domingo, 30 de maio de 2021

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (28)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE



XXVIII – RENATA DE L’ESTORADE A LUÍSA DE MACUMER 


Dezembro de 1825 

Minha muito feliz Luísa, deslumbraste-me. Durante alguns instantes sustive. nas mãos tua carta, na qual brilhavam ao sol poente algumas lágrimas minhas, ficando de braços caídos e sozinha ao pé do rochedo árido, onde mandei colocar um banco. Ao longe, como uma lâmina de aço, brilha o Mediterrâneo. Algumas árvores fragrantes sombreiam este banco, junto do qual fiz plantar um enorme jasmineiro, madressilvas e algumas giestas. O rochedo, um dia, ficará completamente coberto de trepadeiras. Já lá tenho vinhas virgens. Mas o inverno se aproxima, e toda essa verdura parece uma velha tapeçaria. Quando estou aqui ninguém me vem perturbar, pois sabem que desejo estar só. Esse banco se chama o banco de Luísa. Não equivale isso a dizer-te que não fico sozinha aqui, embora só?

Se te refiro esses detalhes, tão insignificantes para ti, se te pinto essa verdejante esperança que, por antecipação, reveste esse rochedo nu, imponente, no alto do qual os acasos da vegetação colocaram um dos mais belos pinheiros, é porque encontrei aqui imagens a que me afeiçoei.

Alegrando-me com teu feliz casamento (e por que não te confessarei tudo?), invejando-o com todas as minhas forças, senti o primeiro movimento de meu filho, que, das profundezas de minha vida, reagiu sobre as profundezas de minha alma. Essa surda sensação que é ao mesmo tempo um aviso, um prazer, uma dor, uma promessa, uma realidade; essa felicidade que é só minha no mundo e que se mantém um segredo entre mim e Deus, esse mistério me revelou que o rochedo seria um dia recoberto de flores, que os alegres risos de uma família ali ressoariam, que as minhas entranhas estavam por fim abençoadas e dariam vida a jorros. Senti que nascera para mãe! Por isso a primeira certeza que tive de trazer em mim uma outra vida me deu benfazejas consolações. Uma imensa alegria coroou todos estes longos dias de dedicação que já fizeram a felicidade de Luís.

— Dedicação! — a mim mesma perguntei. — Não serás tu mais do que o amor? Não és tu a mais profunda volúpia, por seres uma volúpia abstrata, a volúpia geradora? Não serás tu, ó Dedicação, a faculdade superior ao efeito? Não és tu a misteriosa e infatigável divindade oculta sob as inúmeras esferas, num centro desconhecido por onde passam sucessivamente todos os mundos? A Dedicação, sozinha no seu segredo, cheia de prazeres saboreados em silêncio, sobre os quais ninguém dirige um olhar profano e que ninguém suspeita, a Dedicação, densa, ciosa e acabrunhante, deusa vencedora e forte, inesgotável por participar da própria natureza das coisas e que é assim sempre igual a si mesma, apesar do derramamento de suas forças, a Dedicação, eis pois o signo de minha vida.

O amor, Luísa, é um esforço de Felipe sobre ti, mas a irradiação de minha vida sobre a família provocará uma reação incessante desse pequenino mundo sobre mim! Tua bela messe dourada é passageira; mas a minha, embora retardada, não será por isso mais durável? Renovar-se-á de momento a momento. O amor é o mais lindo furto que a sociedade soube fazer à natureza; mas a maternidade não é a natureza na sua felicidade? Um sorriso secou-me as lágrimas. O amor torna o meu Luís feliz: mas o casamento fez-me mãe e também quero ser feliz! Voltei então vagarosamente ao meu branco bastião de persianas verdes para escrever-te esta.

Portanto, querida, o fato mais natural e mais surpreendente em nós firmou-se em mim faz cinco meses; mas posso dizer-te baixinho que em nada ele perturba meu coração, nem minha inteligência. Vejo-os a todos felizes: o futuro avô usurpa os direitos do neto, tornou-se uma espécie de criança; o pai toma ares graves e inquietos; todos me cercam de cuidados, falam da felicidade de ser mãe. Ai de mim! Se eu nada sinto e não me animo a confessar o estado de insensibilidade perfeita em que estou.

Minto um pouco para não lhes toldar a alegria. Como contigo me é permitido ser franca, confesso-te que, na crise em que me acho, a maternidade começa apenas na imaginação. Luís ficou tão surpreendido, como eu mesma, de minha gravidez. Não equivale isso a dizer-te que esta criança veio por si mesma, sem ter sido desejada mais do que pelos votos impacientemente expressos pelo pai? O acaso, querida, é o deus da maternidade. Porquanto, segundo diz nosso médico, esses acasos estejam em harmonia com os desígnios da natureza, ele não me negou que as crianças, que tão graciosamente são denominadas filhas do amor, deviam ser belas e inteligentes; que suas vidas eram, muitas vezes, como que protegidas pela felicidade que, brilhante estrela!, irradiara por ocasião da sua concepção. Talvez, portanto, Luísa, terás em tua maternidade alegrias que devo ignorar na minha. É possível que se queira mais ao filho de um homem adorado, como tu adoras Felipe, que ao de um marido que se desposou por conveniência, ao qual nos entregamos por dever, para afinal de contas sermos mulheres! Esses pensamentos, guardados no fundo do meu coração, concorrem para aumentar minha gravidade de mãe, em esperança. Mas, como não há família sem filhos, meu desejo quisera apressar o instante no qual começarão para mim os prazeres da família, que deverão constituir toda a minha existência. Neste momento minha vida é uma vida de espera e de mistério, na qual o mais nauseabundo sofrimento habitua, sem dúvida, a mulher a outros sofrimentos. Observo-me. Apesar dos esforços de Luís, cujo amor me cerca de cuidados, de carinhos e de ternuras, tenho vagas inquietações, às quais se misturam os enjoos, as perturbações, os singulares desejos da gravidez. Para te dizer toda a verdade, correndo embora o risco de te causar alguma repugnância pelo ofício, confesso-te que não compreendo a fantasia que experimento por certas laranjas, gosto estranho, mas que acho natural. Meu marido vai buscar em Marselha para mim as mais belas laranjas do mundo; ele as faz vir de Malta, de Portugal e da Córsega; eu, porém, as desprezo. Vou a Marselha algumas vezes a pé devorar laranjas ordinárias, de um vintém, quase podres, numa ruazinha estreita que desce para o porto a dois passos da Municipalidade; e seu bolor azulado ou esverdeado brilha a meus olhos como diamantes; vejo nele flores, não tenho impressão nenhuma de seu cheiro corrompido e acho-lhe um sabor irritante, um calor vinhoso, um delicioso gosto. Pois aí está, meu anjo, são essas as primeiras sensações amorosas da minha vida. Essas horríveis laranjas são os meus amores. Tu não desejas tanto Felipe quanto eu uma dessas frutas em decomposição. Enfim, saio algumas vezes furtivamente, corro até Marselha com passo célere e sinto estremecimentos voluptuosos quando me aproximo da rua: tenho medo de que a vendedora não tenha laranjas podres, atiro-me sobre elas, como-as, devoro-as ao ar livre. Parece-me que essas frutas vêm do paraíso e constituem o mais suave alimento. Vi Luís desviar-se para não lhes sentir o mau cheiro. Lembrei-me daquela frase atroz de Obermann,[1] elegia sombria que me arrependo de ter lido: As raízes se desalteram numa água fétida! Desde que comi essas frutas, nada mais sinto no coração, e minha saúde se restabeleceu. Essas depravações têm um sentido, pois são um efeito natural, e a metade das mulheres sente desses desejos, algumas vezes monstruosos. Quando minha gravidez se tornar bastante visível não sairei mais da Crampade, não me agradaria ser vista nessas condições.

Estou excessivamente curiosa por saber em que momento da vida começa o sentimento materno. Não pode ser no instante das pavorosas dores que eu temo.

Adeus, minha feliz! Adeus, tu, em quem torno a nascer e por quem me são revelados os belos amores, os ciúmes por causa de um olhar, essas palavras sussurradas ao ouvido e esses prazeres que nos envolvem como uma outra atmosfera, um outro sangue, uma outra luz, uma outra vida! Ah! Mimosa, também eu compreendo o amor. Não te canses de me dizer tudo. Cumpramos rigorosamente o que convencionamos. Quanto a mim, nada te pouparei. Por isso, eu te direi para terminar sisudamente esta carta que, ao reler-te, fui assaltada por um profundo e invencível terror. Pareceu-me que esse esplêndido amor desafiava Deus. O soberano senhor do mundo, o Infortúnio, não irá zangar-se por não ter um lugar no vosso festim? Quantas soberbas fortunas não derrubou ele? Ah! Luísa, não te esqueças, em meio a tua felicidade, de rogar a Deus. Faze o bem, sê caridosa e boa; enfim, exorciza a adversidade com a tua modéstia. Depois do meu casamento, eu me tornei mais devota ainda do que era no convento. Nada me dizes da religião em Paris. Na tua adoração por Felipe, parece-me que te diriges, contra o provérbio, mais ao santo do que a Deus. Meu terror, porém, é excesso de amizade. Vocês vão juntos à igreja e praticam o bem em segredo, não é? Vais achar-me, talvez, demasiado provinciana neste fim de carta. Lembra-te, porém, que meus temores encobrem uma extrema amizade, a amizade como a entende La Fontaine,[2] a que se inquieta e se alarma com um sonho, com uma ideia no estado de nuvem. Mereces ser feliz, pois que pensas em mim na tua felicidade, da mesma forma que eu penso em ti na minha vida monótona, um pouco incolor, mas cheia, sóbria, mas produtiva: sê pois bendita!



continua pág 308...
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[1]Obermann (1804): famoso romance melancólico de Senancour, cujo herói é um parente francês do Werther, de Goethe. O livro, formado por uma série de cartas sem resposta a um amigo, nas quais Obermann conta suas desilusões, sua desorientação, a inquietação de seu espírito, era muito lido e ainda mais citado durante a primeira parte do século XIX.

[2] Alusão à fábula Os dois amigos (Fábulas, VIII, 11).

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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