Avulsos - ...
Machado de Assis
NA ARCA
CAPÍTULO B
1. — Ora, Jafé, tendo curtido a cólera, começou a espumar pela boca, e Cam falou-lhe palavras de brandura,
2. — Dizendo: — “Vejamos um meio de conciliar tudo; vou chamar tua mulher e a mulher de Sem”.
3. — Um e outro, porém, recusaram dizendo que o caso era de direito e não de persuasão.
4. — E Sem propôs a Jafé que compensasse os dez côvados perdidos, medindo outros tantos nos fundos da terra dele. Mas Jafé respondeu:
5. — “Por que me não mandas logo para os confins do mundo? Já te não contentas com quinhentos côvados; queres quinhentos e dez, e eu que fique com quatrocentos e noventa.
6. — “Tu não tens sentimentos morais? não sabes o que é justiça? não vês que me esbulhas descaradamente? e não percebes que eu saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?
7. — “E que, se é preciso correr sangue, o sangue há de correr já e já,
8. — “Para te castigar a soberba e lavar a tua iniquidade?”
9. — Então Sem avançou para Jafé; mas Cam interpôs-se, pondo uma das mãos no peito de cada um;
10. — Enquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do dilúvio, tinham vivido na mais doce concórdia, ouvindo o rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dois irmãos, e começaram a vigiar-se um ao outro.
11. — E disse Cam: — “Ora, pois, tenho uma idéia maravilhosa, que há de acomodar tudo;
12. — “A qual me é inspirada pelo amor, que tenho a meus irmãos. Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado de meu pai, e ficarei com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte côvados cada um.”
13. — E Sem e Jafé riram com desprezo e sarcasmo, dizendo: — “Vai plantar tâmaras! Guarda a tua ideia para os dias da velhice”. E puxaram as orelhas e o nariz de Cam; e Jafé, metendo dois dedos na boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.
14. — Ora, Cam, envergonhado e irritado, espalmou a mão dizendo: — “Deixa estar!” e foi dali ter com o pai e as mulheres dos dois irmãos.
15. — Jafé porém disse a Sem: — “Agora que estamos sós, vamos decidir este grave caso, ou seja de língua ou de punho. Ou tu me cedes as duas margens, ou eu te quebro uma costela.”
16. — Dizendo isto, Jafé ameaçou a Sem com os punhos fechados, enquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada: “Não te cedo nada, gatuno!”
17. — Ao que Jafé retorquiu irado: “Gatuno és tu!”
18. — Isto dito, avançaram um para o outro e atracaram-se. Jafé tinha o braço rijo e adestrado; Sem era forte na resistência. Então Jafé, segurando o irmão pela cinta, apertou-o fortemente, bradando: “De quem é o rio?”
19. — E respondendo Sem: — “É meu!” Jafé fez um gesto para derrubá-lo; mas Sem, que era forte, sacudiu o corpo e atirou o irmão para longe; Jafé, porém, espumando de cólera, tornou a apertar o irmão, e os dois lutaram braço a braço,
20. — Suando e bufando como touros.
21. — Na luta, caíram e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Jafé,
22. — Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os igualmente, e eles lutavam com as mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do céu.
23. — Então as vozes e brados chegaram aos ouvidos de Noé, ao mesmo tempo que seu filho Cam, que lhe apareceu clamando: “Meu pai, meu pai, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lameque setenta vezes sete, o que será de Jafé e Sem?”
24. — E pedindo Noé que explicasse o dito, Cam referiu a discórdia dos dois irmãos, e a ira que os animava, e disse: — “Correi a aquietá-los”. Noé disse: — “Vamos”.
25. — A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.
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Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?
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