quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Susan Sontag - O Mundo-Imagem (02)

 Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



O MUNDO-IMAGEM (02)



Um sentido do real decididamente mais complexo cria seus próprios fervores e simplificações compensatórios, entre os quais o mais viciante é tirar fotos. É como se os fotógrafos, em reação a um sentido de realidade cada vez mais esvaziado, procurassem uma transfusão — viajar para novas experiências, revigorar as antigas. Suas atividades ubíquas redundam na mais radical, e mais segura, versão da mobilidade. A premência de novas experiências se traduz na premência de tirar fotos: a experiência em busca de um modelo à prova de crises.

Assim como tirar fotos parece quase obrigatório para aqueles que viajam, a paixão de colecioná-las tem um apelo especial para os que se acham confinados — por opção, incapacidade ou coerção. As coleções de fotos podem ser usadas para criar um mundo substituto, em harmonia com imagens enaltecedoras, consoladoras ou provocantes. Uma foto pode ser o ponto de partida de um romance (o Judas de Hardy já se apaixonara pela foto de Sue Bridehead antes de conhecê-la pessoalmente), mas é mais comum que uma relação erótica seja não só criada por fotos mas entendida como limitada a fotos. Em Les enfants terribles, de Cocteau, o irmão e a irmã narcisistas partilham a cama, seu “quarto secreto”, com imagens de boxeadores, astros do cinema e assassinos. Isolando-se em seu covil para viver sua lenda particular, os dois adolescentes guardam essas fotos, um panteão privado. Numa parede da cela 46 na prisão de Fresnes no início da década de 1940, Jean Genet colou as fotos de vinte criminosos que ele havia recortado de jornais, vinte rostos em que discernia “o sinal sagrado do monstro”, e em sua honra escreveu Nossa Senhora das Flores; eles lhe serviram de musas, modelos, talismãs eróticos. “Eles velam minhas pequenas rotinas”, escreve Genet — devaneios fluidos, masturbação e escrever —, e “são a única família que tenho e meus únicos amigos”. Para os que ficam em casa, os prisioneiros e os que confinam a si mesmos, viver entre fotos de estranhos glamourosos é uma reação sentimental ao isolamento e um desafio insolente que a ele dirigem.

O romance Crash (1973), de J. G. Ballard, descreve uma coleção de fotos mais especializada, a serviço de uma obsessão sexual: fotos de acidentes de carro que Vaughan, amigo do narrador, coleciona enquanto prepara a própria morte em um acidente de carro. A realização de sua visão erótica da morte num automóvel é antegozada, e a própria fantasia é ainda mais erotizada mediante o exame atento e repetido dessas fotos. Numa ponta do espectro, as fotos são dados objetivos; na outra, são elementos de ficção científica psicológica. E assim como se pode localizar um imperativo sexual mesmo na mais assustadora, ou aparentemente neutra, realidade, também a foto-documento mais banal pode transformar-se num emblema do desejo. A foto do criminoso é uma pista para o detetive e um fetiche erótico para um colega ladrão. Para Hofrat Behrens, em A montanha mágica, os raios X dos pulmões de seus pacientes são instrumentos para o diagnóstico. Para Hans Castorp, que cumpre uma sentença por tempo indeterminado no sanatório de tuberculosos de Behren e caiu de amores pela enigmática e inatingível Clavdia Chauchat, “o raio X de Clavdia, que mostra não seu rosto mas a delicada estrutura óssea da parte superior de seu corpo e os órgãos da cavidade torácica, cercados pelo pálido e espectral invólucro de carne”, é o mais precioso dos troféus. O “retrato transparente” é um vestígio muito mais íntimo de sua amada do que a pintura de Clavdia que Hofrat possui, esse “retrato exterior”, que Hans certa vez contemplou com tamanho desejo.

Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas) — assim como, segundo Proust, o mais ambicioso dos prisioneiros voluntários, não se pode possuir o presente, mas pode-se possuir o passado. Nada poderia ser mais discrepante da faina autossacrificante de um artista como Proust do que a falta de esforço presente no ato de tirar fotos, provavelmente a única atividade capaz de criar obras de arte respeitadas na qual um simples movimento, um toque do dedo, produz uma obra completa. Enquanto a faina proustiana supõe que a realidade esteja distante, a fotografia subentende um acesso instantâneo ao real. Mas os resultados dessa prática de acesso instantâneo são outro modo de criar distância. Possuir o mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar a irrealidade e o caráter distante do real.

A estratégia do realismo de Proust presume a distância daquilo que é normalmente experimentado como real, o presente, a fim de reanimar aquilo que em geral se pode alcançar apenas de forma remota e nebulosa, o passado — que é onde o presente se torna real no sentido de Proust, ou seja, algo que pode ser possuído. Nesse esforço, fotos não ajudavam em nada. Toda vez que Proust menciona fotos, o faz de modo depreciativo: como sinônimo de uma relação superficial com o passado, exclusiva e excessivamente visual, e meramente voluntária, cujo resultado é insignificante quando comparado com as profundas descobertas a ser feitas ao reagir às sugestões oriundas de todos os sentidos — a técnica que ele chamou de “memória involuntária”. É inadmissível imaginar que no fim do preâmbulo de No caminho de Swan o narrador se visse diante de uma foto da igreja paroquial de Combray, e que o sabor dessa migalha visual, em vez do gosto da humilde madeleine embebida no chá, erguesse diante de seus olhos toda uma parte de seu passado. Mas a razão para tal não está na incapacidade de uma foto de evocar memórias (ela é capaz disso, dependendo antes dos predicados do espectador do que da foto), mas sim naquilo que Proust esclarece acerca de suas próprias exigências no que se refere à recordação imaginativa, ou seja, que ela não se mostre apenas ampla e acurada mas dê a textura e a essência das coisas. E ao considerar as fotos apenas na medida em que podia usá-las, como um instrumento da memória, Proust como que entende de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da memória como uma invenção dela, ou um substituto.

Não é a realidade que as fotos tornam imediatamente acessível, mas sim as imagens. Por exemplo, hoje todos os adultos podem saber com exatidão como eles, seus pais e seus avós eram quando crianças — um conhecimento que não era acessível antes da invenção da câmera, nem mesmo para aquela pequena minoria em que era costume encomendar pinturas de seus filhos. A maioria desses retratos era menos informativa do que qualquer instantâneo. E mesmo os muito ricos tinham, em geral, apenas um retrato de si mesmos e de seus antepassados quando crianças, ou seja, uma imagem de um momento da infância, ao passo que hoje é comum a pessoa ter muitas fotos de si mesma em todas as idades, uma vez que a câmera oferece a possibilidade de um registro completo. O sentido dos retratos convencionais na residência burguesa dos séculos XVIII e XIX era confirmar um ideal de modelo (proclamar a posição social, embelezar a aparência pessoal); em vista desse propósito, fica claro o motivo por que seus proprietários não sentiam necessidade de ter mais de um retrato. A foto-registro, mais modestamente, confirma apenas que o tema existe; portanto, por mais fotos que a pessoa tenha, elas nunca serão demais.

O temor de que a singularidade de um tema fosse nivelada ao ser fotografado nunca se exprimiu com mais frequência do que na década de 1850, anos em que a fotografia de retrato deu o primeiro exemplo de como as câmeras podiam criar modas fugazes e indústrias duradouras. Em Pierre, de Melville, publicado no início daquela década, o herói, outro campeão fervoroso do isolamento voluntário,

refletia sobre a infinita presteza com que, agora, o retrato mais fiel de qualquer pessoa podia ser tirado pelo da guerreótipo, ao passo que em tempos anteriores um retrato fiel só estava ao alcance do poder dos endinheirados, ou dos aristocratas mentais da terra. Portanto, era bastante natural a inferência de que, em vez de imortalizar um gênio, como nos velhos tempos, um retrato agora apenas dializava um imbecil. Além do mais, quando todos têm seu retrato publicado, a verdadeira distinção consiste em não ter nunca seu retrato publicado.
Mas se fotos rebaixam, pinturas distorcem no sentido oposto: engrandecem. A intuição de Melville é de que todas as formas de retratar na civilização dos negócios são espúrias; pelo menos, assim parece a Pierre, modelo de sensibilidade alienada. Da mesma forma como uma foto é muito pouco numa sociedade de massas, uma pintura é demais. A natureza de uma pintura, observa Pierre, torna-a
mais habilitada a reverenciar do que um homem; porquanto nada de desairoso pode ser imaginado com respeito ao retrato, ao passo que muitas coisas inevitavelmente desairosas podem ser concebidas quando se trata de um homem.
Embora tais ironias possam ser vistas como diluídas no completo triunfo da fotografia, a diferença principal entre uma pintura e uma foto no que se refere ao retratismo ainda perdura. Pinturas invariavelmente resumem; fotos, em geral, não o fazem. Imagens fotográficas são peças comprobatórias numa biografia ou numa história em andamento. E uma foto, ao contrário de uma pintura, implica a existência de outras.

“Sempre — o Documento Humano mantém o presente e o futuro em contato com o passado”, disse Lewis Hine. Porém aquilo que a fotografia fornece não é apenas um registro do passado mas um modo novo de lidar com o presente, como atestam os efeitos dos incontáveis bilhões de documentos fotográficos contemporâneos. Enquanto fotos velhas preenchem nossa imagem mental do passado, as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado. As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência. Fotos fornecem formas simuladas de posse: do passado, do presente e até do futuro. Em Invitation to a beheading [Convite a uma decapitação] (1938), de Nabokov, o prisioneiro Cincinnatus vê o “foto-horóscopo” de uma criança elaborado pelo sinistro M’sieur Pierre: um álbum de fotos da pequena Emmie quando bebê, depois como criança, depois como pré-púbere, tal como é no momento, e depois — por meio de retoques e de fotos da mãe — imagens da Emmie adolescente, noiva, com trinta anos e, por fim, uma foto de Emmie já aos quarenta anos de idade, em seu leito de morte. Uma “paródia da obra do tempo”, assim Nabokov denomina esse artefato exemplar; é também uma paródia da obra da fotografia.



continua página 93...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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