surpreendente, e hoje aparentemente óbvia, que se encontra subjacente ao gosto fotográfico contemporâneo e autoriza a expansão indefinida desse gosto. Essa premissa só se tornou plausível quando a fotografia foi aceita por curadores e historiadores e passou a ser exposta normalmente em museus e galerias de arte. A carreira da fotografia no museu não contempla um estilo em particular; em vez disso, apresenta a fotografia como uma coleção de intenções e de estilos simultâneos que, por mais diferentes que se mostrem, não são absolutamente entendidos como contraditórios. Porém, embora a manobra tenha alcançado um enorme sucesso com o público, a reação dos profissionais da fotografia é dúbia. Mesmo quando saúdam a nova legitimidade da fotografia, muitos deles se sentem ameaçados quando as imagens mais ambiciosas são discutidas em continuidade direta com todos os tipos de imagens, desde o fotojornalismo até a fotografia científica e instantâneos tirados em família — protestando que isso reduz a fotografia a algo trivial, vulgar, um mero ofício.
O verdadeiro problema de trazer fotos funcionais, fotos tiradas com fins práticos, sob encomenda comercial, ou como suvenires, para o veio mais importante da atividade fotográfica não reside em que isso rebaixa a fotografia, vista como uma bela-arte, mas sim em que o processo contradiz a natureza da maioria das fotos. Na maior parte do uso que se faz da câmera, a função ingênua ou descritiva da foto é a predominante. Mas, quando vista em seu novo contexto, o museu ou a galeria, as fotos deixam de ser “sobre” seus temas desse modo direto ou primário; tornam-se estudos das possibilidades da fotografia. A adoção da fotografia pelo museu faz com que a própria fotografia pareça problemática, de um modo vivenciado apenas por um pequeno número de fotógrafos escrupulosos, cuja obra consiste justamente em questionar a capacidade da câmera para apreender a realidade. As coleções ecléticas dos museus reforçam o caráter arbitrário e subjetivo de todas as fotos, incluindo as mais francamente descritivas.
Montar exposições de fotos tornou-se uma típica atividade dos museus, assim como montar exposições individuais de pintores. Mas um fotógrafo não é como um pintor, pois o papel do fotógrafo é recessivo em boa parte da fotografia séria, e quase irrelevante em todos os seus demais usos comuns. Na medida em que o tema fotografado nos interessa, esperamos que o fotógrafo seja uma presença extremamente discreta. Assim, o próprio sucesso do fotojornalismo repousa na dificuldade de distinguir a obra de um fotógrafo superior da obra de outro, exceto quando o fotógrafo monopolizou um tema específico. Tais fotos têm seu poder como imagens (ou cópias) do mundo, e não da consciência individual de um artista. E na grande maioria das fotos — com fins científicos e industriais, tiradas pela imprensa, pelos militares e pela polícia, pelas famílias —, qualquer traço da visão pessoal de quem quer que esteja atrás da câmera interfere no requisito básico da foto: que ela registre, diagnostique, informe.
Faz sentido que uma pintura seja assinada e uma foto não (ou que pareça mau gosto assinar uma foto). A própria natureza da fotografia implica uma relação equívoca com o fotógrafo como auteur; e quanto maior e mais variada a obra de um fotógrafo talentoso, mais ela parece adquirir uma espécie de autoria antes corporativa do que individual. Muitas fotos publicadas pelos maiores nomes da fotografia parecem obras que poderiam ter sido feitas por outros profissionais de talento do mesmo período. É preciso um conceito formal (como as fotos superexpostas à luz de Todd Walker, ou as fotos de sequência narrativa de Duane Michal) ou uma obsessão temática (como o nu masculino em Eakins, ou o velho Sul dos Estados Unidos em Laughlin) para tornar uma obra facilmente identificável. Pois os fotógrafos que não se limitam dessa maneira têm um conjunto de obra sem a mesma integridade que se verifica, no caso de obras igualmente diversificadas, em outras formas de arte. Mesmo nas carreiras com as mais marcadas rupturas de fase e de estilo — pensemos em Picasso, ou em Stravinski —, pode-se perceber a unidade de preocupações que transcende essas rupturas e pode-se ver (retrospectivamente) a relação interna entre uma fase e outra. Conhecendo o conjunto completo da obra, pode-se ver como o mesmo compositor poderia ter composto A sagração da primavera, o Concerto de Dumbarton Oaks e as obras neoschoenberguianas tardias; reconhecemos a mão de Stravinski em todas essas composições. Mas não existe nenhum traço interno que permita identificar como obra de um fotógrafo individual (na verdade, um dos fotógrafos mais interessantes e originais) aqueles estudos de movimento humano e animal, os documentos trazidos de expedições fotográficas pela América Central, os levantamentos fotográficos do Alasca e do vale Yosemite patrocinados pelo governo, e as séries Nuvens e Árvores. Mesmo depois de saber que foram todas tiradas por Muybridge, ainda não é possível relacionar essas séries de fotos umas com as outras (embora cada série tenha um estilo coerente e identificável), assim como não se poderia inferir o modo como Atget fotografou árvores a partir do modo como fotografou as vitrines de Paris, ou associar os retratos de judeus do pré-guerra tirados por Roman Vishniac com as microfotografias científicas que ele tirou a partir de 1945. Na fotografia, o assunto sempre prevalece, e assuntos diferentes criam abismos intransponíveis entre um período e outro no vasto corpo de uma obra, confundindo a assinatura.
De fato, a própria presença de um estilo fotográfico coerente — pensemos no fundo branco e na luz sem contraste dos retratos de Avedon, na grisalha típica dos estudos de rua de Paris feitos por Atget — parece indicar um material unificado. E parece caber ao assunto o papel predominante na determinação das preferências do espectador. Mesmo quando as fotos se encontram isoladas do contexto prático em que podem, originalmente, ter sido tiradas e são vistas como obras de arte, preferir uma foto a outra raramente significa apenas que a foto é julgada formalmente superior; quase sempre significa — como em tipos de visão mais informais — que o espectador prefere aquele tipo de estado de ânimo, ou que respeita aquela intenção, ou que está intrigado por aquele assunto (ou sente-se nostálgico em relação a ele). As abordagens formalistas da fotografia não podem dar conta do poder do que foi fotografado, nem do modo como a distância no tempo e a distância cultural da foto aumentam nosso interesse.
Porém parece lógico que o gosto fotográfico contemporâneo tenha tomado um rumo amplamente formalista. Embora o status natural ou ingênuo do assunto na fotografia se encontre mais seguro do que em qualquer outra arte representacional, a própria pluralidade das situações em que as fotos são vistas complica e, no fim, enfraquece a primazia do assunto. O conflito de interesse entre objetividade e subjetividade, entre demonstração e suposição, é insolúvel. Embora a autoridade de uma fotografia sempre dependa da relação com um tema (de ser a foto de alguma coisa), todas as pretensões da fotografia como arte devem enfatizar a subjetividade da visão. Existe um equívoco no cerne de toda avaliação estética de fotos; e isso explica a crônica atitude defensiva e a extrema mutabilidade do gosto fotográfico.
Por um breve tempo — digamos, de Stieglitz até o reinado de Weston —, pareceu que se havia assentado um ponto de vista sólido para avaliar fotos: luz impecável, habilidade de composição, clareza de tema, precisão de foco, perfeição de qualidade da cópia. Mas essa posição, vista em geral como westoniana — critérios essencialmente técnicos quanto ao que torna uma foto boa —, agora está falida. (O julgamento depreciativo de Weston com relação ao grande Atget como “um técnico fraco” demonstra suas limitações.) Que posição substitui a de Weston? Uma posição muito mais inclusiva, com critérios que deslocam o centro do juízo da foto individual, tida como um objeto acabado, para a foto vista como um exemplo de “visão fotográfica”. O que se entende por visão fotográfica dificilmente excluiria a obra de Weston, mas incluiria também um grande número de fotos anônimas, não posadas, toscamente iluminadas, compostas de forma assimétrica, antes desdenhadas por sua falta de composição. A nova posição almeja liberar a fotografia, como arte, dos padrões opressivos da perfeição técnica; liberar a fotografia da beleza, também. Abre a possibilidade de um gosto global, em que nenhum tema (ou ausência de tema), ne- nhuma técnica (ou ausência de técnica) desqualifica a fotografia.
Embora, em princípio, todos os temas sejam pretextos válidos para exercitar o modo de ver fotográfico, formou-se a convenção de que a visão fotográfica é mais nítida quando se trata de assuntos excêntricos ou triviais. Os temas são escolhidos por serem enfadonhos ou banais. Porque somos indiferentes a eles, revelam melhor a capacidade que a câmera tem de “ver”. Quando Irving Penn, conhecido por suas belas fotos de celebridades e de comida para revistas de moda e agências de publicidade, teve montada uma exposição no Museu de Arte Moderna, em 1975, tratava-se de uma série de closes de guimbas de cigarros. “Alguém talvez suponha”, comentou o diretor do departamento de fotografia do museu, John Szarkowski, “que [Penn] apenas raramente provou um interesse mais do que superficial pelos temas nominais de suas fotos.” Escrevendo sobre outro fotógrafo, Szarkowski elogia o que “pode ser extraído de um assunto” que é “profundamente banal”. A adoção da fotografia pelo museu está hoje firmemente associada a estes importantes conceitos modernistas: o “tema nominal” e o “profundamente banal”. Mas essa abordagem não só reduz a importância do assunto; também afrouxa o laço que une a foto a um fotógrafo individual. O modo fotográfico de ver está longe de ser exaustivamente ilustrado pelas muitas exposições e retrospectivas individuais de fotógrafos promovidas por museus hoje em dia. Para ser legítima como arte, a fotografia deve cultivar a ideia do fotógrafo como auteur e de que todas as fotos tiradas pelo mesmo fotógrafo constituem o corpo de uma obra. Tais ideias são mais fáceis de aplicar a certos fotógrafos do que a outros. Parecem mais aplicáveis, digamos, a Man Ray, cujos propósitos e estilo abarcam normas fotográficas e pictóricas, do que a Steichen, cuja obra inclui abstrações, retratos, anúncios de bens de consumo, fotos de moda e de reconhecimento aéreo (tiradas durante seu serviço militar, nas duas guerras mundiais). Mas os significados que uma foto adquire quando vista como parte do corpo de uma obra individual não são particularmente pertinentes quando o critério é a visão fotográfica. Em lugar disso, tal abordagem deve forçosamente favorecer os novos significados que qualquer foto adquire quando justaposta — em antologias ideais, na parede de museus ou em livros — à obra de outros fotógrafos.
Tais antologias destinam-se a educar o gosto fotográfico em geral; ensinar uma forma de ver que torna equivalentes todos os temas. Quando Szarkowski descreve postos de gasolina, salas vazias e outros temas áridos como “padrões de fatos aleatórios a serviço da imaginação [do fotógrafo]”, o que ele quer dizer na verdade é que esses temas são ideais para a câmera. Os critérios ostensivamente formalistas e neutros da visão fotográfica são, na realidade, fortemente judicativos acerca de temas e de estilos. A reavaliação de fotos ingênuas ou fortuitas do século XIX, em especial aquelas tiradas como registros modestos, se deve em parte a seu estilo de foco bem definido — um corretivo pedagógico para o suave foco “pictórico” que, de Cameron a Stieglitz, esteve associado à pretensão da fotografia de se tornar arte. Contudo, as normas da visão fotográfica não implicam um compromisso inalterável com o foco bem definido. Quando se sentiu que a fotografia séria se havia purgado de relações antiquadas com a arte e com a beleza, ela pôde igualmente adaptar-se a um gosto pela fotografia pictórica, pela abstração, por temas nobres, em detrimento de guimbas de cigarros, postos de gasolina e pessoas de costas.
O verdadeiro problema de trazer fotos funcionais, fotos tiradas com fins práticos, sob encomenda comercial, ou como suvenires, para o veio mais importante da atividade fotográfica não reside em que isso rebaixa a fotografia, vista como uma bela-arte, mas sim em que o processo contradiz a natureza da maioria das fotos. Na maior parte do uso que se faz da câmera, a função ingênua ou descritiva da foto é a predominante. Mas, quando vista em seu novo contexto, o museu ou a galeria, as fotos deixam de ser “sobre” seus temas desse modo direto ou primário; tornam-se estudos das possibilidades da fotografia. A adoção da fotografia pelo museu faz com que a própria fotografia pareça problemática, de um modo vivenciado apenas por um pequeno número de fotógrafos escrupulosos, cuja obra consiste justamente em questionar a capacidade da câmera para apreender a realidade. As coleções ecléticas dos museus reforçam o caráter arbitrário e subjetivo de todas as fotos, incluindo as mais francamente descritivas.
Montar exposições de fotos tornou-se uma típica atividade dos museus, assim como montar exposições individuais de pintores. Mas um fotógrafo não é como um pintor, pois o papel do fotógrafo é recessivo em boa parte da fotografia séria, e quase irrelevante em todos os seus demais usos comuns. Na medida em que o tema fotografado nos interessa, esperamos que o fotógrafo seja uma presença extremamente discreta. Assim, o próprio sucesso do fotojornalismo repousa na dificuldade de distinguir a obra de um fotógrafo superior da obra de outro, exceto quando o fotógrafo monopolizou um tema específico. Tais fotos têm seu poder como imagens (ou cópias) do mundo, e não da consciência individual de um artista. E na grande maioria das fotos — com fins científicos e industriais, tiradas pela imprensa, pelos militares e pela polícia, pelas famílias —, qualquer traço da visão pessoal de quem quer que esteja atrás da câmera interfere no requisito básico da foto: que ela registre, diagnostique, informe.
Faz sentido que uma pintura seja assinada e uma foto não (ou que pareça mau gosto assinar uma foto). A própria natureza da fotografia implica uma relação equívoca com o fotógrafo como auteur; e quanto maior e mais variada a obra de um fotógrafo talentoso, mais ela parece adquirir uma espécie de autoria antes corporativa do que individual. Muitas fotos publicadas pelos maiores nomes da fotografia parecem obras que poderiam ter sido feitas por outros profissionais de talento do mesmo período. É preciso um conceito formal (como as fotos superexpostas à luz de Todd Walker, ou as fotos de sequência narrativa de Duane Michal) ou uma obsessão temática (como o nu masculino em Eakins, ou o velho Sul dos Estados Unidos em Laughlin) para tornar uma obra facilmente identificável. Pois os fotógrafos que não se limitam dessa maneira têm um conjunto de obra sem a mesma integridade que se verifica, no caso de obras igualmente diversificadas, em outras formas de arte. Mesmo nas carreiras com as mais marcadas rupturas de fase e de estilo — pensemos em Picasso, ou em Stravinski —, pode-se perceber a unidade de preocupações que transcende essas rupturas e pode-se ver (retrospectivamente) a relação interna entre uma fase e outra. Conhecendo o conjunto completo da obra, pode-se ver como o mesmo compositor poderia ter composto A sagração da primavera, o Concerto de Dumbarton Oaks e as obras neoschoenberguianas tardias; reconhecemos a mão de Stravinski em todas essas composições. Mas não existe nenhum traço interno que permita identificar como obra de um fotógrafo individual (na verdade, um dos fotógrafos mais interessantes e originais) aqueles estudos de movimento humano e animal, os documentos trazidos de expedições fotográficas pela América Central, os levantamentos fotográficos do Alasca e do vale Yosemite patrocinados pelo governo, e as séries Nuvens e Árvores. Mesmo depois de saber que foram todas tiradas por Muybridge, ainda não é possível relacionar essas séries de fotos umas com as outras (embora cada série tenha um estilo coerente e identificável), assim como não se poderia inferir o modo como Atget fotografou árvores a partir do modo como fotografou as vitrines de Paris, ou associar os retratos de judeus do pré-guerra tirados por Roman Vishniac com as microfotografias científicas que ele tirou a partir de 1945. Na fotografia, o assunto sempre prevalece, e assuntos diferentes criam abismos intransponíveis entre um período e outro no vasto corpo de uma obra, confundindo a assinatura.
De fato, a própria presença de um estilo fotográfico coerente — pensemos no fundo branco e na luz sem contraste dos retratos de Avedon, na grisalha típica dos estudos de rua de Paris feitos por Atget — parece indicar um material unificado. E parece caber ao assunto o papel predominante na determinação das preferências do espectador. Mesmo quando as fotos se encontram isoladas do contexto prático em que podem, originalmente, ter sido tiradas e são vistas como obras de arte, preferir uma foto a outra raramente significa apenas que a foto é julgada formalmente superior; quase sempre significa — como em tipos de visão mais informais — que o espectador prefere aquele tipo de estado de ânimo, ou que respeita aquela intenção, ou que está intrigado por aquele assunto (ou sente-se nostálgico em relação a ele). As abordagens formalistas da fotografia não podem dar conta do poder do que foi fotografado, nem do modo como a distância no tempo e a distância cultural da foto aumentam nosso interesse.
Porém parece lógico que o gosto fotográfico contemporâneo tenha tomado um rumo amplamente formalista. Embora o status natural ou ingênuo do assunto na fotografia se encontre mais seguro do que em qualquer outra arte representacional, a própria pluralidade das situações em que as fotos são vistas complica e, no fim, enfraquece a primazia do assunto. O conflito de interesse entre objetividade e subjetividade, entre demonstração e suposição, é insolúvel. Embora a autoridade de uma fotografia sempre dependa da relação com um tema (de ser a foto de alguma coisa), todas as pretensões da fotografia como arte devem enfatizar a subjetividade da visão. Existe um equívoco no cerne de toda avaliação estética de fotos; e isso explica a crônica atitude defensiva e a extrema mutabilidade do gosto fotográfico.
Por um breve tempo — digamos, de Stieglitz até o reinado de Weston —, pareceu que se havia assentado um ponto de vista sólido para avaliar fotos: luz impecável, habilidade de composição, clareza de tema, precisão de foco, perfeição de qualidade da cópia. Mas essa posição, vista em geral como westoniana — critérios essencialmente técnicos quanto ao que torna uma foto boa —, agora está falida. (O julgamento depreciativo de Weston com relação ao grande Atget como “um técnico fraco” demonstra suas limitações.) Que posição substitui a de Weston? Uma posição muito mais inclusiva, com critérios que deslocam o centro do juízo da foto individual, tida como um objeto acabado, para a foto vista como um exemplo de “visão fotográfica”. O que se entende por visão fotográfica dificilmente excluiria a obra de Weston, mas incluiria também um grande número de fotos anônimas, não posadas, toscamente iluminadas, compostas de forma assimétrica, antes desdenhadas por sua falta de composição. A nova posição almeja liberar a fotografia, como arte, dos padrões opressivos da perfeição técnica; liberar a fotografia da beleza, também. Abre a possibilidade de um gosto global, em que nenhum tema (ou ausência de tema), ne- nhuma técnica (ou ausência de técnica) desqualifica a fotografia.
Embora, em princípio, todos os temas sejam pretextos válidos para exercitar o modo de ver fotográfico, formou-se a convenção de que a visão fotográfica é mais nítida quando se trata de assuntos excêntricos ou triviais. Os temas são escolhidos por serem enfadonhos ou banais. Porque somos indiferentes a eles, revelam melhor a capacidade que a câmera tem de “ver”. Quando Irving Penn, conhecido por suas belas fotos de celebridades e de comida para revistas de moda e agências de publicidade, teve montada uma exposição no Museu de Arte Moderna, em 1975, tratava-se de uma série de closes de guimbas de cigarros. “Alguém talvez suponha”, comentou o diretor do departamento de fotografia do museu, John Szarkowski, “que [Penn] apenas raramente provou um interesse mais do que superficial pelos temas nominais de suas fotos.” Escrevendo sobre outro fotógrafo, Szarkowski elogia o que “pode ser extraído de um assunto” que é “profundamente banal”. A adoção da fotografia pelo museu está hoje firmemente associada a estes importantes conceitos modernistas: o “tema nominal” e o “profundamente banal”. Mas essa abordagem não só reduz a importância do assunto; também afrouxa o laço que une a foto a um fotógrafo individual. O modo fotográfico de ver está longe de ser exaustivamente ilustrado pelas muitas exposições e retrospectivas individuais de fotógrafos promovidas por museus hoje em dia. Para ser legítima como arte, a fotografia deve cultivar a ideia do fotógrafo como auteur e de que todas as fotos tiradas pelo mesmo fotógrafo constituem o corpo de uma obra. Tais ideias são mais fáceis de aplicar a certos fotógrafos do que a outros. Parecem mais aplicáveis, digamos, a Man Ray, cujos propósitos e estilo abarcam normas fotográficas e pictóricas, do que a Steichen, cuja obra inclui abstrações, retratos, anúncios de bens de consumo, fotos de moda e de reconhecimento aéreo (tiradas durante seu serviço militar, nas duas guerras mundiais). Mas os significados que uma foto adquire quando vista como parte do corpo de uma obra individual não são particularmente pertinentes quando o critério é a visão fotográfica. Em lugar disso, tal abordagem deve forçosamente favorecer os novos significados que qualquer foto adquire quando justaposta — em antologias ideais, na parede de museus ou em livros — à obra de outros fotógrafos.
Tais antologias destinam-se a educar o gosto fotográfico em geral; ensinar uma forma de ver que torna equivalentes todos os temas. Quando Szarkowski descreve postos de gasolina, salas vazias e outros temas áridos como “padrões de fatos aleatórios a serviço da imaginação [do fotógrafo]”, o que ele quer dizer na verdade é que esses temas são ideais para a câmera. Os critérios ostensivamente formalistas e neutros da visão fotográfica são, na realidade, fortemente judicativos acerca de temas e de estilos. A reavaliação de fotos ingênuas ou fortuitas do século XIX, em especial aquelas tiradas como registros modestos, se deve em parte a seu estilo de foco bem definido — um corretivo pedagógico para o suave foco “pictórico” que, de Cameron a Stieglitz, esteve associado à pretensão da fotografia de se tornar arte. Contudo, as normas da visão fotográfica não implicam um compromisso inalterável com o foco bem definido. Quando se sentiu que a fotografia séria se havia purgado de relações antiquadas com a arte e com a beleza, ela pôde igualmente adaptar-se a um gosto pela fotografia pictórica, pela abstração, por temas nobres, em detrimento de guimbas de cigarros, postos de gasolina e pessoas de costas.
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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.
Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.
Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.
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Nota de esclarecimento da LêLivros
Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo
Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de domínio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa.
Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
________________________
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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.
Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.
Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.
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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
On photography
Capa
Angelo Venosa
Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York
Preparação
Otacílio Nunes Jr.
Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa
Atualização ortográfica
Página Viva
ISBN 978-85-8086-579-0
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707 3500
Fax: (11) 3707 3501
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
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Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
On photography
Capa
Angelo Venosa
Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York
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Otacílio Nunes Jr.
Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa
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