segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (05)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (05)



continuando...



A fotografia entrou em cena como uma atividade arrogante, que parecia ultrapassar e rebaixar uma arte estabelecida: a pintura. Para Baudelaire, a fotografia era “inimiga mortal” da pintura; mas, no fim, elaborou-se uma trégua, segundo a qual a fotografia era tida como libertadora da pintura. Weston empregou a fórmula mais comum que existe para atenuar o ânimo defensivo dos pintores quando, em 1930, escreveu: “A fotografia negou, ou virá a negar, mais cedo ou mais tarde, boa parte da pintura — pelo que os pintores deveriam ser muito gratos”. Libertada, pela fotografia, da cansativa faina da representação fiel, a pintura pôde partir no encalço de uma tarefa mais elevada: a abstração.[1] De fato, a ideia mais persistente nas histórias da fotografia e na crítica fotográfica é o pacto mítico selado entre pintura e fotografia, que autorizou ambas a perseguir tarefas distintas mas igualmente válidas, ao mesmo tempo que influenciavam criativamente uma à outra. Na verdade, a lenda falsifica boa parte da história da pintura e da fotografia. O modo como a câmera fixava a aparência do mundo exterior sugeriu novos padrões de composição pictórica e novos temas para os pintores: criar uma preferência pelo fragmento, realçar o interesse por lampejos da vida humilde e por estudos de movimentos fugazes e dos efeitos da luz. A pintura, mais do que se voltar para a abstração, adotou o olho da câmera, tornando-se (para empregar as palavras de Mario Praz) telescópica, microscópica e fotoscópica em sua estrutura. Mas os pintores jamais pararam de tentar imitar os efeitos realistas da fotografia. E, longe de restringir-se a representações realistas e deixar a abstração ao encargo dos pintores, a fotografia manteve-se em dia com todas as conquistas antinaturalistas da pintura e as absorveu.
 
[1] Valéry afirmou que a fotografia prestou o mesmo serviço à escrita, ao pôr a nu a pretensão “ilusória” da língua de “comunicar a ideia de um objeto visual com algum grau de precisão”. Mas os escritores não deviam temer que a fotografia “pudesse, em última instância, restringir a importância da arte da escrita e agir como seu substituto”, diz Valéry, em “O centenário da fotografia” (1929). Se a fotografia “nos desestimula a descrever”, argumenta ele, somos assim lembrados dos limites da língua e advertidos, como escritores, a dar a nossos instrumentos um uso mais adequado à sua verdadeira natureza. Uma literatura se purificaria caso deixasse a outras modalidades de expressão e de produção as tarefas que elas podem executar de modo muito mais eficaz, e se dedicasse a fins que só ela pode levar a bom termo [...] um dos quais [é] o aprimoramento da linguagem que constrói ou expõe o pensamento abstrato, e outro, a exploração de toda a diversidade de padrões e de ressonâncias poéticas.

Em termos mais gerais, essa lenda não leva em conta a voracidade da atividade fotográfica. Nas negociações entre fotografia e pintura, a fotografia sempre levou vantagem. Nada há de surpreendente no fato de os pintores, de Delacroix e Turner a Picasso e Bacon, terem usado fotos como subsídios visuais, mas ninguém espera que os fotógrafos recebam auxílio da pintura. As fotos podem ser incorporadas ou transcritas numa pintura (ou numa colagem, ou numa combinação de ambas), mas a fotografia enclausura a própria arte. A experiência de ver pinturas pode ajudar-nos a ver melhor as fotos. Mas a fotografia enfraqueceu nossa experiência da pintura. (Em mais de um sentido, Baudelaire tinha razão.) Ninguém jamais encontrou uma litografia ou uma gravura — métodos populares mais antigos de reprodução mecânica — de uma pintura que fosse mais satisfatória ou mais estimulante do que a própria pintura. Mas fotos, que transformam detalhes interessantes em composições autônomas, que transformam cores naturais em cores fulgurantes, proporcionam satisfações novas e irresistíveis. O destino da fotografia levou-a muito além do papel ao qual se supôs, de início, que ela estivesse restrita: fornecer informações mais acuradas sobre a realidade (inclusive sobre obras de arte). A fotografia é a realidade; o objeto real é, não raro, experimentado como uma decepção. As fotos tornam normativa uma experiência de arte que é mediada, de segunda mão, intensa de um modo diferente. (Lamentar que, para muitas pessoas, fotos de pinturas tenham se tornado substitutos de pinturas não significa apoiar nenhuma mística do “original” que se apresenta ao espectador sem mediação. Ver é um ato complexo e nenhuma grande pintura comunica seu valor e sua excelência sem alguma forma de preparação e instrução. Além disso, as pessoas que ficam desapontadas diante do original de uma obra de arte depois de vê-la em uma cópia fotográfica são, em geral, pessoas que teriam visto muito pouco no original.)

Uma vez que muitas obras de arte (incluindo as fotos) são, hoje, conhecidas por meio de cópias fotográficas, a fotografia — e as atividades de arte derivadas do modelo da fotografia, e o estilo de gosto derivado do gosto fotográfico — transformou de modo decisivo as belasartes tradicionais e as normas de gosto tradicionais, inclusive a própria ideia de obra de arte. A obra de arte depende cada vez menos de ser um objeto único, um original feito por um artista individual. Grande parte da pintura hoje em dia aspira aos predicados dos objetos reproduzíveis. Por fim, as fotos tornaram-se a tal ponto a experiência visual predominante que agora temos obras de arte produzidas a fim de ser fotografadas. Em boa parte da arte conceitual, no empacotamento das paisagens por Christo, nos aterros de Walter De Maria e Robert Smithson, a obra do artista é conhecida sobretudo pela reportagem fotográfica exposta em galerias e museus; por vezes, o tamanho é tal que ela só pode ser conhecida mediante uma foto (ou vista de um avião). A foto não se destina, e isso de modo ostensivo, a levar-nos de volta a uma experiência original.

Com base nessa suposta trégua entre a fotografia e a pintura, a fotografia foi — primeiro, de má vontade, depois, com entusiasmo — reconhecida como uma bela-arte. Mas a própria questão de ser ou não a fotografia uma arte é essencialmente enganosa. Embora gere obras que podem ser chamadas de arte — requerem subjetividade, podem mentir, proporcionam prazer estético —, a fotografia não é, antes de tudo, uma forma de arte. Como a língua, é um meio em que as obras de arte (entre outras coisas) são feitas. Com a língua, podem-se fazer discursos científicos, memorandos burocráticos, cartas de amor, listas de compras no mercado e a Paris de Balzac. Com a fotografia, podem-se fazer fotos de passaporte, fotos meteorológicas, fotos pornográficas, raios X, fotos de casamento e a Paris de Atget. A fotografia não é uma arte como, digamos, a pintura e a poesia. Embora as atividades de certos fotógrafos se adaptem à ideia tradicional de bela-arte, a atividade de indivíduos excepcionalmente talentosos que produzem objetos específicos dotados de um valor próprio, a fotografia desde o início também se prestou a essa ideia de arte que afirma que a arte está obsoleta. O poder da fotografia — e seu papel central nas preocupações estéticas atuais — reside em que ela confirma ambas as ideias de arte. Mas o modo como a fotografia torna a arte obsoleta é, a longo prazo, mais forte.

A pintura e a fotografia não são dois sistemas potencialmente competitivos para produzir e reproduzir imagens, circunstância em que bastaria chegar a uma adequada divisão de territórios para conciliá-las. A fotografia é uma atividade de outra ordem. A fotografia, conquanto não seja uma forma de arte em si mesma, tem a faculdade peculiar de transformar todos os seus temas em obras de arte. Mais importante do que a questão de ser ou a não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte. É o protótipo da direção característica assumida em nosso tempo pela alta arte modernista e também pela arte comercial: a transformação da arte em meta-arte ou mídia. (Invenções como o cinema, a televisão, o vídeo, a música de Cage, Stockhausen e Steve Reich executada em fita gravada são extensões lógicas do modelo estabelecido pela fotografia.) As belas-artes tradicionais são elitistas: sua forma característica é uma obra singular, produzida por um indivíduo; implicam uma hierarquia de temas em que alguns deles são tidos como importantes, profundos, nobres, e outros, como irrelevantes, triviais, rasteiros. As mídias são democráticas: enfraquecem o papel do produtor especializado ou auteur (por usar processos que têm por base o acaso, ou técnicas mecânicas que qualquer pessoa pode aprender; e por constituírem esforços em conjunto ou em associação); encaram o mundo todo como sua matéria. As belas-artes tradicionais apoiam-se na distinção entre autêntico e falso, entre original e cópia, entre bom gosto e mau gosto; as mídias turvam, quando não abolem de todo, tais distinções. As belas-artes supõem que determinadas experiências ou temas têm um significado. As mídias são essencialmente sem conteúdo (esta é a verdade por trás da célebre afirmação de Marshall McLuhan de que a mensagem é o próprio meio); seu tom característico é irônico, ou indiferente, ou parodístico. É inevitável que a arte esteja, cada vez mais, destinada a terminar como fotos. Um modernista teria de reescrever a máxima de Pater de que toda arte aspira à condição da música. Hoje, toda arte aspira à condição da fotografia.

A argumentação de Valéry não é convincente. Embora se possa dizer que uma foto registra ou mostra o presente, ela nem sempre “descreve”, propriamente falando; só a língua descreve, pois é um evento no tempo. Valéry sugere, como “prova” da sua tese, abrir um passaporte: “a descrição aí anotada não resiste a uma comparação com a foto grampeada a seu lado”. Mas isso é usar a descrição em seu sentido mais degradado, empobrecido; há trechos em Dickens e Nabokov que descrevem um rosto ou uma parte do corpo melhor do que qualquer foto. A tese do poder descritivo inferior da literatura não se demonstra tampouco ao se dizer, como faz Valéry, que “o escritor que retrata uma paisagem ou um rosto, por mais hábil que seja em seu ofício, sugerirá tantas visões diferentes quantos forem seus leitores”. O mesmo vale para uma foto.

Assim como se considera que a foto libertou os escritores da obrigação de descrever, muitas vezes se considera que o cinema usurpou do romancista a tarefa de narrar ou de contar uma história — e assim, preconizam alguns, libertou o romance para outras tarefas, menos realistas. Essa versão da tese é mais plausível porque o cinema é uma arte temporal. Mas não faz justiça à relação existente entre os romances e os filmes.




continua página 85...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
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