domingo, 29 de agosto de 2021

Machado de Assis - Na Arca: Capítulo C

Avulsos - ...


Machado de Assis




NA ARCA
 TRÊS CAPÍTULOS INÉDITOS DO GÊNESIS 



CAPÍTULO C



1. — Eis aqui chegou Noé ao lugar onde lutavam os dois filhos, 

2. — E achou-os ainda agarrados um ao outro, e Sem debaixo do joelho de Jafé, que com o punho cerrado lhe batia na cara, a qual estava roxa e sangrenta. 

3. — Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu apertar o pescoço do irmão, e este começou a bradar: “Larga-me, larga-me!” 

4. — Ouvindo os brados, as mulheres de Jafé e Sem acudiram também ao lugar da luta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a dizer: “O que será de nós? A maldição caiu sobre nós e nossos maridos.” 

5. — Noé, porém, lhes disse: “Calai-vos, mulheres de meus filhos, eu verei de que se trata, e ordenarei o que for justo.” E caminhando para os dois combatentes, 

6. — Bradou: “Cessai a briga. Eu, Noé, vosso pai, o ordeno e mando”. E ouvindo os dois irmãos o pai, detiveram-se subitamente, e ficaram longo tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum deles. 

7. — Noé continuou: “Erguei-vos, homens indignos da salvação e merecedores do castigo que feriu os outros homens”. 

8. — Jafé e Sem ergueram-se. Ambos tinham feridos o rosto, o pescoço e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque tinham lutado com unhas e dentes, instigados de ódio mortal. 

9. — O chão também estava alagado de sangue, e as sandálias de um e outro, e os cabelos de um e outro, 

10. — Como se o pecado os quisera marcar com o selo da iniquidade. 

11. — As duas mulheres, porém, chegaram-se a eles, chorando e acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Jafé e Sem não atendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar seu pai. 

12. — O qual disse: “Ora, pois, quero saber o motivo da briga”. 

13. — Esta palavra acendeu o ódio no coração de ambos. Jafé, porém, foi o primeiro que falou e disse:

14. — “Sem invadiu a minha terra, a terra que eu havia escolhido para levantar a minha tenda, quando as águas houverem desaparecido e a arca descer, segundo a promessa do Senhor; 

15. — “E eu, que não tolero o esbulho, disse a meu irmão: “Não te contentas com quinhentos côvados e queres mais dez?” E ele me respondeu: “Quero mais dez e as duas margens do rio que há de dividir a minha terra da tua terra”. 

16. — Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em Sem; e acabando Jafé, perguntou ao irmão: “Que respondes?” 

17. — E Sem disse: — “Jafé mente, porque eu só lhe tomei os dez côvados de terra, depois que ele recusou dividir o rio em duas partes; e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti que ele medisse outros dez côvados nos fundos das terras dele, 

18. — “Para compensar o que perdia; mas a iniquidade de Caim falou nele, e ele me feriu a cabeça, a cara e as mãos”. 

19. — E Jafé interrompeu-o dizendo: “Porventura não me feriste também? Não estou ensanguentado como tu? Olha a minha cara e o meu pescoço; olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas unhas de tigre”. 

20. — Indo Noé falar, notou que os dois filhos de novo pareciam desafiar-se com os olhos. Então disse: “Ouvi!” Mas os dois irmãos, cegos de raiva, outra vez se engalfinharam, bradando: — “De quem é o rio?” — “O rio é meu”. 

21. — E só a muito custo puderam Noé, Cam e as mulheres de Sem e Jafé conter os dois combatentes, cujo sangue entrou a jorrar em grande cópia. 

22. — Noé, porém, alçando a voz, bradou: — “Maldito seja o que me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não setenta vezes sete, mas setecentas vezes setenta. 

23. — “Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis as tendas.” 

24. — Depois ficou meditabundo. 

25. — E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava levantada, bradou com tristeza: 

26. — “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?” 

27. — E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pai. 

28. — A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.


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Machado de Assis - Na Arca: Capítulo A
Machado de Assis - Na Arca: Capítulo B
Machado de Assis - Na Arca: Capítulo C
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ÍNDICE:


ADVERTÊNCIA 
O ALIENISTA 
TEORIA DO MEDALHÃO 
A CHINELA TURCA 
NA ARCA 
D. BENEDITA 
O SEGREDO DO BONZO 
O ANEL DE POLÍCRATES
O EMPRÉSTIMO 
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA 
O ESPELHO 
UMA VISITA DE ALCIBÍADES 
VERBA TESTAMENTÁRIA 
NOTAS DO AUTOR
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Papéis Avulsos

Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.




Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?


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