Machado de Assis
CAPÍTULO XCVI / A carta anônima
Senti tocar-me no ombro; era o Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim, Virgília contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.
O marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima e denunciava nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava se a precavê-lo contra a minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília leu a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.
— Calúnia? perguntou Lobo Neves.
— Infame.
O marido respirou; mas, tomando à carta, parece que cada palavra dela lhe fazia com o dedo um sinal negativo, cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião a fitá-lo sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que estava salva; mostrou-se irritada com a insistência, jurou que da minha parte só ouvira palavras de gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem ventura. E citou alguns, — um que a galanteara francamente, durante algumas semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com circunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia de maneira que eu não voltaria lá.
Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranquilidade moral de Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça, porque eu olhava então para o soalho, e disse-me com certa amargura:
— Você não merece os sacrifícios que lhe faço.
Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria à nossa situação o sabor cáustico dos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível que ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe disse nada. Ela batia nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei me e beijei-a na testa. Virgília recuou, como se fosse um beijo de defunto.
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Leia também:
Capítulo LXII / O travesseiro
Capítulo LXIII / Fujamos!
Capítulo: LXIV / A transação
Capítulo LXV / Olheiros e Escutas
Capítulo LXVI / As pernas
Capítulo LXVII / A casinha
Capítulo LXVIII / O vergalho
Capítulo LXIX / Um grão de sandice
Capítulo LXX / Dona Plácida
Capítulo LXXI / O senão do livro
Capítulo LXXII / O bibliômano
Capítulo LXXIII / O luncheon
Capítulo LXXIV / História de Dona Plácida
Capítulo LXXV / Comigo
Capítulo LXXVI / O estrume
Capítulo LXXVII / Entrevista
Capítulo LXXVIII / A presidência
Capítulo LXXIX / Compromisso
Capítulo LXXX / De secretário
Capítulo LXXXI / A reconciliação
Capítulo LXXXII / Questão de botânica
Capítulo LXXXIII / 13
Capítulo LXXXIV / O conflito
Capítulo LXXXV / O cimo da montanha
Capítulo LXXXVI / O mistério
Capítulo LXXXVII / Geologia
Capítulo LXXXVIII / O enfermo
Capítulo LXXXIX / In extremis
Capítulo XC / O velho colóquio de Adão e Caim
Capítulo XCI / Uma carta extraordinária
Capítulo XCII / Um homem extraordinário
Capítulo XCVI / A carta anônima
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