domingo, 29 de agosto de 2021

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O domínio de uma moça (XI)

  Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XI

O DOMÍNIO DE UMA MOÇA




Admiro sua beleza, mas temo seu espírito.

MÉRIMÉE





SE JULIEN TIVESSE empregado em examinar o que se passava no salão o tempo que gastava exagerando a beleza de Mathilde, ou arrebatando-se contra o orgulho natural à sua família, que ela esquecia em favor dele, teria compreendido em que consistia seu domínio sobre tudo o que a cercava. Assim que alguém desagradava à srta. de La Mole, ela sabia punir com um gracejo tão comedido, tão bem escolhido, aparentemente tão adequado e oportuno, que a ferida crescia a cada instante quanto mais se refletia sobre ela, tornando-se aos poucos cruel para o amor-próprio ofendido. Como não dava nenhum valor a muitas coisas que eram objetos de desejo sérios para o resto da família, ela parecia ter sangue-frio aos olhos desta. Os salões da aristocracia são agradáveis de citar quando se pertence a eles, mas isso é tudo; a polidez só significa alguma coisa por si mesma nos primeiros dias. Julien percebia isso: depois do primeiro encantamento, o primeiro espanto. A polidez, ele pensava, é apenas a ausência da cólera que a má-educação mostraria. Mathilde aborrecia-se com frequência, talvez estivesse sempre aborrecida. Assim, aguçar um epigrama era para ela uma distração e um verdadeiro prazer.
Era talvez para ter vítimas um pouco mais divertidas do que seus avós, do que o acadêmico e os cinco ou seis outros subalternos que a cortejavam, que ela dera esperanças ao marquês de Croisenois, ao conde Caylus e a outros dois ou três jovens de primeira distinção. Eram para ela apenas novos objetos de epigramas.
Confessaremos com pesar, pois gostamos de Mathilde, que ela recebera cartas de vários deles e às vezes lhes respondera. Apressamo-nos em acrescentar que esta personagem é uma exceção aos costumes do século. Em geral, não é a falta de prudência que se pode reprovar às alunas do nobre convento do Sacré-Coeur.
Um dia o marquês de Croisenois devolveu a Mathilde uma carta bastante comprometedora que ela lhe escrevera na véspera. Ele acreditava, com esse gesto de alta prudência, valorizar-se. Mas era a imprudência que Mathilde amava em suas cartas. Seu prazer era arriscar a sorte. Por seis semanas, não lhe dirigiu a palavra.
Ela divertia-se com as cartas desses jovens; mas, segundo ela, todas se pareciam. Era sempre a paixão mais profunda, mais melancólica.

– Todos são o mesmo homem perfeito, disposto a partir para a Palestina, ela dizia à sua prima. Conhece algo de mais insípido? Eis as cartas que vou receber a vida inteira! Essas cartas só devem mudar a cada vinte anos, conforme o gênero de ocupação em moda. Elas deviam ser menos descoloridas no tempo do Império. Então, todos esses jovens da alta sociedade haviam visto ou praticado ações que realmente tinham grandeza. O duque de N***, meu tio, esteve em Wagram.

– Que inteligência é preciso ter para dar um golpe de espada? E, quando isso lhes acontece, não falam de outra coisa, disse a srta. de Sainte-Hérédité, a prima de Mathilde.

– Pois bem! Esses relatos me dão prazer. Estar numa verdadeira batalha, uma batalha de Napoleão, na qual dez mil soldados morriam, isso prova coragem. Expor-se ao perigo eleva a alma e salva do tédio onde meus pobres adoradores estão mergulhados; e esse tédio é contagioso. Qual deles tem a ideia de fazer algo de extraordinário? Buscam obter minha mão, belo interesse! Sou rica, e meu pai promoverá o genro. Ah! Se houvesse ao menos um que fosse um pouco divertido!

Como se percebe, a maneira de ver clara, viva, pitoresca de Mathilde prejudicava sua linguagem. Com frequência, uma frase dela destoava na opinião de seus amigos tão polidos. Eles quase teriam admitido, se ela não estivesse tão em moda, que seu falar tinha algo um tanto excessivo para a delicadeza feminina.
Ela, por sua vez, era muito injusta para com os belos cavaleiros que povoam o bosque de Boulogne. Via o futuro não com terror, teria sido um sentimento vivo, mas com um fastio bastante raro em sua idade.
Que podia ela desejar? A fortuna, o alto nascimento, o espírito, a beleza, conforme o que diziam e ela acreditava, tudo fora-lhe dado pelas mãos do acaso.
Tais eram os pensamentos da herdeira mais invejada do bairro Saint-Germain quando ela começou a sentir prazer em passear com Julien. Ficou espantada com o orgulho dele: admirou a habilidade daquele pequeno burguês. Ele saberá fazer-se bispo como o padre Maury, pensou.
Em breve, a resistência sincera com que nosso herói acolhia várias de suas ideias passou a ocupá-la; ela pensava nisso; contava à sua amiga os menores detalhes das conversas, e achava que nunca conseguia dar-lhes toda a sua expressão.
Uma ideia iluminou-a, de repente: Tenho a felicidade de amar, disse a si mesma um dia, com um transporte de alegria inacreditável. Estou amando, amando, não há dúvida! Em minha idade, uma moça bonita, inteligente, onde pode encontrar sensações a não ser no amor? Por mais que eu queira, jamais terei amor por Croisenois, Caylus e tutti quanti. São perfeitos, talvez perfeitos demais; enfim, eles me aborrecem.
Repassou em sua mente todas as descrições de paixão que lera em Manon Lescault, na Nova Heloísa, nas Cartas de uma religiosa portuguesa etc. etc. Tratava-se, evidentemente, da grande paixão; o amor superficial era indigno de uma moça de sua idade e de seu nascimento. Ela dava o nome de amor apenas àquele sentimento heroico que havia na França no tempo de Henrique III e de Bassompierre. Aquele amor não cedia indignamente aos obstáculos; muito pelo contrário, mandava fazer grandes coisas. Que desgraça para mim não haver uma corte verdadeira como a de Catarina de Médicis ou de Luís XIII! Sinto-me à altura do que há de mais ousado e de grande. O que eu não faria com um rei corajoso, como Luís XIII, suspirando a meus pés? Levá-lo-ia à Vendeia, como diz tantas vezes o barão de Tolly, e dali ele reconquistaria seu reino; então, não mais Constituição... e Julien me ajudaria. O que lhe falta? Um nome e fortuna. Ele faria um nome e adquiriria fortuna.
Nada falta a Croisenois, no entanto ele será a vida inteira apenas um duque meio conservador, meio liberal, um ser indeciso sempre afastado dos extremos, e portanto o segundo em toda parte.
Existe grande ação que não seja um extremo no momento em que é empreendida? É quando está realizada que ela parece possível aos homens comuns. Sim, é o amor com todos os seus milgares que irá reinar em meu coração; sinto-o no ardor que me anima. O céu devia-me esse favor. Ele não terá acumulado em vão numa única criatura todas as vantagens. Minha felicidade será digna de mim. Cada um de meus dias não se assemelhará tristemente ao da vés pera. Já existe grandeza e audácia em ousar amar um homem tão distante de mim por sua posição social. Vejamos: continuará ele a merecer-me? À primeira fraqueza que eu observar, abandono-o. Uma moça com minha nobreza e o caráter cavalheiresco que me atribuem (era uma frase de seu pai) não deve comportar-se como uma tola.
Não é isso o que eu seria se amasse o marquês de Croisenois? Teria uma nova versão da felicidade de minhas primas, que desprezo completamente. Sei de antemão tudo o que me diria o pobre marquês, tudo o que eu deveria responder-lhe. O que é um amor que faz bocejar? Melhor ser devota. Eu assinaria um contrato de casamento, como a mais moça de minhas primas, que deixaria os avós enternecidos, se não estivessem irritados por causa de uma última condição na véspera introduzida no contrato pelo notário da outra parte.



continua página 217...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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