segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O Brasil Nação - V2: § 86 – ... até no materialismo - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 86 – ... até no materialismo


As finanças desacreditaram-se, numa lastimável prova de incapacidade para a própria inferioridade de tesouraria e rendas. Contudo, é aí, no materialismo de receita e riqueza, que os patuscos estadistas da República ostentam o gênio de que se sentem possuídos, para o fluxo da grandeza que sonham, para si e para a pátria de que se fizeram senhores. E tanto forçaram na materialidade que, nela incorporados, tornaram a respectiva República incompatível com a superioridade da vida e o trato das coisas do espírito. No ideal, com cuja realização sonham, os anais da nação brasileira se fariam num livro-caixa. Anunciam-nos, agora mesmo, a renascença republicana, mas os seus pró-homens só se exaltam, em toda a dignidade da função política, quando se dilatam nas materialidades... E vemos o canastrão bem nutrido, a alargar-se no leito de lodaçal. Não pareça exagero, ou grosseira a imagem. A natureza animal tem o seu tipo de opulência material, forma viva reservada ao acúmulo de riqueza orgânica, o potentado da gordura, que é a própria riqueza armazenada no organismo – o porco. Assim fadado, prendeu-o a evolução à rasteirice do chão, à terra podre, onde o seu focinho, o mais potente da animalidade, revolverá, inclemente como o próprio destino, que, na rija cerviz inclinada, o condenou a nunca levantar o olhar. É o símbolo da objetividade da vida, encerrado no materialismo. Aí se acha, para eles, a política construtora e objetiva, superior a sentimentalismos e fórmulas de coração. Sim: ao sentir que lhe falam de generosos ideais, a política dominante deixa subir aos lábios toda a essencial degradação e se dá ao sorriso de imbecil desdém com que repele tudo que não sirva para riqueza tangível, verificavam em $$. Destarte, secos, antipáticos à verdadeira beleza da vida moral, rasteiros, na medida em que se supõem práticos, os evoluídos republicanos, ao fecharem na prosperidade material as suas aspirações, deram a si mesmos um preço de riqueza material. E foi possível, então, ao cabo dessa triste evolução, que um dos predestinados senhores se anuncie à criadagem sem-vergonha e sem dedicação, na ostensiva materialidade dos propósitos políticos: “O sentimentalismo é para as nacionalidades o mesmo que as substâncias entorpecentes para os viciados.” Sim: não há feitor que, irritado e ufano na sua condição, não despreze o sentimentalismo. Pois não é o sentimentalismo isto mesmo que, nos corações humanos, se exalta para o bem, e sofre da injustiça e condena o privilégio espoliador, e se retraí à vista de braços alçados em azorrague?... Como acabrunha e oprime o respirar o ambiente onde vive uma tal bestialidade de inspiração!...

Vida que ainda não saiu da paisagem de senzalas, a nossa política governamental timbra em manter-se na dureza vil de sempre. Qualquer que seja a fórmula de civilização, o homem humaniza-se na medida em que idealiza os interesses materiais, e sentimentaliza os próprios instintos. A necessidade da procriação é a mesma, mas para o humano, o sexo revela-se em amor, e ama em idílio. Eis o sentimentalismo – tóxico somente para as sensibilidades bestiais. Numa nacionalidade que se eleva para a verdadeira solidariedade humana, o sentimentalismo é a fórmula necessária dessa elevação, e vale como índice definido. E tanto, que, uma legítima política tem de aceitar como programa e organizar, em lucidez de ação, as energias sentimentais da nação. No nosso caso, é energia essencial essa bondade em que se caracteriza a alma brasileira, e que brotou da cordial compaixão pelas raças infelizes, secular reação afetiva contra os braços feitores e o governo de mandões. Então, quando hoje, a índole de governança espezinha o sentimentalismo, vemos, no gesto, o tracejar do relho, ao longo do eito que inspirava a política herdada e viva, ainda, para irritar- -se de ideais efetivos. Esta vida, e a materialidade dos seus propósitos, eles a justificam apontando a verdade das contingências positivas numa sociedade atual. Não negamos, tais verdades; mas, se o importante no viver social e no desenvolvimento político é a organização do futuro, para isto, como definição de esperanças, as verdades consagradas pouco valem. Podem, mesmo, matar o ideal vivificante, fonte primeira dessas energias em que se dispõe o futuro melhor. Foi na reação contra essas verdades assassinas, que Ibsen criou as suas mentiras vitais, fórmula das fecundas ficções em que se define o progresso, consagração de ideais, encantadoras irrealidades, antecipada consolação de toda pena na conquista da justiça, símbolo em que se erigem as verdadeiras construções sociais. Ficções, mentiras, irrealidades... miraculosos e irresistíveis impulsos para a necessária eliminação de tudo que, do passado, já é peso morto, e só se impõe como privilégio. Para tudo isto, definição de esperanças, notação de progresso humano, nada valem as materialidades, contingências que peiam e abatem. Ward, um puro anglo-saxônico em renovação americana, afasta inteiramente a materialidade do seu conceito de progresso, a que chama de acabamentos (finishings): “O acabamento não consiste em riqueza; a riqueza é efêmera, o acabamento, persistente, é eterno. E, note-se o paradoxo: a riqueza, passageira, é material, o acabamento, durável, é imaterial... Tudo que vem crescer o patrimônio da humanidade como ganho permanente... é principalmente psíquico, mental”. De fato, deste modo se retempera e apura a vida humana. Nem de outra forma se compreende que o homem, com a sua tendência de socialização, possuísse, em exclusividade, a capacidade de espiritualizar-se e sentimentalizar os seus instintos, se tal não lhe fosse útil. 

Antes de qualquer outro, já o notara Aristóteles: A natureza nada criou de inútil. Destacando o homem em sublimação de vida física, ela o fadou para o progresso social. Muitos são os animais sociais, só o homem com poder de idealização e de sentimentalização, só o homem é capaz de progresso... Como corolário: todo progresso humano resulta dessa proteção dos ânimos para um ideal, que é a própria focalização dos esforços para melhorar e subir. 

A realização da República se faz por fora de toda superioridade de intuitos, no ostensivo desdém de ideais, contrariando-os formalmente, em troca de prosperidade material e riqueza, que, mesmo conquistadas, não deixariam de ser inferioridades, e que, representadas apenas em fracasso, são testemunhos de inépcia. Como desvairada, no anseio aviltante de riqueza, e no gozo exclusivo do poder, a política republicana desprezou o pensamento, renegou a verdade e a justiça, anulou a liberdade, afastou toda possibilidade de apuro político e de efetiva solidariedade... e nunca o Brasil foi mais realmente pobre, não só de beleza moral, mas da própria fortuna capitalizada. Relativamente aos seus recursos, com os meios que a unidade nacional oferece, é, esta nação, a menos próspera na América. Inflam a voz, os rasteiros dirigentes republicanos, em apontar qual o aumento de produção correspondente ao novo regime, o desenvolvimento do comércio, o incremento de algumas cidades, o volume de fortunas. particulares... Já foi acentuado que o verdadeiro motivo sobre a produção foi a extinção do trabalho escravo. A federação, facilitando as fórmulas administrativas, abreviando-as, talvez concorreu um pouco para o surto da produção, após 15 de novembro; mas nunca seria para longos e extensos efeitos, comparáveis ao da radical transformação do regime de trabalho. Com tudo isso, se considerarmos no aumento da população, e, sobretudo, nos resultados das últimas aplicações industriais da ciência, não se acusa no Brasil efetiva prosperidade material. O aumento real, o indisfarçável incremento, foi nas cifras do orçamento, que é hoje, o décuplo, quase, do que era há 35 anos, ao passo que nesse período, a produção apenas duplicou. Reflita-se, no entanto, que, dados os recursos que a ciência e a técnica trouxeram à produção, se os dirigentes tivessem capacidade para efetivos gestores da economia nacional, a súmula do trabalho devia ter dar ao Brasil o quádruplo, ou o quíntuplo do que realmente dá. 

Em vez disto, que utilização inteligente, sistemática, realmente econômica, já fez a política brasileira de qualquer desses recursos?... Automóvel para garboso passeio dos potentados e dos seus, rádio oficial, para que se passem as noitadas, filmes e projeções em que eles se pavoneiem na importância e dignidade das suas funções... E todo o resto do mundo brasileiro, e o resto da atividade social?... Onde não seja podridão comunicada, é desalento, incerteza, ignorância, descrença, asco, irritação... apenas semeados de vagas esperanças, e um fundo de vida moral apagada, diluído atavismo de conduta, moralidade sem símbolos, indiferente à perfeição, sem propriedade de afirmações, pois que todas se desmentiram no exemplo da política. Possibilidades de remissão?... A energia que nos remisse de tanta ignomínia estaria em consciências livres, iluminadas por ideais de solidariedade humana, impermeáveis aos interesses dominantes nos políticos tradicionais. São consciências que vão serenamente aos fins de humanidade, porque têm, nelas mesmas, o mundo superior da justiça. Irradiando dessas mentes se faria a propaganda de probidade e do bem público, propaganda que mostrasse a esta pátria aviltada pela materialidade inepta e desonesta dos dirigentes, que há uma riqueza de pensamento, bem mais eficaz, a única realmente eficaz, para a inteira grandeza social; e que, por sobre o pensamento, a exaltá-lo e bem conduzi-lo, há o coração, aberto à bondade, solícito pela justiça, bondade e justiça, luz da terra, halo em que se envolverá a humanidade no termo dos seus destinos. 

Potentados e privilegiados sobre a miséria da nação, esses dirigentes não suportariam vozes que pudessem levá-la à redenção... E o remédio são, natural, ainda é impossível; há que esconder no imo coração todos esses ideais... Mas a luz não se anula porque a fechem: a menor fresta a revela, e o homem irá, finalmente, para ela, ainda que tenha de abrir a talhos o caminho até lá. Erguendo a força do coração sobre o ideal de bondade, clamou Santo Agostinho: “Ama! e faz em seguida o que quiseres...” Amemos os nossos ideais, e eles nos levarão, mesmo a preço de vidas, à remissão desta pátria, hoje possuída pela podridão. Seremos, nós outros, brasileiros, tão desprovidos, assim, de desinteressado amor a esta nacionalidade, que não consigamos, finalmente, elevar a vida deste povo a um nível realmente humano?... Lembremo-nos de que, quando houve um ideal a conduzi-los, os brasileiros fizeram a Insurreição Pernambucana, a Revolução de Dezessete, a de 1824, a de 1831, a de 1837, a de 1848, a Abolição, e teriam dado realidade à República, se tivessem levado o povo à plena consciência desse ideal, se o lodo da secular tradição política dirigente não houvesse soterrado a incerta luz de 15 de novembro...


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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