O triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
continuando...
De fato, Genelício tinha arranjado a transferência e não fora só isso que o decidira a casar-se.
Tendo escrito uma - Síntese de Contabilidade Pública Científica - viu-se, sem saber como, cumulado de elogios pela “imprensa desta capital”. O ministro, atendendo ao mérito excepcional da obra, mandou-lhe dar dous contos de prêmio, tendo sido a edição feita à custa do Estado, na Imprensa Nacional. Era um grosso volume de quatrocentas páginas, tipo doze, escrito em estilo de ofício com uma vasta documentação de decretos e portarias, ocupando dous terços do livro.
A primeira frase da primeira parte, o quinhão do livro verdadeiramente sintético e científico, fora até muito notada e gabada pelos críticos, não só pela novidade da ideia, como também pela beleza da expressão.
Dizia assim: “A Contabilidade Pública é a arte ou ciência de escriturar convenientemente a despesa e receita do Estado.”
Além do prêmio e da transferência, ele já tinha promessa de ser subdiretor na primeira vaga.
Ouvindo tudo isso que tinham dito o almirante, o general e os convidados novos, o major não pôde deixar de observar:
- Depois da militar, a melhor carreira é a da Fazenda, não acham?
- Sim... Bem entendido, fez o Doutor Florêncio.
- Eu não quero falar dos formados, apressou-se o major. Esses...
Ricardo sentia-se na obrigação de dizer qualquer cousa e foi soltando a primeira frase que lhe veio aos lábios:
- Quando se prospera, todas as profissões são boas.
- Não é assim tanto, obtemperou o almirante, alisando um dos favoritos. Não é para desfazer das outras, mas a nossa, hein, Albernaz? hein, Inocêncio?
Albernaz levantou a cabeça como se quisesse apanhar no ar uma lembrança e depois replicou:
- É, mas tem os seus percalços. Quando se está numa trapalhada, fogo daqui, tiro dali, morre um, grita outro como em Curupaiti, então...
- O senhor esteve lá, general? perguntou o convidado amigo de Genelício.
- Não estive. Adoeci e vim para o Brasil. Mas o Camisão... Não imaginam o que foi - você sabe, não é, Inocêncio?
- Se estive lá...
- Polidoro tinha ordem de atacar Sauce, Flores à esquerda e “nós” caímos sobre os paraguaios. Mas os malandros estavam bem entrincheirados, tinham aproveitado o tempo...
- Foi “seu” Mitre, disse Inocêncio.
- Foi. Atacamos com fúria. Era ribombar de canhões que metia medo, bala por todo o canto, os homens morriam como moscas... Um inferno!
- Quem venceu? perguntou um dos convidados novos.
Todos se entreolharam admirados, exceto o general que julgava a sabedoria do Paraguai excepcional.
- Foram os paraguaios, isto é, repeliram o nosso ataque. É por isso que eu digo que a nossa profissão é bela, mas tem as suas “cousas”...
- Isso não quer dizer nada. Também na passagem de Humaitá... ia dizendo o almirante.
- O senhor estava a bordo?
- Não, eu fui mais tarde. Perseguições fizeram com que eu não fosse designado, porque o embarque equivalia a uma promoção... Mas, na passagem de Humaitá...
Na sala de visitas as danças continuavam com animação. Era raro que alguém viesse de dentro até onde eles estavam. Os risos, a música, e o mais que se adivinhava não distraíam aqueles homens das suas preocupações belicosas.
O general, o almirante e o major enchiam de pasmo aqueles burgueses pacíficos, contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas que não pelejaram.
Não há como um cidadão pacato, bem comido, tendo tomado alguns vinhos generosos, para apreciar as narrações de guerra. Ele só vê a parte pitoresca, a parte por assim dizer espiritual das batalhas, dos encontros; os tiros são os de salva e se matam é cousa de somenos. A Morte mesmo, nas narrações feitas assim, perde a sua importância trágica: três mil mortos, só!!!
De resto, contadas pelo General Albernaz, que nunca tinha visto a guerra, a cousa ficava edulcorada, uma guerra bibliothèque rose, guerra de estampa popular, em que não aparecem a carniçaria, a brutalidade e a ferocidade normais.
Estavam Ricardo, o Doutor Florêncio, o exato empregado como engenheiro das Águas, aqueles dous recentes conhecimentos de Albernaz, embevecidos, boquiabertos e invejosos diante das proezas imaginárias daqueles três militares, um honorário, talvez o menos pacífico dos três, o único que tivesse mesmo tomado parte em alguma cousa guerreira - quando Dona Maricota chegou sempre diligente, ativa, dando movimento e vida à festa. Era mais moça que o marido, tinha ainda inteiramente pretos os cabelos na sua cabeça pequena, que contrastava tanto com o seu corpo enorme. Ela vinha ofegante e dirigiu-se ao marido:
- Então, Chico, que é isso? Ficou aí e eu que faça sala, que anime as moças... Pra sala todos!
- Já vamos, Dona Maricota, disse alguém.
- Não, fez com rapidez a dona da casa, é já. Vamos, “seu” Caldas, “seu” Ricardo, os senhores!
E foi empurrando um a um pelo ombro.
- Depressa, depressa, que a filha do Lemos vai cantar; e depois é o senhor... Está ouvindo, “seu” Ricardo!
- Pois não, minha senhora. É uma ordem...
E foram. No caminho o general parou um pouco, chegou-se a Coração dos Outros e perguntou:
- Diga-me uma cousa: como vai o nosso amigo Quaresma?
- Vai bem.
- Tem-lhe escrito?
- Às vezes. Eu queria, general...
O general suspendeu a cabeça, levantou um pouco o pince-nez que começava a cair, e perguntou:
- O quê?
Ricardo ficou intimidado com o ar marcial com que Albernaz lhe fez a pergunta. Depois de uma ligeira hesitação, respondeu de um jacto, com medo de perder as palavras:
- Eu queria que o senhor me arranjasse uma passagem, um passe, para ir vê-lo.
O general esteve uns instantes de cabeça baixa, coçou o cabelo e disse:
- Isso é difícil, mas você apareça lá, na repartição, amanhã.
E continuaram a andar. Ainda andando, Coração dos Outros acrescentou:
- Estou com saudades dele, depois tenho certos desgostos... O senhor sabe: um homem que tem nome...
- Vá lá amanhã.
Dona Maricota apareceu na frente e falou agastada:
- Vocês não vêm!
- Já vamos, fez o general.
E depois, dirigindo-se a Ricardo, ajuntou:
- Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...
Chegaram à sala. Era vasta. Tinha dous grandes retratos em pesadas molduras douradas, furiosos retratos a óleo de Albernaz e da mulher; um espelho oval e alguns quadrinhos, e a decoração estava completa. Da mobília não se podia julgar, tinha sido retirada, para dar mais espaço aos dançantes. A noiva e o noivo estavam no sofá sentados a presidir a festa. Havia um ou outro decote, poucas casacas, algumas sobrecasacas e muitos fraques. Por entre as cortinas de uma janela, Ricardo pôde ver a rua. A calçada defronte estava cheia. A casa era alta e tinha jardim; só de lá os curiosos, os “serenos”, podiam ver alguma cousa da festa. Lalá, no vão de uma sacada, conversava com o Tenente Fontes. O general contemplou-os e abençoou-os com um olhar aprovador...
A moça, a famosa filha do Lemos, dispôs-se a cantar. Foi ao piano, colocou a partitura e começou. Era uma romanza italiana que ela cantou com a perfeição e o mau gosto de uma moça bem-educada. Acabou. Palmas gerais, mas frias, soaram.
O Doutor Florêncio que ficara atrás do general, comentou:
- Tem uma bela voz esta moça. Quem é?
- É a filha do Lemos, o Doutor Lemos da Higiene, respondeu o general.
- Canta muito bem.
- Está no último ano do Conservatório, observou ainda Albernaz.
Chegou a vez de Ricardo. Ele ocupou um canto da sala, agarrou o vilão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar trágico de quem vai representar o Édipo-Rei e falou com voz grossa:
“Senhoritas, senhores e senhoras.” Parou. Concertou a voz e continuou: “Vou cantar ‘Os teus braços’. Modinha de minha composição, música e versos. É uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada.” Seus olhos, por aí, quase saíam das órbitas. Emendou: “Espero que nenhum ruído se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o violão instrumento muito... mui... to ‘dê-licá- do’. Bem.”
A atenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebundo, macio e longo, como soluço de onda; depois, houve uma parte rápida, saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e outro, a modinha acabou.
Aquilo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças e aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O general abraçou-o, Genelício levantou-se e deu-lhe a mão. Quinota, no seu imaculado vestido de noiva, também.
Para fugir aos cumprimentos, Ricardo correu à sala de jantar. No corredor chamavam-no: “Senhor Ricardo, Senhor Ricardo!” Voltou-se. “Que ordena minha senhora?” Era uma moça que lhe pedia uma cópia da modinha.
- Não se esqueça, dizia ela com meiguice, não se esqueça. Gosto tanto das suas modinhas... São tão ternas, tão delicadas... Olhe: dê aqui a Ismênia para me entregar.
A noiva de Cavalcanti aproximava-se e, ouvindo falar em seu nome perguntou:
- Que é Dulce?
A outra explicou-se. Ela aceitou a incumbência e, por sua vez, perguntou a Ricardo com a sua voz dolente:
- “Seu” Ricardo, quando é que o senhor pretende estar com Dona Adelaide?
- Depois de amanhã, espero eu.
- Vai lá?
- Vou.
- Pois então diga-lhe que me escreva. Eu queria tanto receber uma carta...
E limpou os olhos furtivamente, com o seu pequenino lenço rendado.
continua na página 47...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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