Paulo Freire
“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
4. A teoria da ação antidialógica
A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A
MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL
INVASÃO CULTURAL
continuando...
Quando, porém, os invadidos, em certo momento de sua experiência existencial, começam, desta ou daquela forma, a recusar a invasão a que, em outro momento, se poderiam haver adaptado, para justificar o seu fracasso, falam na “inferioridade” dos invadidos, porque “preguiçosos”, porque “doentes”, porque "mal-agradecidos” e às vezes, também, porque “mestiços”.
Os bem intencionados, isto é, aqueles que usam a “invasão” não como ideologia, mas pelas deformações a que nos referimos páginas atrás, temiam por descobrir, em suas experiências, que certos fracassos de sua ação não se devem a uma inferioridade natural dos homens simples do povo, mas à violência de seu ato invasor.
Este, de modo geral, é um momento difícil por que passam alguns dos que fazem tal descoberta.
Sentem a necessidade de renunciar à ação invasora, mas os padrões dominadores estão de tal forma metidos “dentro” deles, que esta renúncia é uma espécie de morrer um pouco.
Renunciar ao ato invasor significa, de certa maneira, superar a dualidade em que se encontram – dominados por um lado: dominadores, por outro.
Significa renunciar a todos os mitos de que se nutre a ação invasora e existenciar uma ação dialógica. Significa, por isto mesmo, deixar de estar sobre ou “dentro”, como “estrangeiras”, para estar com, como companheiros.
O “medo da liberdade”, então, neles se instala. Durante todo esse processo traumático, sua tendência é, naturalmente, racionalizar o medo, com uma série de evasivas.
Este “medo da liberdade”, em técnicos que não chegaram sequer a fazer a descoberta de sua ação invasora, é maior ainda, quando se lhes fala do sentido desumanizante desta ação.
Não são raras as vezes, nos cursos de capacitação, sobretudo no momento da “descodificação” de situações concretas feitas pelos participantes, em que, irritados, perguntam ao coordenador da discussão: “Aonde, afinal, o senhor quer nos levar?” Na verdade, o coordenador não está querendo conduzi-los. Ocorre simplesmente que, ao problematizar-lhes uma situação concreta, eles começam a, perceber que, se a análise desta situação se vai aprofundando, terão de desnudar-se de seus mitos, ou afirmá-los.
Desnudar-se de seus mitos e renunciar a eles, no momento, são uma “violência” contra si mesmos, praticada por eles próprios. Afirmá-los é revelar-se. A única saída, como mecanismo de defesa também, é transferir ao coordenador o que é a sua prática normal: conduzir, conquistar, invadir, [1] como manifestações de sua antidialogicidade.
[1] Ver Paulo Freire, Extensão ou Comunicação? ICIRA, Santiago de Chile, 1969.
Esta mesma fuga acontece, ainda que em escala menor, entre homens do povo, na proporção em que a situação concreta de opressão os esmaga e sua “assistencialização” os domestica.
Uma das educadoras do Full Circle, de Nova York, instituição que realiza um trabalho educativo de real valor, nos relatou o seguinte caso: ao problematizar uma situação codificada a um dos grupos das áreas pobres de Nova York que mostrava, na esquina de uma rua – a rua mesma em que se fazia a reunião – uma grande quantidade de lixo, disse imediatamente um dos participantes: “Vejo uma rua da África ou da América Latina”.
“E por que não de Nova York?”, perguntou a educadora.
“Porque, afirmou, somos os Estados Unidos e aqui não pode haver isto”.
Indubitavelmente, este homem e alguns de seus companheiros, que com ele concordavam, com uma indiscutível “manha da consciência”, fugiam a uma realidade que os ofendia, e cujo reconhecimento até os ameaçava.
Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucesso pessoal, reconhecer-se numa situação objetiva desfavorável, para uma consciência alienada, é frear a própria possibilidade do êxito.
Quer neste, quer no caso dos profissionais, se encontra patente à força “sobredeterminante” da cultura em que se desenvolvem os mitos que os homens introjetam.
Em ambos os casos, é a cultura da classe dominante obstaculizando a afirmação dos homens como seres da decisão.
No fundo, nem os profissionais a que nos referimos, nem os participantes da discussão citada num bairro pobre de Nova York estão falando e atuando por si mesmos, como atores do processo histórico.
Nem uns nem outros são teóricos ou ideólogos da dominação. Pelo contrário, são efeitos que se fazem também causa da dominação.
Este é um dos sérios problemas que a revolução tem de enfrentar na etapa em que chega ao poder.
Etapa que, exigindo de sua liderança um máximo de sabedoria política, de decisão e de coragem, exige, por tudo isto, o equilíbrio suficiente para não deixar-se cair em posições irracionalmente sectárias.
É que, indiscutivelmente, os profissionais, de formação universitária ou não, de quaisquer especialidades, são homens que estiveram sob a “sobredeterminação” de uma cultura de dominação, que os constituiu como seres duais. Poderiam, inclusive, ter vindo das classes populares e a deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior estes profissionais, contudo, são necessários à reorganização da nova sociedade. E, como grande número entre eles, mesmo tocados do “medo da liberdade” e relutando em aderir a uma ação libertadora, em verdade são mais equivocados que outra coisa, nos parece que não só poderiam, mas deveriam ser reeducados pela revolução.
Isto exige da revolução no poder que, prolongando o que antes foi ação cultural dialógica, instaure a “revolução cultural”. Desta maneira, o poder revolucionário, conscientizado e conscientizador, não apenas é um poder, mas um novo poder; um poder que não é só freio necessário aos que pretendam continuar negando os homens, mas também um convite valente a todos os que queiram participar da reconstrução da sociedade.
Neste sentido é que a “revolução cultural” é a continuação necessária da ação cultural dialógica que deve ser realizada no processo interior à chegada ao poder.
A “revolução cultural” toma a sociedade em reconstrução em sua totalidade, nos múltiplos quefazeres dos homens, como campo de sua ação formadora.
A reconstrução da sociedade, que não se pode fazer mecanicistamente, tem, na cultura que culturalmente se refaz, por meio desta revolução, o seu fundamental instrumento.
Como a entendemos, a “revolução cultural” é o máximo de esforço de conscientização possível que deve desenvolver o poder revolucionário, com o qual atinja a todos, não importa qual seja a sua tarefa a cumprir.
Por isto mesmo é que este esforço não se pode contentar com a formação tecnicista dos técnicos, nem cientificista dos cientistas, necessários à nova sociedade. Esta não pode distinguir-se, qualitativamente, da outra (o que não se faz repentinamente, como pensam os mecanicistas em sua ingenuidade) de forma parcial.
Não é possível à sociedade revolucionária atribuir à tecnologia as mesmas finalidades que lhe eram atribuídas pela sociedade anterior, Consequentemente, nelas varia, igualmente, a formação dos homens.
Neste sentido, a formação técnico-cientifica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua humanização.
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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA
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Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (h)
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (i)
___________________
© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)
1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
-371.332
77-0064 CDD-371.3:376.76
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Direitos adquiridos pela
EDITORA PAZ E TERRA S/A
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01212 – São Paulo, SP
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20010 – Rio de Janeiro, RJ
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Conselho Editorial
Antonio Candido
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
(licenciado)
1994
___________________
Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido
"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores."
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (a)
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (b)
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"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores."
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