O triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
No sábado da semana seguinte àquela em que a filha do general recebera como marido o grave e giboso Genelício, glória e orgulho do nosso funcionalismo público, Olga casara-se. A cerimônia correra com a pompa e a riqueza acostumada em pessoas de sua camada. Houve uns arremedos parisienses de corbeille de noiva e outros pequenos detalhes chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de satisfação maior que as noivas comuns. Talvez nem mesmo essa ela tivesse.
Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquele ato, mas, aparentemente, nenhuma vontade estranha à sua influíra para isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo médico, cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via diante de si uma larga estrada de triunfos nas posições e na indústria clínica. Não tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal título um foral de nobreza, equivalente àqueles com que os autênticos fidalgos da Europa brunem o nascimento das filhas dos salchicheiros yankees.
Apesar de ser seu pai um importante fazendeiro por aí, em algum lugar deste Brasil, o sogro lhe dera tudo e tudo ele aceitara sem pejo, com o desprezo de um duque, duque de plenamentes e medalhas, a receber homenagens de um vilão que não “roçou os bancos de uma Academia”. Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua simulação de inteligência, de amor à ciência, de desmedidos sonhos de sábio. Tal imagem que dele fizera, durara instantes em Olga; depois foi a inércia da sociedade, a sua tirania e a timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual, e o melhor era não adiar.
Era por isso que ela não ia para a igreja, em virtude de uma determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o constrangimento de um comando fora dela.
Apesar da pompa, esteve longe de ser uma noiva majestosa. Não obstante as origens puramente europeias, era pequena, muito mesmo, ao lado do noivo, alto, ereto, com uma fisionomia irradiante de felicidade; e, desse modo, ela desaparecia dentro do vestido, dos véus e daqueles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se vão casar. De resto, a sua beleza não era a grande beleza - aquela que nós exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas clássicas.
No seu rosto, nada de grego, desse grego autêntico ou de pacotilha, ou também dessa majestade de ópera lírica. Havia nos seus traços muita irregularidade, mas a sua fisionomia era profunda e própria. Não só a luz dos seus grandes olhos negros, que quase cobriam toda a cavidade orbitária, fazia fulgurar o seu rosto móbil, como a sua pequena boca, de um desenho fino, exprimia bondade, malícia e o seu ar geral era de reflexão e curiosidade.
Ao contrário do costume, não saíram da cidade e foram morar em casa do antigo empreiteiro. Quaresma não fora à festa, mandara o leitão e o peru da tradição e escrevera uma longa carta. O sítio empolgara-o, o calor ia passar, vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia ou dous, era como se começasse a desertar da batalha.
O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da horta. A visita de Ricardo veio distraí-lo um pouco, sem desviá-lo contudo dos seus afazeres agrícolas. Passou um mês com o major, e foi um triunfo. A fama do seu nome precedia-o, de forma que todo o município o disputava e festejava.
O seu primeiro trabalho foi ir à vila. Ficava a quatro quilômetros adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem, se assim se pode chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e descia morros, cortava planícies e rios em toscas pontes. A vila!... Tinha duas ruas principais: a antiga, determinada pelo velho caminho de tropas, e a nova, cuja origem veio da ligação da velha com a estrada de ferro. Elas se encontravam em T, sendo o braço vertical o caminho da estação. As outras partiam delas, as casas juntavam-se urbanamente no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar em mato, em campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro, ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das extremidades da Rua Marechal Deodoro, partia a da Matriz, que ia ter à igreja, ao alto de uma colina, feia e pobre no seu estilo jesuítico. À esquerda da estação, num campo, a Praça da República, a que ia dar uma rua mal esboçada por espaçadas casas, ficava a Câmara Municipal.
Era um grande paralelepípedo de tijolo, cimalha, janela com sacadas de grade de ferro, puro estilo mestre-de-obras. Compungia essa pobreza de gosto a quem se lembrasse dos edifícios da mesma natureza das pequenas comunas francesas e belgas da Idade Média.
Ricardo entrou num barbeiro na Rua Marechal Deodoro, Salão Rio de Janeiro, e fez a barba. O fígaro deu-lhe informações sobre a vila e ele se deu a conhecer. Havia certos circunstantes, um deles tomou-o a seu cargo e daí em pouco estava relacionado.
Quando voltou para a casa do major já tinha convite para o baile do Doutor Campos, presidente da Câmara, festa que teria lugar na quarta-feira próxima.
Chegara sábado e fora passear à vila domingo.
Tinha havido missa e o trovador assistiu à saída. A concorrência nunca é grande na roça, mas Ricardo pôde ver algumas daquelas moças do interior, linfáticas e tristes, ataviadinhas, cheias de laços, descendo silenciosas a colina em que se erguia a igreja, espalhando-se pela rua e logo entrando para as casas, onde iriam passar uma semana de reclusão e tédio. Foi na saída da missa que lhe apresentaram o Doutor Campos.
Era o médico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera de “aranha” com a sua filha, Nair, assistir o ofício religioso.
O trovador e o médico estiveram um instante conversando, enquanto a filha, muito magra, pálida, com uns longos braços descarnados, olhava com um vexame fingido o solo poeirento da rua.
Quando eles partiram, ainda Ricardo considerou um pouco aquele rebento dos ares livres do Brasil. À festa do Doutor Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a honra de sua presença e a alegria da sua voz. Quaresma não o acompanhava, mas gozava a sua vitória. Se bem que o major tivesse abandonado o violão, ainda continuava a prezar aquele instrumento essencialmente nacional. As consequências desastrosas do seu requerimento em nada tinham abalado as suas convicções patrióticas. Continuavam as suas ideias profundamente arraigadas, tão-somente ele as escondia, para não sofrer com a incompreensão e maldade dos homens.
Gozava, portanto, a fulminante vitória de Ricardo, que indicava bem naquela população a existência de um resíduo forte da nossa nacionalidade a resistir às invasões das modas e gostos estrangeiros.
Ricardo recebia todas as honras, todos os favores, por parte de todos os partidos. O Doutor Campos, Presidente da Câmara, era quem mais o cumulava de homenagens. Naquela manhã até esperava um dos cavalos do edil, para dar um passeio ao Carico; e, esperando, foi dizendo a Quaresma, que ainda não tinha partido para o eito:
- Major, foi uma boa ideia vir para a roça. Vive-se bem e pode-se subir...
- Não tenho nenhum desejo disso. Você sabe como me são estranhas todas essas cousas.
- Sei... É... Não digo que se peça, mas, quando nos oferecem, não devemos rejeitar, não acha?
- Conforme, meu caro Ricardo. Eu não podia aceitar encargo de comandar uma esquadra.
- Até aí não vou. Olhe, major: eu gosto muito de violão, mesmo dedico a minha vida ao seu levantamento moral e intelectual, entretanto, se amanhã o Presidente dissesse: “Seu Ricardo, você vai ser deputado”, o senhor pensa que eu não aceitava, sabendo perfeitamente que não podia mais desferir os treinos do instrumento? Ora, se não! Não se deve perder vaza, major.
- Cada um tem as suas teorias.
- Decerto. Outra cousa, major: conhece o Doutor Campos?
- De nome.
- Sabe que ele é presidente da Câmara?
Quaresma olhou um instante para Ricardo com uma ligeira desconfiança. O menestrel não notou o gesto do amigo e emendou:
- Mora daqui a uma légua. Já lhe toquei em casa e hoje vou a cavalo passear com ele.
- Fazes bem.
- Ele quer conhecê-lo. Posso trazê-lo aqui?
- Podes.
Um camarada do Doutor Campos, neste instante, entrava pela porteira trazendo o cavalo prometido. Ricardo montou e Quaresma seguiu para a roça ao encontro dos seus dous empregados. Eram agora dous, pois, além do Anastácio, que não era bem um empregado, mas agregado, admitira o Felizardo.
Era manhã de verão, mas as chuvas continuadas dos dias anteriores tinham atenuado a temperatura. Havia uma grande profusão de luz e os ares estavam doces. Quaresma foi caminhando por entre aquele rumor de vida, rumor que vinha do farfalhar do mato e do piar das aves e pássaros. Esvoaçavam tiés-vermelhos, bandos de coleiros; anuns voavam e punham pequenas manchas negras no verdor das árvores. Até as flores, essas tristes flores dos nossos campos, no momento, parece que tinham saído à luz, não somente para a fecundação vegetal mas também para a beleza. Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um roçado, e fora para auxiliar esse serviço que contratou o Felizardo. Era este um camarada magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um símio. Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma aparência de fraqueza muscular, não havia ninguém mais valente que ele a roçar. Com isto era um tagarela incansável. De manhã, quando chegava, aí pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do município.
O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado norte do sítio, que o capão invadira. Obtido ele, o major plantaria obra de meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervalos batatas-inglesas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se fizera a derrubada e o aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não lhe quisera atear fogo. Evitava assim calcinar o terreno, eliminando dele os princípios voláteis ao fogo. Agora o seu trabalho era separar os paus mais grossos, para aproveitar como lenha; os galhos miúdos e folhas, ele removia para longe, onde então queimaria em coivaras pequenas.
Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos cipós e tocos; mas prometia dar um rendimento maior ao plantio.
Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se distrair. Há quem cante, ele falava e pouco se incomodava que lhe dessem ou não atenção.
- Essa gente anda acesa por aí, disse Felizardo logo que o major chegou.
Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, atendia-lhe a conversa, raras não. Anastácio era silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava e, de quando em quando, parava, considerava, numa postura hierática de uma pintura mural tebana. O major perguntou ao Felizardo:
- Que é que há, Felizardo? O camarada descansou o grosso tronco de camará no monte, limpou o suor com os dedos e respondeu com a sua fala branda e chiante:
- Negócio de política... “Seu” Tenente Antonino quase briga ontem com “seu dotô Campo”.
- Onde? - Na estação.
- Por quê?
- Negócio de partido. Pelo que ouvi: “seu” Tenente Antonino é pelo “governadô” e “seu dotô Campo” é pelo “senadô”... Um “sarcero”, patrão!
- E você, por quem é?
Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um galho que enleava o tronco a remover. Anastácio estava de pé e considerou um instante a figura do companheiro palrador.
Respondeu afinal:
- Eu! Sei lá... Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso é bom pro “sinhô”.
- Eu sou como você, Felizardo.
- Quem me dera, meu “sinhô”. Inda “trasantonte” ouvi “dizê” que o patrão é amigo do “marechá”.
Afastou-se com o pau; e, quando voltou, Quaresma indagou assustado:
- Quem disse?
- Não sei, não “sinhô”. Ouvi a modo de “dizê” lá na venda do espanhol, tanto assim que “doutô Campo tá” inchado que nem sapo com a sua amizade.
- Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo cousa alguma... Conheci-o... E nunca disse isso aqui a ninguém... Qual amigo!
- “Quá!” fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão “tá” é varrendo a testada.
Apesar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar daquela cabeça infantil a ideia de que ele fosse amigo do Marechal Floriano. “Conheci-o no meu emprego” - dizia o major; Felizardo sorria grosso e por uma vez dizia: “Quá! o patrão é fino que nem cobra.”
Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer aquilo? Demais, as palavras de Ricardo, as suas insinuações pela manhã... Ele tinha o trovador em conta de homem leal e amigo fiel, incapaz de lhe estar armando laços para passar maus momentos; os entusiasmos dele, entretanto, junto à vontade de ser bom amigo, podiam iludi-lo e fazê-lo instrumento de algum perverso. Quaresma ficou um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados; em breve, porém, esqueceu-se e a preocupação dissipou-se. À tarde, quando foi jantar, já nem mais se lembrava da conversa e a refeição correu natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra alguma de cogitações por parte dele.
Dona Adelaide, sempre com a sua matinée creme e saia preta, sentava-se à cabeceira; Quaresma à direita e à esquerda, Ricardo. Era a velha quem sempre puxava a língua do trovador.
- Gostou muito do passeio, Senhor Ricardo?
Não havia meio dela dizer “seu”. A sua educação de “senhora” de outros tempos não lhe permitia usar esse plebeísmo generalizado. Vira os pais, gente ainda fortemente portuguesa, dizer “senhor” e continuava a dizer, sem fingimento, naturalmente.
- Muito. Que lugar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é que se tem inspiração. E ele tomava aquela atitude de arroubo; uma fisionomia de máscara de trágico grego e uma voz cavernosa que rolava como uma trovoada abafada.
- Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.
- Hoje acabei uma modinha.
- Como se chama? indagou Dona Adelaide.
- “Os lábios da Carola”.
- Bonito! Já fez a música?
Era ainda a irmã de Quaresma a perguntar. Ricardo levava agora o garfo à boca; deixou-o suspenso entre os lábios e o prato e respondeu com toda a convicção:
- A música, minha senhora, é a primeira cousa que faço.
- Hás de no-la cantar logo.
- Pois não, major.
continua na página 51...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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