Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1
1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
PRIMEIRA PARTE
XXIX – LUÍS DE L’ESTORADE À BARONESA DE MACUMER
Dezembro de 1825
Senhora,
Minha mulher não quis que a senhora viesse a saber, pelo vulgar cartão de participação, do acontecimento que nos enche de alegria. Ela acaba de dar à luz a um rapagão, e adiaremos o batismo até o momento de sua volta à sua propriedade de Chantepleurs. Esperamos, Renata e eu, que a senhora venha até Crampade para ser madrinha do nosso primogênito. Nessa esperança, acabo de mandar inscrevê-lo no registro civil com o nome de Armando Luís de l’Estorade. Nossa querida Renata sofreu muito, com uma paciência angelical. A senhora conhece-a, amparou-a nessa primeira provação do ofício de mãe a certeza da felicidade que a todos nos dava. Sem me entregar aos exageros um pouco ridículos dos que são pais pela primeira vez, posso assegurar-lhe que o pequeno Armando é muito bonito: mas a senhora não duvidará do que afirmo, quando lhe disser que ele tem as feições e os olhos de Renata. Já é isso uma demonstração de espírito. Agora que o médico e o parteiro nos asseguraram que Renata não corre o menor perigo porque ela está amamentando, a criança aceitou bem o seio, o leite é abundante, a natureza dela é tão rica! Podemos, eu e meu pai, entregar-nos à nossa alegria. Senhora, é tão grande essa alegria, tão forte e tão completa, dá tal animação à casa, transforma tão completamente a existência de minha querida mulher que, para a sua felicidade, faço votos para que o mesmo lhe aconteça o mais breve possível. Renata mandou preparar um apartamento que eu desejaria tornar digno de nossos hóspedes, mas onde a senhora e seu esposo serão recebidos, se não com fausto, pelo menos com fraternal cordialidade.
Renata disse-me, senhora, de suas intenções a nosso respeito, e aproveito com tanto maior gosto a ocasião de lhe agradecer, pois nada é mais oportuno. O nascimento de meu filho levou meu pai a fazer sacrifícios a que os velhos raramente se resolvem: ele acaba de adquirir duas propriedades. Crampade é agora uma fazenda que rende trinta mil francos. Meu pai vai solicitar ao rei permissão de constituí-la em morgadio; obtenha para ele o título de que falou em sua última carta e terá assim, desde já, trabalhado por seu afilhado.
Quanto a mim, seguirei seus conselhos, unicamente para que Renata possa estar junto à senhora durante as sessões. Estudo com ardor e procuro tornar-me o que se denomina um especialista.
Nada, entretanto, me dará tanto ânimo como sabê-la protetora de meu pequeno Armando. Prometa-nos, pois, vir desempenhar aqui, a senhora que é tão bela e tão graciosa, tão grande e tão inteligente, o papel de fada para o meu primogênito. Terá por essa forma, senhora, acrescido de uma gratidão eterna os sentimentos de respeitosa afeição com que tenho a honra de ser seu muito humilde e obediente servidor
LUÍS DE L'ESTORADE
XXX – LUÍSA DE MACUMER A RENATA DE L’ESTORADE
Janeiro de 1826
Macumer despertou-me faz pouco, meu anjo, com a carta de teu marido. Começo por dizer sim. Iremos em fins de abril a Chantepleurs. Será para mim prazer e mais prazer viajar, ver-te e ser madrinha do teu primeiro filho; mas quero Macumer como padrinho. Uma aliança católica com outro compadre me seria odiosa. Ah! Se pudesses ver a expressão de seu rosto quando lhe disse isso, ficarias sabendo o quanto esse anjo me ama.
— Desejo tanto mais ir contigo a Crampade, Felipe — disse-lhe eu —, porque talvez lá tenhamos um filho. Também eu quero ser mãe, embora então me veja bem dividida entre ti e um filho. Seja dito de passagem, se eu te visse preferir uma criatura a mim, fosse ela meu filho, não sei o que aconteceria. Medeia,[1] possivelmente, tinha razão: há coisas boas nos antigos!
Ele pôs-se a rir. Assim pois, minha corça, tiveste o fruto sem ter tido as flores, e eu tenho as flores sem o fruto. Continua o contraste de nossas vidas. Somos bastante filósofas para procurar um dia o sentido e a moral disso tudo. Ora! Tenho apenas dez meses de casamento, e temos de convir que ainda não há tempo perdido.
Estamos levando a vida dissipada e, não obstante, cheia das pessoas felizes. Os dias se nos afiguram demasiado curtos. A sociedade, que voltou a ver-me disfarçada de mulher, achou a baronesa de Macumer muito mais bonita do que Luísa de Chaulieu: o amor feliz tem a sua maquiagem. Quando num belo dia de sol e com uma bela geada de janeiro, estando as árvores dos Champs-Élysées florescidas com cachos brancos estrelados, Felipe e eu passamos, no nosso cupê, diante de toda Paris, juntos no mesmo lugar em que no ano passado estávamos separados, vêm-me pensamentos aos milhares, tenho receio de ser um pouco insolente demais, como tu o pressentias na tua última carta.
Se ignoro as alegrias da maternidade, tu mas dirás e por ti serei mãe; mas, a meu ver, nada há comparável às voluptuosidades do amor. Vais achar-me bem estranha, mas já faz umas dez vezes em dez meses que me surpreendo a desejar morrer aos trinta anos, em todo o esplendor da vida, por entre as rosas do amor, no seio das volúpias, de me ir farta, sem decepções, tendo vivido neste sol, em pleno éter, e até mesmo morta um pouco pelo amor, nada tendo perdido da minha coroa, nem sequer uma folha, e conservando todas as minhas ilusões. Pensa um pouco no que é ter um coração moço num corpo velho, achar as fisionomias mudas, frias, onde todos, até os indiferentes, nos sorriam, ser enfim uma mulher respeitável... Isso é um inferno antecipado.
Felipe e eu tivemos a esse respeito a nossa primeira briga. Eu queria que ele tivesse a coragem de me matar aos trinta anos, durante o meu sono, sem que eu o suspeitasse, para me fazer passar de um sonho para outro. O monstro não quis. Ameacei-o de o deixar sozinho na vida, e ele, o pobre, empalideceu! Esse grande ministro, querida, tornou-se um verdadeiro garotinho. É incrível o que ele ocultava de juventude e de simplicidade. Agora que penso com ele em voz alta, como fazia contigo, e que o pus nesse regime de confiança, os dois nos maravilhamos um com outro.
Minha querida, os dois amantes Felipe e Luísa querem mandar uma lembrança à parturiente. Quiséramos mandar fazer alguma coisa que te agradasse. Por isso dize-me francamente o que desejas, pois não cultivamos as surpresas, à moda burguesa. Queremos, portanto, tornar-nos lembrados de ti, a todo momento, por uma lembrança agradável, por qualquer coisa que te sirva todos os dias e que não se destrua pelo uso. Nossa refeição mais alegre, mais íntima e mais animada, porque a fazemos a sós, é o almoço; pensei pois em te mandar um serviço especial, chamado de almoço, cujos ornamentos seriam crianças. Se me aprovas, responde-me prontamente. Para levá-lo é preciso encomendá-lo, e os artistas de Paris são uma espécie de reis preguiçosos.
Será minha oferta a Lucina.[2]
Adeus, querida ama de leite, almejo-te todos os prazeres das mães e aguardo com impaciência a primeira carta, na qual me contarás minuciosamente tudo, sim? Esse parteiro me causa arrepios. Essa palavra da carta de teu marido saltou-me não aos olhos, mas ao coração. Pobre Renata, custa caro um filho, não? Eu lhe direi, ao meu afilhado, quanto ele deverá amar-te. Mil ternuras, meu anjo.
continua pág 311...
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[2] Lucina: na religião romana, deusa que presidia ao parto.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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Leia também:
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1a)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (3)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (4)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (5)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (6)
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Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (8)
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