sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — V

Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



V — Vários clarões no horizonte


A pouco e pouco e com o andar do tempo, tinham caído todas as oposições. Houvera a princípio quem tentasse denegrir com calúnias o carácter do senhor Madelaine, lei a que estão sujeitos todos os que se elevam; depois foram apenas insinuações malévolas, não passando em seguida de ditos malignos, e afinal tudo isso se desvaneceu completamente O respeito tornou-se completo, unânime, cordial, e uma ocasião chegou, em 1821, em que esta só frase, senhor maire, foi pronunciada em Montreuil-surnmer quase no mesmo tom em que na cidade de Digne, em 1815, se dizia o senhor bispo.

Vinha gente de dez léguas em redor consultar o senhor Madelaine. Era ele quem reconciliava os desavindos, impedia as demandas e reconciliava os inimigos. Todos o tomavam por juiz do seu bom direito. Parecia que tinha por alma o livro da lei natural. Foi um como contágio de veneração, que em seis ou sete anos atacou toda a gente daquela terra e seus arredores.

Um único homem, somente, em toda a cidade e arredores, se esquivou de todo a este contágio e permaneceu rebelde, apesar de tudo o que fez o senhor Madelaine, como se uma espécie de instinto, incorruptível e imperturbável, o despertasse e afligisse. Parece, com efeito, que existe em certos homens um verdadeiro instinto bestial, puro e íntegro como todo o instinto, que cria as simpatias e as antipatias, que separa fatalmente uma de outra natureza, que não hesita, nem vacila, que nunca se cala, nem desmente, claro na sua obscuridade, infalível, imperioso, refratário a todos os conselhos da inteligência e a todos os dissolventes da razão, e que, quaisquer que sejam as formas do destino reservado a cada um, secretamente adverte o homem-cão da presença do homem-gato, e o homem-raposa da presença do homem-leão.

Acontecia frequentes vezes, quando Madelaine passava por uma rua, sereno, afetuoso, coberto das gerais bênçãos, um homem de estatura elevada, com um casacão pardo, chapéu de copa baixa na cabeça, e grossa bengala na mão, voltar-se subitamente para trás e segui-lo com a vista até ele desaparecer, cruzando os braços, abanando a cabeça com lentidão e levantando o lábio superior junto com o inferior até ao nariz; trejeito significativo que poderia traduzir-se por estas palavras: «Mas quem é este homem? Tenho a certeza de que já o vi algures. Em todo o caso não é a mim que ele engana».

Este personagem, de uma gravidade quase ameaçadora, era daqueles que, mesmo vistos de passagem, preocupam o observador.

Chamava-se Javert e era funcionário da polícia, exercendo então em Montreuil-surmer as penosas, mas úteis funções de inspetor. Não assistira aos primeiros passos que Madelaine dera no caminho da fortuna, porque Javert devia o lugar que ocupava à proteção do senhor Ghabouillet, secretário do ministro conde Angles, então prefeito da polícia em Paris. Quando Javert chegara a Montreuil-sur-mer, já a fortuna do grande industrial estava formada e o senhor Madelaine se tinha tornado senhor Madelaine.

Certos agentes da polícia têm uma fisionomia característica, que é uma mistura de baixeza e ar de autoridade. Javert tinha essa fisionomia, menos a baixeza.

É nossa convicção que, se as almas fossem visíveis aos olhos, ver-se-ia distintamente uma coisa extraordinária, e vem a ser, que cada um dos indivíduos da espécie humana corresponde a alguma das espécies da criação animal; e poder-se-ia reconhecer facilmente a verdade, entrevista apenas pelo filósofo, de que desde a ostra até à águia, desde o porco ao tigre, todos os animais estão no homem e cada um num homem só, se é que às vezes não se dá o caso de estarem uns poucos.

Os animais não são senão as figuras das nossas virtudes e vícios, divagando diante dos nossos olhos, como fantasmas visíveis das nossas almas, que Deus nos mostra para nos fazer refletir e pensar. Somente, como os animais são simples sombras, não os fez Deus educáveis em toda a extensão da palavra. com que fim? Pelo contrário, sendo as nossas almas realidades e tendo um fim que lhes é próprio, deu-lhes Deus a inteligência, isto é, a educação possível. A educação social bem dirigida pode extrair de uma alma, qualquer que ela seja, toda a utilidade que em si contiver.

Dizemos isto, bem entendido, restringindo-nos ao ponto de vista circunscrito da vida terrestre aparente e sem prejudicar a profunda questão da personalidade anterior ou ulterior dos seres que não são o homem. O eu visível de nenhum modo autoriza o pensador a negar o eu latente. Feito este reparo, prossigamos.

Agora, se por um momento admitem conosco, que em todo o homem há uma das espécies animais da criação, ser-nos-á fácil dizer o que era o polícia Javert.

Há entre os aldeões asturianos a convicção de que de cada ninhada que uma loba dá à luz, sai um cão, a quem a mãe mata, porque, se o deixasse, lhe devoraria os outros filhos.

Dai uma face humana a esse cão, filho de uma loba, e tereis Javert.

Javert nascera numa prisão, de uma mulher que deitava cartas e cujo marido estava nas galés. Depois de homem, lembrou-se que estava fora da sociedade e perdeu para sempre a esperança de tornar a entrar nela Reparou que a sociedade mantinha irremissivelmente fora de si duas classes de homens: os que a atacam e os que a guardam; não podia escolher senão entre estas duas classes, ao mesmo tempo que sentia em si um fundo de rigidez, de regularidade e de probidade, de envolta com inexplicável ódio à raça de boémios a que pertencia. Entrou na polícia e foi afortunado, porque aos quarenta anos era inspetor, tendo na sua mocidade sido vigia dos forçados de Toulon.

Antes de nos adiantarmos mais, entendamo-nos sobre as palavras face humana, que há pouco aplicámos a Javert.

A face humana de Javert consistia num nariz chato, de ventas largas, para as quais subiam, dos dois lados do rosto, enormes suíças. Aquelas duas florestas de cabelos e as duas cavernas, causavam certa sensação de terror, vistas pela primeira vez. Quando Javert ria, o que era raro e terrível, descerravam-se-lhe os lábios delgados, deixando ver não só os dentes, mas as gengivas, e formando-se-lhe em roda do nariz uma ruga deprimida e selvática, como as que se veem no focinho dos animais ferozes Javert sério, era um cão de fila; quando ria, era um tigre. Quanto ao mais, crânio pequeno, mandíbulas grandes, os cabelos caídos para diante dos olhos e entre estes uma ruga central permanente, como um indício de cólera; olhar sombrio, boca encrespada e temível com ar feroz.

Este homem era composto de dois sentimentos muito simples e muito bons relativamente, mas que ele tornava quase maus à força de os exagerar; o respeito à autoridade e o ódio à rebelião. A seus olhos, o roubo, o assassínio, todos os crimes, enfim, não eram senão outras tantas expressões de rebelião; deste modo, envolvia numa espécie de fé cega e profunda, tudo o que no Estado estava investido de certas atribuições, desde o primeiro ministro até ao zelador municipal, cobrindo de desprezo, de aversão e de ódio tudo o que uma vez ultrapassasse as raias legais da justiça. Era absoluto e não admitia exceções. Por um lado dizia: «O funcionário não pode enganar-se, nem o magistrado de ter razão». Pelo outro pensava: «Esses estão irremediavelmente perdidos. Não pode sair deles coisa boa». Abraçava plenamente a opinião desses espíritos extremos, que atribuem à lei humana não sei que poder de fazer ou, se assim o preferem, provar que há demónios e que colocam uma Stige no fundo da sociedade. Era um homem estoico, sério e austero; atreito a cogitações melancólicas, humilde e altivo, como o são os fanáticos. O seu olhar era uma verruma, frio e perfurante. Toda a sua vida se encerrava em duas palavras: velar e vigiar.

Introduzira a linha reta no que de mais tortuoso havia no mundo, tendo a consciência da sua utilidade, a religião das funções que desempenhava, e sendo espião como outro qualquer seria sacerdote. Desgraçado do que lhe caísse nas mãos. Era homem capaz de prender o pai, se o encontrasse evadido das galés, de denunciar a mãe, fugida do degredo, e tê-lo-ia feito com essa espécie de satisfação interior que dá a virtude a quem a pratica. Ajuntai a isto uma vida de privações, o isolamento, a abnegação, a castidade, e nem uma só distração. Era o dever implacável, a polícia compreendida como os espartanos compreendiam Esparta, uma atalaia impiedosa, uma honradez feroz, um espião de mármore, Bruto incarnado em Vidocq.

Toda a pessoa de Javert exprimia o homem que espia e que se esconde. A escola mística de José de Maistre, que naquela época dava um sabor de alta cosmogonia ao que chamavam jornais-ultras, tê-lo-ia infalivelmente denominado um símbolo. Não se lhe descobria a cabeça, oculta pelo chapéu; não se lhe viam os olhos, perdidos no emaranhado das sobrancelhas; não se lhe divisava a barba, enterrada na amplidão da gravata; não se lhe enxergavam as mãos, de contínuo metidas nas mangas; não se lhe descortinava a bengala, que trazia debaixo do casacão. Mas, chegada a ocasião, via-se sair subitamente de toda esta sombra, como de uma emboscada, uma fronte angulosa estreita, um olhar funesto, uma barba ameaçadora, umas enormes mãos e um bordão monstruoso.

Nos seus momentos de descanso, que eram pouco frequentes, Javert lia, embora aborrecesse os livros, o que era causa de que ele não fosse de todo ignorante. Reconhecia-se-lhe isso pelo ênfase com que falava.

Já dissemos que não tinha um só vício. Quando se sentia satisfeito de si próprio, concedia-se a distração de tomar uma pitada de rapé. Era este um ponto pelo qual se ligava à humanidade.

Facilmente se compreende que Javert era o terror de toda esta classe, que a estatística anual do ministério da justiça designa sob a rubrica de gente sem profissão. Bastava pronunciar o nome de Javert para pô-la em debandada; o seu aparecimento petrificava-a.

Tal era este homem terrível.

Javert era uma espécie de olho sempre fito no senhor Madelaine, mas olho cheio de suspeitas e conjecturas. O senhor Madelaine chegou por fim a fazer reparo nisso, mas pareceu não lhe dar cuidado nenhum semelhante coisa. Não fez uma só pergunta a Javert, não o procurava nem lhe evitava a presença; lançava a tudo, sem parecer dar por tal, aquele seu olhar mortificante e quase pesado, tratando Javert como a toda a gente, com bondosa afabilidade.

Por algumas palavras que Javert deixara escapar, adivinhava-se que ele tinha investigado secretamente, com a curiosidade que denuncia a raça e onde há tanto de instinto como de vontade, todos os vestígios anteriores que o senhor Madelaine tivesse por acaso deixado atrás de si noutras partes. Parecia saber e dizia-o às vezes, enigmaticamente, que alguém tomara várias informações em certa terra, a respeito de uma família que desaparecera. Uma vez chegou até a dizer, falando consigo próprio: «Parece-me que o filei!» Depois disto, andou três dias pensativo, sem pronunciar uma palavra. Parecia ter-se-lhe quebrado o fio que conseguira segurar.

Apesar de tudo isto, e é este o corretivo necessário ao sentido demasiadamente absoluto que se poderia dar a certas palavras, não pode haver nada verdadeiramente infalível numa criatura humana, e a principal propriedade do instinto consiste precisamente em poder ser perturbado, apanhado e derrotado. Sem isto seria superior à inteligência, e encontrar-se-ia no animal melhor luz que no homem.

Javert ficara evidentemente algum tempo embaraçado com a serenidade e o modo inteiramente natural do senhor Madelaine.

Um dia, todavia, o estranho proceder daquele homem pareceu impressionar o maire de Montreuil-sur-mer. Eis aqui em que ocasião.


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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