sexta-feira, 7 de maio de 2021

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus

 Capítulo 4





Com alguns guinéus que lhe sobraram da venda da décima pérola do seu colar, Orlando comprou um enxoval completo de roupas femininas como as que se usavam, e foi vestida como uma jovem inglesa de classe que ela agora sentou-se no convés do Enamoured Lady. É um fato estranho, porém verdadeiro, que até aquele momento ela pouco tinha se preocupado com o seu sexo. Talvez as calças turcas que usara até então tivessem feito algo para distrair seus pensamentos; e as ciganas, exceto em uma ou duas particularidades importantes, diferem muito pouco dos ciganos. De qualquer modo, somente quando sentiu a saia enrolando em suas pernas e o capitão oferecendo-se com grande polidez para mandar armar-lhe um toldo no convés que ela percebeu, sobressaltada, as desvantagens e os privilégios de sua posição. Mas esse sobressalto não era do tipo que se podia esperar.

Não foi causado, quer dizer, simples e unicamente pelo pensamento em sua castidade e de como preservá-la. Em circunstâncias normais, uma linda jovem sozinha não teria pensado em outra coisa; todo o edifício de controle feminino é baseado naquela pedra fundamental; a castidade é sua joia, peça central, que elas protegem até à loucura e morrem quando é arrebatada. Mas quando alguém foi homem por trinta anos ou mais, e ainda por cima embaixador, se teve uma rainha nos braços e mais uma ou duas damas, e — se o relato é verdadeiro — se foi casado com uma Rosina Pepita, de menos nobreza, e assim por diante, talvez não se tenha por essa razão um sobressalto tão grande. O sobressalto de Orlando era de natureza muito complicada e não pode ser resumido num abrir e fechar de olhos. Ninguém, na verdade, jamais acusou-a de uma dessas inteligências velozes, que chegam ao final das coisas num minuto. Ela levou a viagem inteira para compreender o significado do seu sobressalto, e assim a seguiremos no seu próprio ritmo.

“Senhor”, pensou quando se recuperou de seu sobressalto, espreguiçando-se sob o toldo, “esta é com certeza uma agradável e preguiçosa maneira de viver. Mas”, pensou, dando um pontapé, “estas saias em volta dos calcanhares são uma praga. Contudo, o tecido (brocado florido) é o mais lindo do mundo. Nunca eu tinha visto a minha pele (aqui ela pousou a mão no joelho) parecer tão favorecida como agora. Eu poderia, no entanto, pular do navio e nadar com roupas como estas? Não. Portanto, teria que confiar na proteção de um marinheiro. Tenho alguma objeção a isso? Tenho?”, assim imaginava, encontrando o primeiro nó na meada de seu raciocínio.

A hora do jantar chegou antes que ela o tivesse desatado, e então foi o próprio capitão — capitão Nicholas Benedict Bartolus, capitão de marinha de aspecto distinto — que o desatou para ela, ao servir-lhe uma fatia de carne em conserva.

“Um pouco de gordura, senhora?”, perguntou. “Deixe-me servir-lhe uma fatia fininha, do tamanho de sua unha.” A estas palavras, um delicioso tremor percorreu-a. Pássaros cantaram; as torrentes se precipitaram. Relembrou o sentimento de indescritível prazer com que vira Sasha pela primeira vez, havia centenas de anos. Naquela época ela perseguira, agora escapava. Qual é o maior êxtase? O do homem ou o da mulher? E não serão talvez idênticos? Não, pensou, este é o mais delicioso (agradecendo ao capitão, mas recusando), recusar e vê-lo franzir o cenho. Bem, se ele quisesse, ela aceitaria a mais fina e menor lasca do mundo. Aquiescer e vê-lo sorrir era a coisa mais deliciosa de todas. “Pois nada”, pensou, retomando o assento no convés e continuando o raciocínio, “é mais divino do que resistir e ceder; ceder e resistir. De fato, nenhuma outra coisa lança o espírito em tal arrebatamento. Assim, não tenho certeza”, continuou, “de que não me atiraria de bordo, pelo simples prazer de ser salva por um marinheiro.”

(É preciso lembrar que ela era como uma criança tomando posse de um jardim ou de um armário de brinquedos; seu raciocínio não era próprio de uma mulher madura, que tivesse dirigido o curso de sua vida.)

“Mas o que nós, jovens companheiros de bordo do Marie Rose, costumávamos dizer de uma mulher que se jogava do navio pelo prazer de ser salva por um marinheiro?”, disse ela. “Tínhamos um nome para elas. Ah!, bem sei...” (Mas devemos omitir esta palavra; é desrespeitosa ao extremo e imprópria para os lábios de uma dama.) “Senhor! Senhor!”, gritou novamente, concluindo seus pensamentos, “devo então começar a respeitar a opinião do outro sexo, mesmo que me pareça monstruosa? Se uso saias, se não posso nadar, se tenho de ser salva por um marinheiro, meu Deus!”, gritou, “devo!” E com isso entristeceu. Cândida por natureza e avessa a todos os tipos de ambiguidades, mentir irritava-a. Isso lhe parecia um rodeio. Contudo, refletiu, se o brocado florido e o prazer de ser salva por um marinheiro só podem ser conseguidos com rodeios, deve-se continuar com rodeios, supôs. Lembrava agora como, quando rapaz, insistira em que as mulheres deviam ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. “Agora tenho que pagar pessoalmente por esses desejos”, refletiu; “pois as mulheres não são (julgando pela minha própria curta experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas por natureza. Elas só podem conseguir esses encantos — sem os quais não desfrutam de nenhum dos prazeres da vida — por meio da mais tediosa disciplina. Há o penteado”, pensou, “que sozinho toma uma hora da minha manhã; o olhar no espelho, mais uma hora; colocar e amarrar o espartilho; banhar-me e empoar-me; mudar de seda para renda e de renda para brocado; ser casta o tempo todo...” Aqui, sacudiu o pé impacientemente e mostrou uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro que estava no mastro, e que olhou por acaso para baixo naquele momento, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o equilíbrio e só se salvou por um triz. “Se a visão dos meus tornozelos significa a morte para um homem honesto que sem dúvida tem mulher e família para sustentar, devo, por humanidade, mantê-los cobertos”, pensou Orlando. No entanto, suas pernas estavam entre seus maiores encantos, e ela começou a pensar a que estranha situação chegamos quando toda a beleza de uma mulher tem que ser mantida coberta para que um marinheiro não caia do mastro principal. “Que se danem!”, disse ela, compreendendo pela primeira vez o que em outras circunstâncias lhe teriam ensinado quando criança, ou seja, as sagradas responsabilidades de ser mulher.

“E esta é a última praga que poderei rogar”, pensou, “antes de pôr os pés no solo inglês. Não serei capaz de quebrar a cabeça de um homem, nem dizer-lhe que mente até os dentes, nem desembainhar minha espada e traspassá-lo, nem sentar entre meus pares, nem usar uma coroa, nem andar em procissão, nem condenar um homem à morte, nem comandar um exército, nem exibir-me num corcel pelo Whitehall, nem usar 72 diferentes medalhas no peito. Tudo o que posso fazer quando pisar no solo inglês é servir chá e perguntar aos meus senhores como eles o preferem. Com açúcar? Com creme?” E, pronunciando as palavras, ficou horrorizada de perceber como era baixa a opinião que estava formando a respeito do outro sexo, o masculino, ao qual antes tivera orgulho de pertencer. “Cair de um mastro principal”, pensou, “porque viu os tornozelos de uma mulher; vestir-se como Guy Fawkes e desfilar pelas ruas para que as mulheres o admirem; negar instrução à mulher para que ela não ria dele; ser escravo da mais reles sirigaita de saias e seguir como se fosse o Senhor da criação. — Céus!”, pensou, “como nos fazem de bobas — que bobas somos nós!” E aqui parecia haver alguma ambiguidade em seus termos, pois estava censurando ambos os sexos igualmente, como se não pertencesse a nenhum; e na verdade, até aquele momento, parecia vacilar; era homem; era mulher; conhecia os segredos e partilhava as fraquezas de cada um. Era o mais desconcertante e atordoante estado de espírito. Os consolos da ignorância pareciam-lhe proibidos. Ela era uma pluma soprada pelo vento. Assim, não é de admirar que confrontasse um sexo contra o outro e alternadamente achasse cada um deles cheio das mais deploráveis fraquezas, e não tinha certeza a qual pertencia — não é de admirar que estivesse a ponto de gritar que retornaria à Turquia e se tornaria novamente cigana, quando a âncora caiu com grande ruído no mar; as velas arriaram sobre o convés, e ela percebeu (estivera por vários dias tão profundamente mergulhada em pensamentos que nada vira) que o navio estava ancorado na costa da Itália. O capitão imediatamente solicitou-lhe a honra da companhia para descer a terra em seu bote.

Quando retornou na manhã seguinte, estendeu-se na espreguiçadeira sob o toldo e ajeitou os drapeados, com o maior decoro, ao redor dos tornozelos.

“Ignorantes e pobres se comparadas com o outro sexo”, pensou, continuando a frase que deixara sem terminar no outro dia, “armados com todas as armas como estão, enquanto nos privam do conhecimento do alfabeto” (e, por estas palavras iniciais, fica claro que algo acontecera durante a noite para que se inclinasse pelo sexo feminino, pois estava falando mais como mulher do que como homem, e além disso com uma espécie de satisfação), “ainda assim... eles caem do mastro principal.” Aqui deu um grande bocejo e adormeceu. Quando acordou, o navio estava velejando com um vento a favor, tão perto da costa que as cidades no alto dos penhascos pareciam impedidas de escorregar para a água apenas pela interposição de alguma grande rocha ou das raízes retorcidas de alguma velha oliveira. O perfume das laranjas, desprendido de um milhão de árvores carregadas de frutas, alcançou-a no convés. Um cardume de golfinhos azuis, sacudindo as caudas, saltava no ar de vez em quando. Esticando os braços (os braços, ela já aprendera, não têm efeitos fatais como as pernas), agradeceu ao céu por não estar se exibindo num corcel de guerra pelo Whitehall, nem sentenciando um homem à morte. “É melhor”, pensou, “estar vestida de pobreza e ignorância, que são as vestimentas escuras do sexo feminino; é melhor deixar o governo e a disciplina do mundo para os outros; é melhor abandonar a ambição marcial, o amor ao poder e todos os outros desejos masculinos, para que se possa apreciar completamente os mais sublimes arrebatamentos do espírito humano, que são”, disse em voz alta, como de hábito quando estava profundamente comovida, “contemplação, solidão, amor.”

“Graças a Deus que sou mulher!”, gritou, e estava quase caindo em extrema loucura — nada é mais lamentável numa mulher ou num homem do que ter orgulho do seu sexo — quando se deteve sobre a singular palavra que, por mais que tentemos substituir, se insinuou no final da última frase: amor. “Amor”, disse Orlando. Instantaneamente — tal é a sua impetuosidade — o amor tomou uma forma humana — tal é o seu orgulho. Pois, enquanto os outros pensamentos se contentam em permanecer abstratos, nada satisfará a este se não se revestir de carne e sangue, mantilhas e saias, calças e jaquetas. E, como todos os amores de Orlando tinham sido mulheres, agora, devido à censurável morosidade da constituição humana em adaptar-se à convenção, embora ela própria fosse uma mulher, era ainda uma mulher que ela amava; e, se a consciência de ser do mesmo sexo tinha algum efeito sobre isso, era o de apressar e aprofundar aqueles sentimentos que tivera como homem. Pois agora mil insinuações e mistérios que antes pareciam obscuros se aclaravam para ela. Agora, a obscuridade — que divide os sexos e permite a sobrevivência de inúmeras impurezas à sua sombra — foi removida, e, se há alguma relação no que o poeta diz sobre verdade e beleza, esta afeição ganhou em beleza o que perdeu em falsidade. Finalmente, gritou, ela conhecia Sasha como era, e, no ardor desta descoberta e no encalço de todos os tesouros que lhe eram agora revelados, estava tão arrebatada e encantada como se uma bala de canhão tivesse explodido nos seus ouvidos, quando uma voz de homem disse-lhe: “Permita-me, senhora”, e a mão de um homem ajudou-a a levantar-se; e os dedos de um homem, com um veleiro de três mastros tatuado no dedo do meio, apontaram o horizonte.

“Os penhascos da Inglaterra, senhora”, disse o capitão, e levantou a mão que apontara para o céu, para saudá-los. Orlando teve um segundo sobressalto, ainda mais violento que o primeiro.

“Cristo Jesus!”, exclamou.

Felizmente a visão de sua terra natal depois de longa ausência desculpava o sobressalto e a exclamação, ou ela teria tido dificuldade em explicar ao capitão Bartolus as furiosas e conflitantes emoções que ferviam dentro de si. Como lhe dizer que ela, que agora tremia em seu braço, tinha sido um duque e um embaixador? Como lhe explicar que ela, que tinha sido tratada como um lírio em pregas de brocado, degolara cabeças e deitara com mulheres perdidas, entre sacos de tesouros nos porões de navios piratas, nas noites de verão, quando as tulipas florescem e as abelhas zumbem na Wapping Old Stairs? Nem para si mesma podia explicar o violento sobressalto que deu quando a decidida mão direita do capitão de bordo lhe indicara os penhascos das ilhas Inglesas.

“Recusar e ceder”, murmurou, “que prazer; perseguir e conquistar, que imponência; perceber e raciocinar, que sublime.” Nenhuma dessas palavras assim reunidas lhe parecia errada; no entanto, quando os penhascos brancos se aproximaram, sentiu-se culpada; desonrada; impura, o que era estranho, para quem nunca se preocupara com o assunto. Aproximaram-se mais e mais, até que os apanhadores de salsa, meio dependurados nos rochedos, ficaram visíveis a olho nu. E, observando-os, ela sentiu correr para cima e para baixo, como um fantasma irônico que em outro momento apanharia suas saias e desapareceria da vista, Sasha, a perdida, Sasha, a memória, cuja realidade acabava de experimentar agora, de forma tão surpreendente — Sasha, sentiu, fazendo caretas e trejeitos e todos os tipos de gestos desrespeitosos na direção dos penhascos e dos apanhadores de salsa; e, quando os marinheiros começaram a cantar, “então adeus, e até à vista, damas de Espanha”, as palavras ecoaram no coração triste de Orlando, e sentiu que por mais que o desembarque ali significasse conforto, significasse opulência, significasse importância e poder (pois ela sem dúvida caçaria algum príncipe nobre e reinaria como sua consorte sobre metade de Yorkshire), ainda assim significava convencionalismo, significava escravidão, significava fraude, significava negar o seu amor, acorrentar o corpo, franzir os lábios e conter a língua — então teve vontade de voltar com o navio e regressar para os ciganos.

Em meio à vertigem desses pensamentos, contudo, alguma coisa se erguia como uma cúpula de mármore branco e liso, alguma coisa verdadeira ou imaginária, mas tão marcante para a sua imaginação febril que nela se deteve, tal como alguém que vê pousar um vibrante enxame de libélulas, com evidente satisfação, sobre a redoma de vidro que protege uma frágil planta. Sua forma, pelo acaso da fantasia, lembrava-lhe aquela antiga e persistente memória — um homem de testa alta, na sala de Twitchett, um homem sentado escrevendo, ou antes, olhando, mas não para ela, pois pareceu nunca tê-la visto parada ali, com toda a sua elegância, como um lindo rapaz que não podia negar ter sido — e toda vez que ela pensava nele o pensamento espalhava ao redor, como a lua surgindo sobre águas turbulentas, um tranquilo lençol de prata. Agora levou a mão ao peito (a outra ainda estava sob a guarda do capitão), onde as páginas do poema estavam escondidas. Podia ser um talismã o que mantinha ali. A preocupação com o sexo a que pertencia, e o que isso significava, diminuiu; ela agora somente pensava na glória da poesia, e os grandes versos de Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Milton começaram a pulsar e a reverberar, como se um badalo dourado batesse no sino dourado da torre da catedral que era a sua mente. A verdade era que a imagem da cúpula de mármore — que seus olhos no início tinham descoberto tão tenuemente que sugeria a testa do poeta e assim um bando de ideias irrelevantes — não era ficção, mas uma realidade; e enquanto o navio avançava pelo Tâmisa, com uma brisa favorável, a imagem, com todas as suas associações, deu lugar à verdade e revelou-se nada mais nada menos como a cúpula de uma vasta catedral, erguendo-se entre relevos de espirais brancas.

“São Paulo”, disse o capitão Bartolus, que estava ao seu lado. “A Torre de Londres”, continuou. “O Hospital de Greenwich, construído em memória da rainha Maria por seu falecido esposo, Sua Majestade Guilherme III. A Abadia de Westminster. As Casas do Parlamento.” Enquanto falava, cada um desses famosos prédios aparecia. Era uma linda manhã de setembro. Uma miríade de pequenas embarcações trafegava de uma margem para outra. Raramente um viajante de regresso presenciara espetáculo mais alegre e mais interessante. Orlando estava na proa, absorta e maravilhada. Seus olhos tinham se acostumado por muito tempo aos selvagens e à natureza, para não se fascinarem com essas glórias urbanas. Aquilo, então, era a cúpula de São Paulo, que o sr. Wren construíra durante a sua ausência. Bem próximo, uma cabeleira dourada surgiu de uma coluna — o capitão Bartolus estava ao seu lado para informar que aquilo era o Monumento; tinha havido uma peste e um incêndio durante a sua ausência, disse ele. Por mais que quisesse conter-se, as lágrimas vieram-lhe aos olhos, até que, lembrando que é próprio da mulher chorar, deixou-as fluir. Aqui, pensou, tinha sido o grande carnaval, Aqui, onde as ondas batem com força, estivera o Pavilhão Real. Aqui ela encontrara Sasha pela primeira vez. Por ali (ela olhava a profundidade das águas cintilantes) costumava-se ver a mulher congelada, no bote, com suas maçãs no regaço. Todo aquele esplendor e aquela corrupção tinham passado. Haviam passado também a noite escura, o monstruoso dilúvio e as violentas vagas da inundação. Aqui, onde os blocos de gelo amarelado tinham rodopiado levando no alto uma multidão de mendigos aterrorizados, um bando de cisnes flutuava orgulhoso, ondulante, soberbo. A própria Londres tinha mudado completamente desde que a vira pela última vez. Naquele tempo, lembrava, era um amontoado de pequenas casas pretas e sombrias. As cabeças dos rebeldes sorriam com ironia, nas lanças em Temple Bar. Os pavimentos de pedra estavam impregnados de cheiro de lixo e de esterco. Agora, como o navio costeasse Wapping, ela viu de relance estradas largas e regulares. Carruagens imponentes, puxadas por parelhas de cavalos bem-alimentados, permaneciam às portas das casas, cujas sacadas, vidraças e aldrabas polidas testemunhavam a riqueza e a comedida dignidade de seus habitantes. Senhoras vestidas de sedas floridas (ela usou o binóculo do capitão) caminhavam pelas altas calçadas. Cidadãos de casacos bordados cheiravam rapé nas esquinas, debaixo dos lampiões. Avistou uma variedade de anúncios pintados, balançando com a brisa, e pôde ter uma rápida noção do que estava escrito neles a respeito de tabaco, panos, seda, ouro, prataria, luvas, perfumes e mil outros artigos à venda ali. À medida que o navio se dirigia para o ancoradouro, perto da Ponte de Londres, ela nada podia fazer além de olhar para as janelas dos cafés, em cujas sacadas, já que o tempo estava bom, um grande número de respeitáveis cidadãos sentava-se confortavelmente diante de pratos de porcelana, cachimbos de barro ao lado, enquanto um deles lia o jornal e era frequentemente interrompido pela risada ou comentários dos outros. Seriam tavernas, seriam intelectuais, seriam poetas?, perguntou ao capitão Bartolus, que amavelmente informou que mesmo agora — se ela virasse um pouco a cabeça para a esquerda e olhasse em direção ao seu dedo indicador — assim — estariam passando pelo Cacaueiro, onde — sim, lá estava ele — podia-se ver o sr. Addison tomando o seu café; os outros dois cavalheiros — “ali, senhora, um pouco à direita do lampião, um deles corcunda, o outro como a senhora ou eu” — ali estavam o sr. Dryden e o sr. Pope. [1] “Pobres-diabos”, disse o capitão, querendo dizer que eram papistas, “mas homens de talento, apesar disso”, acrescentou, correndo para a popa para dirigir as manobras de atracação.


[1] O capitão estava cometendo um erro, como se pode verificar consultando qualquer
manual de literatura; mas, como o erro era bem-intencionado, deixamos que
permanecesse. (N.A.)


“Addison, Dryden e Pope”, repetia Orlando, como se essas palavras fossem encantadas. Por um momento viu as altas montanhas sobre Broussa, e no momento seguinte pisava sua terra natal.

Mas agora Orlando teria de aprender como é insignificante o mais tempestuoso alvoroço de excitação diante da face férrea da lei; como esta é mais dura do que pedras da Ponte de Londres e mais rígida do que a boca de um canhão. Nem bem retornara a sua casa em Blackfriars, foi avisada, por uma série de mensageiros de Bow Street e outros importantes emissários da Corte de Justiça, de que era parte em três grandes processos movidos contra ela em sua ausência, bem como em inúmeros outros litígios menores, alguns decorrentes e outros dependentes daqueles. As principais acusações contra ela eram: (1) que estava morta e portanto não podia ter propriedade alguma; (2) que era mulher, o que significa a mesma coisa; (3) que ela era um duque inglês, que casara com uma dançarina, Rosina Pepita, com quem tivera três filhos, os quais, declarando que o pai estava morto, reclamavam a posse de todas as suas propriedades. Acusações tão graves como estas, é claro, exigem tempo e dinheiro para serem resolvidas. Todos os seus bens foram embargados, seus títulos suspensos, enquanto os processos estavam em curso. Assim, foi numa condição extremamente ambígua — sem saber se estava morta ou viva, se era homem ou mulher, duque ou ninguém — que partiu para sua casa no campo, onde, à espera do julgamento legal, tinha permissão da corte para residir, incógnito ou incógnita, conforme fosse o caso.

Era uma linda tarde de dezembro quando chegou, a neve caía e as sombras violeta tinham a mesma inclinação das que ela vira dos cumes de Broussa. A grande casa parecia mais uma cidade do que uma casa, marrom e azul, rosa e púrpura, na neve, com todas as chaminés fumegando atarefadamente, como se animadas por vida própria. Ela não pôde conter um grito ao vê-la, tranquila e maciça, estendida sobre os prados. Quando a carruagem amarela entrou no parque e rodou ao longo das alamedas entre as árvores, os veados vermelhos levantaram a cabeça em expectativa, e observou-se que, em vez de mostrarem a timidez natural de sua espécie, acompanharam a carruagem e permaneceram no pátio quando ela parou. Alguns sacudiam a galhada, outros batiam com as patas no chão, quando o estribo desceu e Orlando saltou. Diz-se que um, realmente, se ajoelhou na neve, diante dela. Ela não teve tempo de levar a mão à aldraba antes que as folhas da grande porta fossem abertas de par em par, e lá estavam, com luzes e tochas acima de suas cabeças, a sra. Grimsditch, o sr. Dupper e um séquito de criados que vieram saudá-la. Mas o organizado desfile foi interrompido, primeiro pela impetuosidade de Canute, o galgo, que se atirou sobre sua dona com tal ardor que quase a derrubou ao chão; em seguida, pela agitação da sra. Grimsditch, que, ao fazer uma reverência, foi dominada pela emoção e não conseguia senão balbuciar “Milorde! Milady! Milady! Milorde!”, até que Orlando confortoua com um beijo carinhoso em ambas as faces. Depois disso, o sr. Dupper começou a ler um pergaminho, mas, os cachorros latindo, os caçadores soprando as trombetas e os veados — que haviam acorrido ao pátio na confusão — bramindo para a lua, não pôde ir adiante, e o grupo se dispersou depois de se comprimir em torno de sua senhora e de demonstrar de todas as maneiras grande alegria pelo seu regresso.




continua pag 70...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
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