domingo, 13 de fevereiro de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — VII

Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



VII — Fauchelevent torna-se jardineiro em Paris


Fauchelevent tinha deslocado um joelho ao cair. O senhor Madelaine mandou conduzi-lo imediatamente para uma enfermaria que estabelecera para os seus operários, no próprio edifício da fábrica, que era dirigida por duas irmãs de caridade. No dia seguinte, o pobre velho encontrou sobre a mesa de cabeceira uma nota de mil francos, com estas palavras escritas pelo punho do senhor Madelaine: «Compro-lhe a carroça e o cavalo». Ora a carroça estava desconjuntada e o cavalo morto. Fauchelevent restabeleceu-se, mas o joelho ficou-lhe sempre aleijado Madelaine, com as recomendações das irmãs de caridade e do cura, arranjou-lhe o lugar de jardineiro num convento de freiras no bairro de Santo António em Paris.

Daí a algum tempo, Madelaine foi nomeado maire. Javert, da primeira vez que o viu revestido da faixa que lhe dava toda a autoridade sobre a cidade, sentiu a espécie de estremecimento que percorreria o corpo de um cão de fila ao farejar um lobo debaixo da roupa do seu dono e, daí em diante, evitou a sua presença sempre que lhe foi possível. Quando, porém, as necessidades do serviço o exigiam absolutamente e ele não podia deixar de se encontrar com o maire, falava-lhe sempre com profundo respeito.

A prosperidade de Montreuil-sur-mer criada pelo senhor Madelaine tinha, além dos sinais visíveis que já indicamos, um outro sintoma que, conquanto não fosse visível, não deixava por isso de ser tão significativo como os outros. É uma coisa que nunca falha. Quando a população sofre, quando falta o trabalho e o comércio é nulo, o contribuinte resiste ao imposto por penúria, não paga dentro dos prazos estabelecidos e o Estado faz grandes despesas para os obrigar ao pagamento dos respectivos impostos. Quando, porém, abunda o trabalho, quando o país é rico e feliz, o imposto paga-se voluntariamente e custa pouco ao Estado. Pode dizer-se que a miséria e a riqueza pública têm um termômetro infalível: as despesas feitas com a arrecadação dos impostos.

Em sete anos, as despesas dessa natureza que o Estado se via obrigado a fazer, tinham-se reduzido a um quarto em Montreuil-sur-mer, o que dava lugar a que o nome deste distrito fosse frequentes vezes citado por Villèle, então ministro das finanças.

Tal era a situação daquela localidade quando Fantine ali regressou Já ninguém se lembrava dela. Felizmente, porém, os portões da fábrica do senhor Madelaine era como que um rosto amigo, pois apresentando-se ali foi logo admitida na oficina das mulheres. Todavia, aquele género de trabalho era completamente novo para ela, não podendo haver-se nele com desembaraço e por consequência tirar grandes lucros do seu trabalho diário; mas, enfim, esse pouco era-lhe suficiente e conseguira resolver o seu problema, ganhava a vida.



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — II
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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