sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


4..


continuando...


Quando, em outubro de 1862, um mês após a batalha de Antietam, as fotos tiradas por Gardner e O’Sullivan foram expostas na galeria de Brady em Manhattan, The New York Times comentou:
Os vivos que se aglomeram na Broadway talvez pouco se importem com os mortos em Antietam, mas podemos imaginar que se empurrariam com menos descaso em sua marcha pela grande avenida, e que passeariam menos sossegados, se alguns corpos gotejantes, recém-caídos no campo de batalha, estivessem estirados pela calçada. Haveria um repuxar afobado de barras de saia e uma cuidadosa escolha do local onde pisar...


Estar de acordo com a eterna acusação de que as pessoas poupadas pela guerra se mostram insensivelmente alheias aos sofrimentos padecidos fora do seu raio de visão não tornou o repórter menos ambivalente no tocante à proximidade da foto.


Os mortos do campo de batalha muito raramente chegam a nós, mesmo em sonhos. Vemos a lista no jornal da manhã, durante o desjejum, mas nos livramos de sua recordação após o café. Contudo, o sr. Brady fez algo para trazer para perto de nós a terrível realidade e gravidade da guerra. Se ele não trouxe cadáveres e os espalhou no nosso jardim e pelas ruas, fez algo muito parecido [...]. Essas fotos têm uma nitidez terrível. Com a ajuda de lentes de aumento, podem-se distinguir até as feições do homem chacinado. Gostaríamos de estar longe da galeria, quando uma das mulheres que se debruçarem sobre as fotos reconhecer um marido, um filho ou um irmão nas linhas imóveis e sem vida dos cadáveres, que jazem prontos para as covas escancaradas.


A admiração pelas fotos se mistura com a sua desaprovação em virtude da dor que podem provocar em mulheres da família dos mortos. A câmera traz o espectador para perto, para demasiado perto; com o auxílio de uma lente de aumento — pois neste caso as lentes são duas —, a “nitidez terrível” das imagens fornece informação desnecessária e indecente. Todavia, o repórter do Times não consegue resistir ao melodrama que meras palavras propiciam (os “corpos gotejantes” prontos para “as covas escancaradas”), ao mesmo tempo que censura o realismo intolerável da imagem.

Na era das câmeras, fazem-se exigências novas à realidade. A coisa autêntica pode não ser assustadora o bastante e, portanto, carece de uma intensificação, ou de uma reencenação mais convincente. Assim, o primeiro filme jornalístico de uma batalha — um incidente muito difundido, ocorrido em Cuba durante a guerra hispano-americana de 1898, chamado Batalha do Monte San Juan — mostra, na verdade, um ataque encenado pouco depois pelo coronel Theodore Roosevelt e a sua unidade de voluntários de cavalaria, os Cavaleiros Valentes, para os câmeras da empresa Vitagraph, pois o verdadeiro ataque encosta acima, depois de ser filmado, foi considerado insuficientemente dramático. Ou então as imagens podem ser terríveis demais e precisam ser suprimidas em nome da decência e do patriotismo — a exemplo das imagens que mostram, sem o devido ocultamento parcial, os nossos mortos. Afinal, exibir os mortos é o que fazem os inimigos. Na Guerra dos Bôeres (1899- 1902), após sua vitória em Spion Kop, em janeiro de 1900, os bôeres julgaram que seria edificante para suas próprias tropas pôr em circulação uma foto horripilante de soldados britânicos mortos. Tirada por um fotógrafo bôer desconhecido dez dias após a derrota britânica, que custou a vida de 1300 soldados, a foto oferece uma visão indiscreta de uma longa e rasa trincheira atulhada por cadáveres insepultos. O que há de especialmente agressivo na foto é a ausência de paisagem. A mixórdia de cadáveres que se estende ao longo da trincheira preenche todo o espaço da foto. A indignação britânica ante essa derradeira ofensa dos bôeres foi expressada de forma contundente, ainda que fria: tornar públicas fotos como essa, declarou o periódico Amateur Photographer, “não serve a nenhum propósito útil e somente apela para o lado mórbido da natureza humana”.



continua pág 173...


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Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (3)

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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


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