sábado, 18 de setembro de 2021

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte II(a) - Espinhos e Flores

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





SEGUNDA PARTE


II - Espinhos e Flores
  


Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em matéria de edificação de cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções.

Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiam como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado.

Às vezes se sucedem na mesma direção com uma frequência irritante, outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervalo coeso e fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre outras numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva.

Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o arruamento. Há casas de todos os gostos e construídas de todas as formas.

Vai-se por uma rua a ver um correr de chalets, de porta e janela, parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara uma casa burguesa, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados. Passada essa surpresa, olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau-a-pique, coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e colunas de estilo pouco classificável, que parece vexada a querer ocultar-se, diante daquela onda de edifícios disparatados e novos.

Não há nos nossos subúrbios cousa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades europeias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e desleixados.

Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes, nas ruas, há passeios em certas partes e outras não; algumas vias de comunicação são calçadas e outras da mesma importância estão ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem cuidado sobre um rio seco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma pinguela de trilhos mal juntos.

Há pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empane o brilho do vestido; há operário de tamancos; há peralvilhos à última moda; há mulheres de chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa. Além disto, os subúrbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidêmico e no espiritismo endêmico; as casas de cômodos (quem as suporia lá!) constituem um deles bem inédito. Casas que mal dariam para uma pequena família, são divididas, subdivididas, e os minúsculos aposentos assim obtidos, alugados à população miserável da cidade. Aí, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miséria paira com um rigor londrino.

Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de escritórios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos, mandingueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de profissões miseráveis que as nossas pequena e grande burguesias não podem adivinhar. Às vezes, num cubículo desses se amontoa uma família, e há ocasiões em que os seus chefes vão a pé para a cidade por falta do níquel do trem. Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de cômodos de um dos subúrbios. Não era das sórdidas, mas era uma casa de cômodos dos subúrbios.

Desde anos que ele a habitava e gostava da casa que ficava trepada sobre uma colina, olhando da janela do seu quarto para uma ampla extensão edificada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim do alto, os subúrbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de oca, engastadas nas comas verde-negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção do desenho das ruas põe no programa um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitavam; e o trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando à esquerda, inclinando-se para a direita, muito flexível nas suas grandes vértebras de carros, como uma cobra entre pedrouços.

Era daquela janela que Ricardo espraiava as suas alegrias, as suas satisfações, os seus triunfos e também os seus sofrimentos e mágoas.

Ainda agora estava ele lá, debruçado no peitoril, com a mão em concha no queixo, colhendo com a vista uma grande parte daquela bela, grande e original cidade, capital de um grande país, de que ele a modos que era e se sentia ser, a alma, consubstanciado os seus tênues sonhos e desejos em versos discutíveis, mas que a plangência do violão, se não lhes dava sentido, dava um quê de balbucio, de queixume dorido da pátria criança ainda, ainda na sua formação...

Em que pensava ele? Não pensava só, sofria também. Aquele tal preto continuava na sua mania de querer fazer a modinha dizer alguma cousa, e tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival dele, Ricardo; outros já afirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração dos Outros, e alguns mais - ingratos! - já esqueciam os trabalhos, o tenaz trabalhar de Ricardo Coração dos Outros em prol do levantamento da modinha e do violão, e nem nomeavam o abnegado obreiro.

Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infância, daquela sua aldeia sertaneja, da casinha dos seus pais, com seu curral e o mugido dos vitelos... E o queijo? Aquele queijo tão substancial, tão forte, feio como aquela terra, mas feraz como ela tanto que bastava comer dele uma pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas? Saudades... E o violão, como aprendeu? O seu mestre, o Maneco Borges, não lhe predissera o futuro: “Irás longe, Ricardo. A viola. A viola quer teu coração.”

Por que então aquele encarniçamento, aquele ódio contra ele - ele que trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a substância do país!

E as lágrimas lhe saltaram quentes dos olhos afora. Olhou um pouco as montanhas, farejou o mar lá longe... Era bela a terra, era linda, era majestosa, mas parecia ingrata e áspera no seu granito onipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela verdura das árvores.

E ele estava ali só, só com a sua glória e o seu tormento, sem amor, sem confidente, sem amigo, só como um deus ou como um apóstolo em terra ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.

Sofria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquelas lágrimas que iam cair no solo indiferente. Por aí, lembrou-se dos famosos versos:


Se choro... bebe o pranto a areia ardente...


Com a lembrança, ele baixou um pouco o olhar à terra e viu, que, no tanque da casa, um tanto escondida dele, uma rapariga preta lavava. Ela abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso, ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro à pedra, e recomeçava. Teve pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor. Veio-lhe um afluxo de ternura e, depois, pôs-se a pensar no mundo, nas desgraças, ficando um instante enleado no enigma do nosso miserável destino humano.

A rapariga não o viu, distraída com o trabalho; e se pôs a cantar:


Da doçura dos teus olhos
A brisa inveja já tem



Era dele. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar aquela pobre mulher, abraçá-la...

E como eram as cousas? Ele recebia lenitivo daquela rapariga; era a sua humilde e dorida voz que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe então à memória aqueles versos do padre Caldas, esse seu antecessor feliz que teve um auditório de fidalgas:


Lereno alegrou os outros
E nunca teve alegria...



Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não se pôde conter:

- Vai bem, Dona Alice, vai bem! Se não fosse, por que eu lhe pedia bis?

A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:

- Não sabia que o senhor estava aí, senão não cantava na vista do senhor.

- Qual o quê! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.

- Deus me livre! Para o senhor me “a criticar”...

Embora insistisse muito, a rapariga não quis continuar. As mágoas pareciam ter passado do pensamento de Ricardo. Veio ao interior do quarto e pôs-se à mesa na tenção de escrever.

O seu quarto tinha o mobiliário mais reduzido possível. Havia uma rede com franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ela objetos de escrever; uma cadeira, uma estante com livros, e, pendurado a uma parede, o violão na sua armadura de camurça. Havia também uma máquina para fazer café. Sentou-se e quis começar uma modinha sobre a Glória, essa cousa fugace, que se tem e se pensa que não se tem, alguma cousa impalpável, incolhível como um sopro, que nos alanceia, queima, inquieta e abrasa como o Amor.

Tentou começar, dispôs o papel, mas não pôde. A emoção tinha sido forte, toda a sua natureza tinha sido lavrada, baralhada, com a ideia daquele furto que se queria fazer ao seu mérito. Não conseguiu assentar o pensamento, apanhar as palavras no ar, sentir a música zumbir no ouvido.

A manhã ia alta. As cigarras defronte chilreavam no tamarineiro desfolhado; começava a esquentar e o céu estava de um azul ligeiro”, tênue, fino. Quis sair, procurar um amigo, espairecer com ele, mas quem? Ainda se o Quaresma... Ah! o Quaresma! Esse, sim, trazia-lhe conforto e consolo.

É verdade que ultimamente esse seu amigo se achava pouco interessado pela modinha; mas assim mesmo compreendia o seu propósito, os fins e o alcance da obra a que ele, Ricardo, se propunha. Ainda se o major estivesse perto, mas tão longe! Consultou as algibeiras. Não chegava a dous milreis a sua fortuna. Como ir? Arranjaria um passe e iria. Bateram à porta. Traziam-lhe uma carta. Não reconheceu a letra; rasgou o envelope com emoção. Que seria? Leu:

“Meu caro Ricardo - Saúde - Minha filha Quinota casa-se depois de amanhã, quinta-feira. Ela e o noivo fazem muito gosto que você apareça. Se o amigo não estiver comprometido com alguém, agarre o violão e venha até cá tomar uma chávena de chá conosco - Seu amigo Albernaz.”

O trovador, à proporção que lia, ia mudando de fisionomia. Até então estava carregada e dura; quando acabou de ler o bilhete, um sorriso brincava por toda ela, descia e subia, ia de uma face a outra. O general não o abandonara; para o respeitável militar, Ricardo Coração dos Outros ainda era o rei do violão. Iria e arranjaria passagem com o antigo vizinho de Quaresma. Contemplou um pouco o violão, demoradamente, ternamente, agradecidamente como se fosse um ídolo benfazejo.

Quando Ricardo penetrou em casa do General Albernaz, o último brinde havia sido levantado e todos se dirigiam para a sala de visitas em pequenos grupos. Dona Maricota vestia seda malva e o seu busto curto parecia ainda mais abafado, mais socado, naquele tecido caro que parece requerer corpos elegantes e flexíveis. Quinota estava radiante no vestido de noiva. Ela era alta, de feições mais regulares que a irmã Ismênia, mas menos interessante e mais comum de temperamento e alma, embora faceira. Lalá, a terceira filha do general, que já se ajeitava a moça, tinha muito pó-de-arroz, estava sempre a concertar o penteado e a sorrir para o Tenente Fontes. Um casamento bem cotado e esperado. Genelício dava o braço à noiva, encasacado numa casaca mal talhada, que punha bem à mostra a sua gibosidade, e caminhava todo atrapalhado nos apertados sapatos de verniz.

Ricardo não os viu passar, pois, ao entrar, a fila estava no general, metido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a farda de um guarda nacional endomingado; mas, quem tinha um ar importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o Contra-Almirante Caldas. Fora padrinho e estava irrepreensível na sua casaca do uniforme. As âncoras reluziam como metais de bordo em hora de revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a sua face e pareciam desejar com ardor os grandes ventos do vasto oceano sem fim. Ismênia estava de rosa e andava pelas salas com o seu ar dolente, com o seu vagar, com os seus gestos lentos, dando providências. O Lulu, o único filho do general, impava no seu uniforme do Colégio Militar, cheio de dourados e cabelos, tanto mais que passara de ano, graças aos empenhos do pai.

O general não tardou em vir falar com Ricardo; e os noivos, quando o trovador os cumprimentou, agradeceram-lhe muito, e até Quinota disse um - “sou muito feliz...” - deitando a cabeça de lado e sorrindo para o chão, sorriso que encheu de imenso transporte a cândida alma do menestrel.

Deram começo às danças e o general, o almirante, o Major Inocêncio Bustamante, que também viera de uniforme, com a sua banda roxa de honorário, o Doutor Florêncio, Ricardo e dous convidados outros foram para a sala de jantar palestrar um pouco.

O general estava satisfeito. Sonhava há tantos anos uma cerimônia daquelas em sua casa e enfim pela primeira vez via realizado esse anseio.

A Ismênia foi aquela desgraça... O ingrato!... Mas para que recordar?

Os cumprimentos se repetiram.

- É um rapagão, o seu novo genro, disse um dos convidados novos.

O general tirou o pince-nez que era preso por um trancelim de ouro, e enquanto o limpava, respondeu, olhando com aquele jeito dos míopes:

- Estou muito contente.

Por aí pôs o pince-nez, endireitou o trancelim e continuou:

- Creio que casei bem minha filha: rapaz formado, bem encaminhado e inteligente.

O almirante acudiu:

- E que carreira! Não é por ser meu parente, mas com trinta e dois anos primeiro escriturário do Tesouro, é cousa nunca vista.

- O Genelício não está no Tribunal de Contas, não passou? perguntou Florêncio.

- Passou, mas é a mesma cousa, replicou o outro convidado novo, que era da amizade do recém-casado.




continua na página 44...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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