domingo, 13 de fevereiro de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — VIII

 Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



VIII — A senhora Victurnien dispende trinta e cinco francos em favor da moral


Quando Fantine viu que podia ir vivendo com o pouco que ganhava, teve um momento de alegria. Que dom do céu, viver honradamente do seu trabalho! Sentiu voltar-lhe novamente o gosto pelo trabalho. Comprou um espelho, regozijou-se de contemplar a sua mocidade, os lindos cabelos e os belos dentes, esquecendo muitas coisas para não pensar senão na sua Cosette e na possibilidade de um porvir melhor, sentindo-se quase feliz. Alugou um pequeno quarto e mobiliou-o a crédito, dando como garantia o seu trabalho futuro, resto dos seus hábitos de desregramento.

Não podendo dizer que era casada, evitara sempre falar da sua filha

Nos primeiros tempos, pagara com toda a pontualidade aos Thenardier a prestação porque ajustara a educação da criança, e como não sabia mais do que escrever o seu nome, via-se obrigada a mandar fazer as cartas por um escrevente de profissão

Tornou-se, porém, objeto de reparo a frequência com que o fazia, de modo que as suas companheiras de trabalho começaram a murmurar umas com as outras que Fantine «escrevia cartas» e «que tinha más companhias».

Não há, para se intrometer na vida das pessoas, como aqueles a quem ela não diz respeito. Porque será que este sujeito só vem ao anoitecer? Porque motivo fulano não deixa nunca a chave na porta à quinta-feira? Porque anda ele sempre pelos becos e travessas? Porque será que aquela senhora se apeia sempre da carruagem antes de chegar a casa? Para que manda comprar um caderno de papel de escrever, quando tem tanto na sua pasta?, etc.

Existem pessoas que, para darem com estes enigmas resolvidos, gastam mais dinheiro, desperdiçam mais tempo e têm mais trabalho do que seria necessário para praticar dez ações boas; e isto gratuitamente, por gosto, sem receber de tal curiosidade senão a própria curiosidade. Andarão dias inteiros seguindo este ou aquele; estarão horas esquecidas de sentinela a uma esquina, à entrada de uma alameda, de noite, ao frio e à chuva, com bom ou mau tempo; subornarão os moços de recados, embebedarão cocheiros e lacaios, corromperão uma criada grave e uma ou outra porteira. E tudo isto para quê? Para nada. Puro encarniçamento em ver, em saber e penetrar. Puro desejo de falar. E não poucas vezes, o conhecimento destes segredos, a publicação destes mistérios, a decifração destes enigmas, trás consigo catástrofes, duelos, falências, a ruína de muitas falências, a desgraça de muitas existências, com grande prazer dos que «descobriram tudo» sem interesse e só por instinto. Triste coisa!

Certas pessoas são más unicamente pela necessidade que têm de falar. A sua conversação, loquacidade nos salões, murmúrios nas antecâmaras, é como os fogões que consomem a lenha rapidamente; necessitam de muito combustível, e esse combustível é o próximo.

Foi, pois, por esta simples razão, que as companheiras começaram a espreitar Fantine, a quem não poucas invejavam os seus formosos cabelos loiros e a deslumbrante alvura dos belos dentes.

Repararam que, quando ela estava na oficina, no meio das outras, voltava muitas vezes o rosto para o lado a fim de limpar uma lágrima. Eram os momentos em que pensava na filha e talvez também no homem que amara.

É necessário um esforço doloroso para quebrar os vínculos sombrios do passado.

Descobriram que ela escrevia, pelo menos duas vezes cada mês, sempre para a mesma direção e franqueando as cartas que deitava no correio. Souberam também que eram dirigidas a um tal Thenardier, estalajadeiro em Montfermeil. Levaram o escrevente para a taberna e fizeram-no facilmente dar à língua, porque era um pobre velho que não podia encher o estômago de vinho sem despejar a bolsa dos segredos. Soube-se assim que Fantine tinha uma filha e disseram logo: «Aquilo é decerto uma mulher das de vida fácil, ou coisa parecida». Houve até uma bisbilhoteira que foi a Montfermeil falar aos Thenardier e que disse quando voltou: «É verdade que gastei trinta e cinco francos, mas sosseguei a consciência: vi a criança!»

A mulher que assim procedera era uma verdadeira fúria, chamada Victurnien, sentinela vigilante da virtude de toda a gente. Tinha cinquenta e seis anos e juntava a fealdade à velhice. Voz de cabra, espírito de bode. E todavia, coisa espantosa!, esta velha tinha sido jovem; na sua mocidade, em pleno 93, casara com um frade fugido do convento de gorro vermelho na cabeça e que se passara dos Bernardos para os Jacobinos. Era uma velha esgrouviada, áspera, espinhosa, azeda, quase venenosa, mas sem nunca se esquecer do querido monge de quem era viúva, que a havia de certo modo amansado e subjugado. Era uma urtiga em que se viam os sinais do roçar da roupeta.

No tempo da restauração fizera-se beata, e em tão fervidos arroubos se mostrou extasiada, tão alto guindou o misticismo devoto, que os padres chegaram a perdoar-lhe aquele desvio da sua união com o frade, levando-lhe em desconto da culpa a abnegação com que cedera algum dinheiro que possuía em favor de uma comunidade religiosa, o que ela fez, procurando o melhor meio de tornar bem falada a sua generosa ação. Granjeou-lhe a sua devoção e fervor religioso as gerais simpatias no bispado de Arras, onde todos a viam com bons olhos A senhora Victurnien foi pois a Montfermeil e voltou de lá, dizendo: «Vi acriança!»

Tudo isto levou tempo. Havia mais de um ano que Fantine trabalhava na fábrica, quando um dia a superintendente da oficina lhe entregou cinquenta francos, da parte do maire, participando-lhe ao mesmo tempo que se considerasse despedida e convidando-a também da parte do senhor maire, a abandonar a cidade.

Tinha isto lugar exatamente no mesmo mês em que os Thenardier, tendo pedido já doze francos em vez de seis, lhe exigiram quinze em vez de doze.

Fantine ficou aterrada. Como podia ela abandonar a cidade, se devia a renda da casa e o custo dos trastes com que a mobilara? Cinquenta francos não chegavam para pagar essa dívida. Balbuciou algumas palavras suplicantes, mas a superintendente fez-lhe ver que devia sair imediatamente da oficina. Além disso, Fantine não passava de uma operária medíocre. Acabrunhada mais pela vergonha do que dominada pelo desespero, não se sentiu com força de dizer uma só palavra e, cabisbaixa, abandonou a oficina. Não havia dúvida, a sua falta era já conhecida de toda a gente.

Aconselharam-na a que fosse falar com o maire, mas não teve ânimo de o fazer. O maire dera-lhe cinquenta francos porque era bondoso, expulsava-a porque era justo. A pobre rapariga curvou-se, pois, ao peso daquela sentença.


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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