sábado, 20 de março de 2021

Machado de Assis - Na Arca: Capítulo A

 Avulsos - ...


Machado de Assis




NA ARCA
 TRÊS CAPÍTULOS INÉDITOS DO GÊNESIS 



CAPÍTULO A



1. — Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: — “Vamos sair da arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A arca tem de parar no cabeço de uma montanha; desceremos a ela.

2. — “Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: “Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua mulher e teus filhos.

3. — “E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.

4. — “Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os homens pereceram, e fecharam-se as cataratas do céu; tornaremos a descer à terra, e a viver no seio da paz e da concórdia.”

5. — Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito se alegraram de ouvir as palavras de seu pai; e Noé os deixou sós, retirando-se a uma das câmaras da arca.

6. — Então Jafé levantou a voz e disse: — “Aprazível vida vai ser a nossa. A figueira nos dará o fruto, a ovelha a lã, a vaca o leite, o sol a claridade e a noite a tenda.

7. — “Porquanto seremos únicos na terra, e toda a terra será nossa, e ninguém perturbará a paz de uma família, poupada do castigo que feriu a todos os homens.

8. — “Para todo o sempre.” Então Sem, ouvindo falar o irmão, disse: — “Tenho uma ideia”. Ao que Jafé e Cam responderam: — “Vejamos a tua ideia, Sem.”

9. — E Sem falou a voz de seu coração, dizendo: — “Meu pai tem a sua família; cada um de nós tem a sua família; a terra é de sobra; podíamos viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o que lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira, ou fiará o linho.”

10. — E respondeu Jafé: — “Acho bem lembrada a ideia de Sem; podemos viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de uma montanha; meu pai e Cam descerão para o lado do nascente; eu e Sem para o lado do poente. Sem ocupará duzentos côvados de terra, eu outros duzentos.”

11. — Mas, dizendo Sem: — “Acho pouco duzentos côvados” —, retorquiu Jafé: “Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha terra e a tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não confundir a propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem direita;

12. — “E a minha terra se chamará terra de Jafé, e a tua se chamará a terra de Sem; e iremos às tendas um do outro, e partiremos o pão da alegria e da concórdia.”

13. — E tendo Sem aprovado a divisão, perguntou a Jafé: “Mas o rio? a quem pertencerá a água do rio, a corrente?

14. — “Porque nós possuímos as margens, e não estatuímos nada a respeito da corrente.” E respondeu Jafé, que podiam pescar de um e outro lado; mas, divergindo o irmão, propôs dividir o rio em duas partes, fincando um pau no meio. Jafé, porém, disse que a corrente levaria o pau.

15. — E tendo Jafé respondido assim, acudiu o irmão: — “Pois que te não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que não haja conflito, podes levantar um muro, dez ou doze côvados, para lá da tua margem antiga.

16. — “E se com isto perdes alguma coisa, nem é grande a diferença, nem deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concórdia entre nós, segundo é a vontade do Senhor.”

17. — Jafé porém replicou: — “Vai bugiar! Com que direito me tiras a margem, que é minha, e me roubas um pedaço de terra? Porventura és melhor do que eu,

18. — “Ou mais belo, ou mais querido de meu pai? Que direito tens de violar assim tão escandalosamente a propriedade alheia?

19. — “Pois agora te digo que o rio ficará do meu lado, com ambas as margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-ei como Caim matou a seu irmão.”

20. — Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito, e começou a aquietar os dois irmãos,

21. — Os quais tinham os olhos do tamanho de figos e cor de brasa, e olhavam-se cheios de cólera e desprezo.

22. — A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.



continua página 46 mais avulsos...

_____________________


Leia também:



Machado de Assis - O alienista: 01 - De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates
Machado de Assis - O alienista: 02 - Torrente De Loucos
Machado de Assis - O alienista: 03 - Deus sabe o que faz
Machado de Assis - O alienista: 04 - Uma Teoria Nova
Machado de Assis - O alienista: 05 - O Terror
Machado de Assis - O alienista: 06 - A Rebelião
Machado de Assis - O alienista: 07 - O Inesperado
Machado de Assis - O alienista: 08 - As Angústias do Boticário
Machado de Assis - O alienista: 09 - Dois Lindos Casos
Machado de Assis - O alienista: 10 - A Restauração
Machado de Assis - O alienista: 11 - O assombro de Itaguaí
Machado de Assis - O alienista: 12 - O Final do § 4º
Machado de Assis - O alienista: 13 - Plus Ultra!
Machado de Assis - Teoria do medalhão
Machado de Assis - A chinela turca
Machado de Assis - Na Arca: Capítulo A
Machado de Assis - Na Arca: Capítulo B

_____________________



ÍNDICE:


ADVERTÊNCIA 
O ALIENISTA 
TEORIA DO MEDALHÃO 
A CHINELA TURCA 
NA ARCA 
D. BENEDITA 
O SEGREDO DO BONZO 
O ANEL DE POLÍCRATES
O EMPRÉSTIMO 
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA 
O ESPELHO 
UMA VISITA DE ALCIBÍADES 
VERBA TESTAMENTÁRIA 
NOTAS DO AUTOR
______________________

Papéis Avulsos

Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.




Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?


Nenhum comentário:

Postar um comentário