sábado, 14 de agosto de 2021

Úrsula - VII Adelaide

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



VII - Adelaide 



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— Agora – prosseguiu o mancebo, após alguns momentos de profundo silêncio – agora se não fôsseis vós, minha Úrsula, que de novo acabais de prender-me à vida, que me restaria sobre a terra?

No exílio, encerrado entre as paredes silenciosas da minha morada, aí eram comigo as saudades dum estremecido amor, e as fagueiras esperanças de um porvir de afetos e ventura. Loucas esperanças eram essas! Não podia imaginar que sob as aparências de um anjo essa pérfida ocultava um coração traidor como o do assassino dos sertões. 

Recebia constantemente cartas de minha mãe, em que me falava de Adelaide, animava-me no meu desterro, e não dirigia queixas contra o seu marido. 

As cartas deste eram sempre breves e frias. 

Adelaide, que com frequência também me escrevia a princípio, entrou a espaçar mais a correspondência, que era o alento da minha vida, era o que me fazia permanecer com alguma alma tão longe de entes caros. 

Por último cessaram! 

E eu chorava no exílio dores, que ela havia esquecido – afetos, que nunca lhe tinham pulsado no coração – esperanças e saudades que eram só minhas!... 

Com que lentidão espreguiçavam-se então os dias!... Contava as horas, longas como séculos, tristes como as agonias do padecente. 

Com o tempo, o espírito cansado de tão apurado sofrimento reagiu sobre o físico, e caí perigosamente doente. 

Prolongou-se a minha enfermidade, apesar dos esforços dos médicos, e eles recearam pela minha vida; porém o amor e a esperança salvaram-me. 

Recobrei finalmente a vida, e quando me achei com forças para empreender viagens, pensei em rever o objeto de minha terna afeição, e não obstante não ter carta de meu pai, que me chamasse a receber a recompensa de meu sacrifício, dispus-me para a partida. 

Mas... Deus eterno! Como são ocultos os teus juízos! Uma ordem muito positiva do governo obrigou-me a renunciar ao meu projeto, e tive de dirigir-me à comarca de ***, onde ia incumbido de uma comissão espinhosa e honrosa. 

Enfraquecido pelos sofrimentos, contrariado, quase que desesperado, empreendi essa viagem, que fiz com tanta rapidez quanta me permitiram minhas forças, e alguns dias depois estava de volta. Levava no coração a imagem desse anjo idolatrado; mas uma mágoa estranha anuviava-me o coração, e eu não podia compreendê-la, e o absoluto e tétrico silêncio desse espaço, que percorria, mais aumentava esse sentir vago de indefinível melancolia. 

E dei de rédeas ao animal com loucura e sem parar, porque sentia a necessidade do movimento; mas depois a aflição sempre crescente trazia-me o abatimento, e eu deixava o cavalo andar como lhe parecia. 

O coração pressagiava males e não tinha energia para desvanecê-los... 

Concluída essa penosa tarefa, ao entrar em minha casa encontrei uma carta, cuja letra era trêmula e mal traçada, cuja data era ainda anterior à minha enfermidade. Oh! Deus meu! Gelou-se-me de dor o sangue – essa carta era de minha mãe! Escrevera-a às portas da Eternidade, e cada uma de suas palavras era um queixume desanimado de dolorosa angústia. Não havia aí uma palavra que acusasse meu pai; mas compreendi logo que ele lhe cavara a sepultura. 

Adelaide! Minha pobre mãe não me falava dela... 

E após essa, li sucessivamente uma carta de meu pai, e outras de alguns amigos – minha desditosa mãe cessara de existir!... 

Ah! Essa dor foi profunda, e tão aguda, que recaí e por muitos dias ignorei o que se passava em derredor de mim. Recuperei a saúde, alentado por meu amor. Adelaide estava no coração, e agora mais do que nunca seus afetos eram necessários a minha alma. 

Ergui-me pois, e de novo pus-me a caminho e quinze dias viajei, já pela ardentia do sol, já pela umidade da noite, sempre depressa, sem nunca descansar, animado pelo desejo de chegar e ver a minha Adelaide, único ente adorado que me restava sobre a terra! No cabo de quinze dias bati, à noite, à porta da casa onde nasci e onde morrera minha infeliz mãe! 

A dor que eu sentira ao receber essas cartas fatais crescia e sufocava-me à proporção que me aproximava dessa casa, onde eu deixara minha desventurada mãe, pálida e desfeita, e onde ia encontrar lutuoso silêncio: e o aspecto lúgubre do escravo, que vigiava à entrada, aumentou mais essa dor profunda. 

Levantou-se apenas viu-me, e falou-me com voz magoada; e depois, cruzando os braços sobre o peito, aguardou mudo por uma interrogação. 

— Meu pai? – perguntei-lhe com voz trêmula e convulsa. 

— Está fora, senhor – tornou-me tristemente. E Adelaide? Onde está ela?
 
— No salão – redarguiu o negro no mesmo tom. 

Entrei. Veloz como um raio, atravessei corredores e salas, e num minuto estava no salão. Úrsula, minha Úrsula, eu a vi. Oh! Antes não a houvera visto, antes tivera descido ao sepulcro, que lá não me seria revelada tão triste e nefanda história! 

No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo, reclinada em primoroso sofá, estava uma mulher de extremada beleza. Figurou-se-me um anjo. A esplendente claridade, que iluminava esse salão dourado, dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e límpida circundava-a de voluptuoso encanto. 

Era Adelaide. 

Adornava-a um rico vestido de seda cor de pérolas, e no seio nu ondeava-lhe um precioso colar de brilhantes e pérolas, e os cabelos estavam enastrados de joias de não menor valor. 

Distraída, no meio de tão opulento esplendor, afagava meigamente as penas de seu leque dourado. 

Alucinado por beleza tão radiante, corri para ela, exclamando: 

— Adelaide! Minha Adelaide! 

E naquele momento, seduzido pelos seus encantos, louco pela ventura de vê-la, esqueci a mágoa, que me doía no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos lábios; e depois curvando-me ante ela, ia tomar-lhe as mãos, e beijá-las com efusão; mas ela então altiva e desdenhosa disse-me com frieza, que me gelou de neve. 

— Tancredo, respeitai a esposa de vosso pai! 

Oh! Não sei como não enlouqueci! Em trevas de desesperação tornou-se-me a luz dos olhos, e todo o salão parecia ondular sob meus pés. A mulher que tinha ante meus olhos era um fantasma terrível, era um demônio de traições, que na mente abrasada de desesperação figurava-se-me sorrindo para mim com insultuoso escárnio. Parecia horrível, desferindo chamas dos olhos, e que me cercava e dava estrepitosas gargalhadas. Erguia-se para mim ameaçadora, e abraçava e beijava outro ente de aspecto também medonho, ambos no meio de orgia infernal cercavam-me e não me deixavam partir. 

Se durou muito este fatal pesadelo, não o posso dizer. Quando acordei debatia-me no tapete aos pés dessa mulher orgulhosa. 

Dissiparam-se-me as trevas, a luz volveu-me e com ela apagaram-se as ondas de fogo, que rodeavam essa pérfida criatura. Encarei-a de face – estava impassível e fria como a estátua do desengano. 

Levantei-me cheio de desesperação e ódio. 

Adelaide permanecia indiferente. 

— Mulher infame! – disse-lhe – perjura... onde estão os teus votos? É assim que retribuíste a estremecida paixão que te rendi? É com um requinte de vil e vergonhosa traição que compensaste o ardente afeto de minha alma? Compreendeste ou sondaste já o profundo abismo de infame execração, e de baixa degradação, em que te despenhaste? 

— Silêncio, senhor – bradou-me com orgulho e desdém – silêncio – estais na presença da mulher de vosso pai, e respeitai-a. 

— Não, não me hei de calar, – redargui furioso – não me pode esmagar o teu desdenhoso acento. Monstro, demônio, mulher fementida, restitui-me minha pobre mãe, essa que também foi tua mãe, que agasalhou no seio a áspide que havia mordê-la! Oh! Dívida é esta que jamais poderás pagar; mas a Deus, ao inferno, a pagarás sem dúvida. Foi essa a gratidão com que lhe compensaste os desvelos de que te cercou na infância, a generosidade com que te amou?!! 

Estava louco de aflição e a voz faltou-me; porque o que eu sentia era demais para as minhas forças. Torcia as mãos de desesperação; porque o acordar de minhas loucas esperanças era amargoso e doloroso.  

E de repente um sorriso, que me pareceu infernal, errou-lhe nos lábios – era seu esposo, que grave e silencioso atravessava o salão, e ela julgava-se isenta de minhas recriminações e sentia-se livre de desagradáveis lembranças. 

Olhei, e vi-o. Velava-lhe o rosto palidez mortal. 

E cambiamos longo, amargo e expressivo olhar: creio que foi um século de torturas para meu pai, por que depois ele cravou os olhos no chão e respirava a custo.
 
— Senhor! – exclamei fora de mim – Restitui-me duas mulheres, que vos recomendei na hora em que me desterrastes. Uma era a mãe querida que eu tanto amava; a outra era minha desposada, era a mulher que me havíeis cedido para a companheira dos meus dias. Onde estão elas? 

Continuou mudo a fitar o tapete de seu vasto salão.
 
— Livrai-me, senhor, da presença deste homem! – exclamou Adelaide agitada e convulsa.
 
— Que fizestes delas, senhor? Compreendo agora, o vosso silêncio assaz mo tem explicado. Sondastes o coração de uma, e sem dificuldade conhecestes que era vil e baixo, que o ouro a deslumbrava, a enlouquecia, a aviltava, e essa, que com tanta felicidade sacrificava ao luxo os afetos de seu coração, ou que com infame procedimento esquecia o amor desinteressado e puro do homem que sabia idolatrá-la, essa, roubando-a ao meu coração, levastes aos altares e fizestes a vossa esposa! Tivestes razão: ela não era digna do meu amor. 

Meu pai fez-se lívido, e de raiva mordeu os beiços. 

A outra – prossegui – a outra atormentastes, torturastes, conduzistes lentamente à sepultura. Seu crime? Oh! Meu pai! Meu pai... minha mãe era uma angélica mulher, e vós, implacável no vosso ódio, envenenastes-lhe a existência, a roubastes ao meu coração... Oh! Suas cinzas, senhor, clamam justiça contra os autores de seus últimos pesares, contra aqueles que riram sobre suas dores. 

— Fazei-o retirar, senhor – de novo bradou a esposa, pálida e abatida. 

— Tendes razão, senhora. – disse-lhe. – Sentis que vos incomodo? Assim deve ser. Eu sou para vós o remorso vivo. Esperai, não será longo o tempo que gastarei aqui; porque também me incomoda a vossa presença; porque nesta casa respira-se um hálito pestilento; porque aqui enfim estais vós. Pouco me demorarei – só quero dizer-vos: 

— Mulher odiosa! Eu vos amaldiçoo. Por cada um dos transportes de ternura, que outrora meu coração vos deu, tende um pungir agudo de profunda dor; e a dor, que me dilacera agora a alma, seja a partilha vossa na hora derradeira. Por cada uma só das lágrimas de minha mãe choreis um pranto amargo; mas árido como um campo pedregoso, doído como a desesperação de um amor traído. E nem uma mão que vos enxugue o pranto, e nem uma voz meiga que vos suavize a dor de todos os momentos. O fel de um profundo, mas irremediável remorso, vos envenene o futuro e o desejado prazer, e no meio da opulência e do luxo, firam-vos sem tréguas os insultos de impiedosa sorte. Arfe o vosso peito, e estale por magoados suspiros, e ninguém os escute; e sobre esse sofrimento terrível cuspam os homens e riam-se de vós. 

A voz de todo se me extinguiu, e eu saí louco de desesperação e de dor da casa de meus pais, da casa onde tão leda se passou a minha primeira idade! 

Após um momento de silêncio, o cavaleiro disse à filha de Luísa B.: — Eis, Úrsula, a fiel narração da minha vida, eis os meus primeiros amores; o resto toca-vos. Fazei-me venturoso. Oh! Em vossas mãos está a minha sorte. 

A donzela, comovida, não pôde falar e estendeu-lhe a mão, que ele beijou com amor e reconhecimento.



continua pág 63...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Úrsula - VII Adelaide


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