quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (4)

 Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


4..


continuando...


Com relação aos nossos mortos, sempre vigorou uma proibição enérgica contra mostrar o rosto descoberto. As fotos tiradas por Gardner e O’Sullivan ainda chocam porque os soldados da União e dos Confederados jazem de costas, com o rosto de alguns claramente visível. Nenhuma publicação importante, durante muitos anos, voltou a mostrar soldados americanos tombados em campo de batalha, senão, a rigor, a partir da foto capaz de demolir tabus, tirada por George Strock e publicada pela revista Life em setembro de 1943 — antes, a foto fora retida pelos censores militares —, de três soldados mortos numa praia durante um desembarque na Nova Guiné. (Embora “Pracinhas mortos na praia de Buna” seja sempre apresentada como uma foto de três soldados de rosto virado para baixo sobre a areia molhada, um dos três está deitado de barriga para cima, mas o ângulo de que a foto foi tirada esconde sua cabeça.) Por ocasião do desembarque na França — 6 de junho de 1944 — apareceram fotos de baixas americanas anônimas em várias revistas, sempre de bruços, ou cobertas, ou com o rosto virado para outro lado. Quando se trata dos outros, essa dignidade não é tida como necessária.

Quanto mais remoto ou exótico o lugar, maior a probabilidade de termos imagens frontais completas dos mortos e dos agonizantes. Assim, a África pós-colonial existe na consciência do público em geral no mundo rico — além da sua música sensual — sobretudo como uma sucessão de fotos inesquecíveis de vítimas com olhos esbugalhados, desde as imagens da fome em Biafra, no fim da década de 1960, até os sobreviventes do genocídio de quase 1 milhão de tútsis em Ruanda, em 1994 e, poucos anos depois, as crianças e os adultos cujas pernas e braços foram amputados durante a campanha de terror em massa promovida pela ruf, um movimento rebelde de Serra Leoa. (Mais recentemente, as fotos mostram famílias inteiras de aldeões indigentes que morrem de Aids.) Essas imagens trazem uma mensagem dupla. Mostram um sofrimento ultrajante, injusto e que deveria ser remediado. Confirmam que esse é o tipo de coisa que acontece naquele lugar. A ubiquidade dessas fotos e desses horrores não pode deixar de alimentar a crença na inevitabilidade da tragédia em regiões ignorantes ou atrasadas — ou seja, pobres — do mundo.

Crueldades e infortúnios comparáveis aconteceram também na Europa, em outros tempos; crueldades que ultrapassam, em volume e em monstruosidade, qualquer coisa que se possa mostrar, agora, nas regiões pobres do mundo ocorreram na Europa há não mais de sessenta anos. Mas o horror parece haver deixado a Europa, e deixado por tempo suficiente para que a atual ordem pacificada pareça inevitável. (O fato de poder haver campos de extermínio, um sítio a uma cidade e o massacre de milhares de civis que depois foram jogados em valas comuns, em solo europeu, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, deu à guerra na Bósnia e à campanha de extermínio promovida pelos sérvios em Kosovo um interesse especial e anacrônico. Mas uma das maneiras principais de entender os crimes de guerra cometidos no Sudeste da Europa na década de 1990 consistiu em dizer que os Bálcãs, afinal, nunca fizeram de fato parte da Europa.) Em geral, os corpos com ferimentos graves que aparecem em fotos publicadas são da Ásia ou da África. Essa praxe jornalística é herdeira do costume secular de exibir seres humanos exóticos — ou seja, colonizados: africanos e habitantes de remotos países da Ásia foram mostrados, como animais de zoológico, em exposições etnológicas montadas em Londres, Paris e outras capitais europeias, desde o século XVI até o início do XX. Em A tempestade, o primeiro pensamento de Trinculo ao encontrar-se com Calibã é que ele poderia ser apresentado em uma exposição, na Inglaterra: “muitos tolos de fim de semana, por lá, pagariam uma moeda de prata [...] podem não abrir mão de um vintém para aliviar os sofrimentos de um mendigo aleijado, mas pagam dez para ver um indiano morto”. A exibição, em fotos, de crueldades infligidas a pessoas de pele mais escura, em países exóticos, continua a promover o mesmo espetáculo, esquecida das ponderações que impedem essa exposição quando se trata de nossas próprias vítimas da violência; pois o outro, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não como alguém (como nós) que também vê. Porém, sem dúvida, o soldado talibã ferido que implora pela sua vida, cuja sorte foi mostrada com destaque em The New York Times, também tinha esposa, filhos, pais, irmãs e irmãos, alguns dos quais podem, um dia, topar com fotos coloridas do seu marido, pai, filho e irmão ao ser massacrado — se é que já não as viram.



continua pág 200...


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."


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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


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