Oxalá
Reginaldo Prandi
Orixanlá cria a Terra
No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio d'água, um lugar inóspito, sem nenhuma serventia. Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os orixás, que às vezes desciam para brincar nos pântanos insalubres. Desciam por teias de aranha penduradas no vazio. Ainda não havia terra firme, nem o homem existia.
Um dia Olorum chamou à sua presença Orixanlá, o Grande Orixá. Disse-lhe que queria terra firme lá embaixo e pediu-lhe que realizasse tal tarefa. Para a missão, deu-lhe uma concha marinha com terra, uma pomba e uma galinha com pés de cinco dedos. Orixanlá desceu ao pântano e depositou a terra da concha. Sobre a terra pôs a pomba e a galinha e ambas começaram a ciscar.
Foram assim espalhando a terra que viera na concha até que terra firme se formou por toda parte. Orixanlá voltou a Olorum e relatou-lhe o sucedido. Olorum enviou um camaleão para inspecionar a obra de Oxalá e ele não pode andar sobre o solo que ainda não era firme. O camaleão voltou dizendo que a Terra era ampla, mas ainda não era suficientemente seca.
Numa segunda viagem o camaleão trouxe a notícia de que a Terra era ampla e suficientemente sólida, podendo-se agora viver em sua superfície. O lugar mais tarde foi chamado de Ifé, que quer dizer ampla morada.
Depois Olorum mandou Orixanlá de volta à Terra para plantar árvores e dar alimentos e riquezas ao homem. E veio a chuva para regar as árvores.
Foi assim que tudo começou.
Foi ali, em Ifé, durante uma semana de quatro dias, que Orixá Nlá criou o mundo e tudo o que existe nele.
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Obatalá cria o homem
Num tempo em que o mundo era apenas a imaginação de Olodumare, só existia o infinito firmamento e abaixo dele a imensidão do mar. Olorum, o Senhor do Céu, e Olocum, a Dona dos Oceanos, tinham a mesma idade e compartilhavam os segredos do que já existia e ainda existiria. Olorum e Olocum tiveram dois filhos: Orixalá, o primogênito, também chamado Obatalá, e Odudua, o mais novo.
Olorum-Olodumare encarregou Obatalá, o Senhor do Pano Branco, de criar o mundo. Deu-lhe poderes para isso. Obatalá foi consultar Orunmilá, que lhe recomendou fazer oferendas para ter sucesso na missão. Mas Obatalá não levou a sério as prescrições de Orunmilá, pois acreditava somente em seus próprios poderes. Odudua observava tudo atentamente e naquele dia também consultou Orunmilá.
Orunmilá assegurou a Odudua que se ele oferecesse os sacrifícios prescritos, seria o chefe do mundo que estava para ser criado. A oferenda consistia em quatrocentas mil correntes, uma galinha com pés de cinco dedos, um pombo e um camaleão, além de quatrocentos mil búzios. Odudua fez as oferendas.
Chegado o dia da criação do mundo, Obatalá se pôs a caminho até a fronteira do além, onde Exu é o guardião. Obatalá não fez as oferendas nesse lugar, como estava prescrito. Exu ficou muito magoado com a insolência e usou seus poderes para se vingar de Oxalá. Então uma grande sede começou a atormentar Obatalá.
Obatalá aproximou-se de uma palmeira e tocou seu tronco com seu comprido bastão. Da palmeira jorrou vinho em abundância e Obatalá bebeu do vinho até embriagar-se. Ficou completamente bêbado e adormeceu na estrada. Ninguém ousaria despertar Obatalá.
Odudua tudo acompanhava. Quando certificou-se do sono de Oxalá, Odudua apanhou o saco da criação que fora dado a Obatalá por Olorum. Odudua foi a Olodumare e lhe contou o ocorrido. Olodumare viu o saco da criação em poder de Odudua e confiou a ele a criação do mundo. Com as quatrocentas mil correntes Odudua fez uma só e por ela desceu até a superfície de ocum, o mar. Sobre as águas sem fim, abriu o saco da criação e deixou cair um montículo de terra. Soltou a galinha de cinco dedos e ela voou sobre o montículo, pondo-se a ciscá-lo. A galinha espalhou a terra na superfície da água. Odudua exclamou na sua língua: "Ilè nfé!", que é o mesmo que dizer "A Terra se expande!", frase que depois deu nome a cidade de Ifé, cidade que está exatamente no lugar onde Odudua fez o mundo. Em seguida Odudua apanhou o camaleão e fez com que ele caminhasse naquela superfície, demonstrando assim a firmeza do lugar. Obatalá continuava adormecido. Odudua partiu para a Terra para ser seu dono.
Então, Obatalá despertou e tomou conhecimento do ocorrido. Voltou a Olumare contando sua história. Olodumare disse: "O mundo já está criado. Perdeste uma grande oportunidade".
Para castigá-lo, Olomuare proibiu Obatalá de beber vinho-de-palma para sempre, ele e todos os seus descendentes. Mas a missão não estava completa e Olodumare deu outra dádiva a Obatalá: a criação de todos os seres vivos que habitariam a Terra. E assim Obatalá criou todos os seres vivos e criou o homem e criou a mulher. Obatalá modelou em barro os seres humanos e o sopro de Olodumare os animou. O mundo agora se completara. E todos louvaram Obatalá.
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Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileira; Morte nos búzios; Ifá, o Adivinho; Xangô, o Trovão; Oxumarê, o Arco-Íris; Contos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundo; Minha querida assombração; Jogo de escolhas e Feliz Aniversário.
Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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