sábado, 24 de novembro de 2018

Gente Pobre - 33. Deus vê tudo, minha querida, tudo! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


33.




9 de setembro



Minha querida Bárbara Alexeievna:



Escrevo-lhe esta carta completamente transtornado. Um terrível incidente excitou-me a tal ponto, que quase perdi os sentidos. Sinto tonturas na cabeça e parece-me ainda que tudo anda às voltas. Ai, meu amor, não sei como contar-lhe o sucedido! Nunca nos passou pela mente que tal se desse! Se bem que... julgo ter pressentido tudo, é verdade; absolutamente tudo! O coração já me segredava, e não vai há muito que tive um sonho em que vi uma coisa semelhante! 

Ouça agora o que me sucedeu! Desta vez contar-lhe-ei tudo sem me importar com o estilo: com toda a simplicidade, conforme a inspiração de Deus. 

Esta manhã, dirigi-me, como de costume, para a repartição. Cheguei lá, sentei-me e pus-me a escrever. Como sabe, minha querida, já ontem estive no mesmo serviço, e quando estava a trabalhar, fui abordado por Timofei Ivanovitch, que me disse: «Tem aqui um documento de grande importância, que deve copiar com urgência. Por isso, agarre-se já a ele... Boa letra e o máximo cuidado! Sua excelência queria-o pronto depressa para ser assinado ainda hoje...» Antes de mais nada, devo lembrar-lhe que ontem não me encontrava muito bem-disposto; achava-me abatido de compaixão e de dor, embora o não deixasse transparecer. Sentia frio no coração e trevas no cérebro. Mas os meus pensamentos iam todos para si, meu anjo! Bem, principiei a cópia, com boa letra e muito cuidado; mas eis que... Olhe, não sei explicar-lhe exatamente se foi o diabo — Deus me perdoe — em pessoa que me guiou a mão, ou se qualquer outra força misteriosa, ou se de fato tinha simplesmente de suceder; o certo é que saltei uma linha inteira. Só Deus sabe o sentido que o texto tomou com aquele salto, talvez um verdadeiro absurdo. Mas o documento só ficou pronto ao fim da tarde, de modo que apenas esta manhã pôde ser apresentado à assinatura de sua excelência. 

Pois quando hoje lá cheguei, como de costume, ocupei o meu lugar ao lado de Emelia Ivanovitch. Devo dizer-lhe, minha querida, que de algum tempo a esta parte sinto cada vez mais vergonha e procuro mais do que nunca esconder-me. Ultimamente até perdi a coragem de olhar as pessoas de frente. Mal dou fé de mexerem uma cadeira, fico logo mais morto do que vivo. Nesse estado de espírito me encontrava hoje; estava todo dobrado sobre o trabalho, muito quietinho no meu sítio, como um ouriço, quando Efin Akimovitch (o maior brincalhão deste mundo), de repente, me disse em voz alta, de modo que todos ouvissem: 

— Porque está assim sentado, Makar Alexeievitch? Parece um U! 

E ao dizer isto, fez tal trejeito que todos desataram a rir à minha custa, naturalmente, que não à dele. Pois foi o que o tipo me disse! Tapei os ouvidos, fechei os olhos e não me mexi. É o que costumo fazer sempre quando me dirigem piadas, e deste modo mais depressa me deixam em paz. Mas de repente ouvi vozes excitadas, uns passos apressados, corridas e vozes. Ouvi... — mas não se enganariam os meus ouvidos? — Ouvi chamar-me, pelo meu nome, chamar por Dievuchkin. O meu coração palpitou desordenadamente e por todo o corpo senti um medo como nunca tivera em toda a minha vida! Continuei sentado na cadeira. 

Como se estivesse morto, sem me mexer, porque eu já não era eu! Mas os gritos soavam cada vez mais perto, mesmo junto de mim. «Dievuchkin! Mas onde está Dievuchkin? Dievuchkin!» Abri então os olhos e deparou-se-me Evstafii Ivanovitch... Ainda o ouvi repetir: «Makar Alexeievitch, venha já a sua excelência. Arranjou boa com a sua cópia!» Disse-me apenas isto, e chegou bem. Não lhe parece, minha querida, que era o suficiente? Fiquei como que petrificado, simplesmente morto, não senti mais nada, e dirigi-me para o gabinete do ministro... Quer dizer, quem se dirigiu foram os meus pés, porquanto, a bem dizer, a minha pessoa encontrava-se mais morta do que viva! Levaram-me através de uma sala, depois atravessei outra e outra ainda, até chegar ao gabinete de sua excelência... Só ali tive consciência do sítio em que me achava. Não posso dizer-lhe, de modo nenhum, os pensamentos que então me cruzaram pela mente. Vi diante de mim o ministro, rodeado pela sua gente. Julgo que nem sequer me lembrei de lhe fazer uma inclinação de cabeça. Os lábios e as pernas tremiam-me de emoção. E tinha razões de sobra para isso, meu amor! Em primeiro lugar porque sentia muita vergonha, e depois porque, tendo-me virado casualmente para a direita, mirei-me ao espelho, e verifiquei que tinha motivo de sobra para cair redondamente no chão. Além disso, procurara sempre portar-me tal como se não existisse, pelo que não era provável que sua excelência tivesse de mim a mais vaga ideia. Talvez o ministro tivesse ouvido dizer, de passagem, que na sala quatro, trabalhava um empregado de nome Dievuchkin, mas não devia ser mais circunstanciada a referência. 

Pois, de súbito, sua excelência, muito zangado, exclamou: 

— Como é que o senhor fez este disparate, não me dirá? Onde tinha os olhos? Um documento tão importante e que tinha de ser enviado urgentemente! E o senhor arranja um serviço destes! Em que estava a pensar, homem? 

E ao dizer isto, sua excelência virava-se para Evstafii Ivanovitch. Apenas consegui compreender algumas palavras soltas, que pareciam vir do outro mundo: Descuido! Negligência! Não faz senão tolices! 

Abri a boca, mas não consegui articular palavra. Queria desculpar-me, pedir perdão, mas não podia. Deitar a fugir… nem pensar nisso. De repente, sucedeu uma coisa... uma coisa, meu amor, que até tenho vergonha de contar. Um botão do meu casaco — diabos o levem! —, um botão que se encontrava preso apenas por um fio, de súbito caiu ao chão (decerto toquei-lhe, não sei como) e, rodando, foi ter mesmo junto dos pés de sua excelência, rodando sempre no meio do silêncio sepulcral que ali reinava. E foi àquilo que ficou reduzida a minha justificação, a minha desculpa, tudo o que tinha a dizer ao ministro! As consequências foram imediatas. Logo sua excelência atentou no meu aspecto e no meu fato. Lembrei-me do que vira no espelho... E não é preciso dizer mais nada... Baixei-me, para apanhar o botão e colocar de novo no respetivo sítio o inoportuno desertor. Perdera por completo o juízo! Estendi a mão para o alcançar, mas ele continuava a rodar como um pião, e por mais esforços que fizesse, nada conseguia… Mesmo quanto a habilidade, estava a dar bonitas provas! 

De súbito, senti que me abandonavam as minhas últimas energias e que estava tudo perdido. Fora-se toda a dignidade, a minha reputação acabara-se! Ao mesmo tempo senti um zumbido nos ouvidos e tinha a impressão de que, através da parede, chegavam até mim os insultos de Teresa e Faldoni, tão habituado estou a ser insultado por eles na cozinha. 

Finalmente, consegui apanhar o botão e levantei-me. Mas em vez de fazer por reparar de certo modo a falta cometida e me conservar direito e com as mãos na costura das calças, fui tão imbecil que me pus a ver se segurava o botão no respetivo sítio, com duas pontas de fio ali existentes. Como se pudesse prendê-lo com tanta facilidade! E ainda me ria do caso, é verdade; tinha o descaramento de me rir! 

Sua excelência olhou outra vez para mim, e ouvi-o a seguir dizer a Evstafii Ivanovitch: 

— Olhe... Repare no aspecto dele! Porque é que anda assim? Que quer aquilo dizer? 

Ai, minha querida! Não era preciso mais nada! Sua excelência tinha dito tudo com clareza. Evstafii Ivanovitch respondeu-lhe: 

— Não tem havido motivo para lhe dirigir a mínima censura, Excelência; o seu porte, até hoje, tem sido irrepreensível, verdadeiramente exemplar... Tem boa letra... e ganha um ordenado regular... 

— Bem, então, veja a forma de o ajudar — continuou o ministro. — Faça-lhe um adiantamento... 

— Adiantamentos já lhe foram feitos de mais; já recebeu adiantadamente uma data de meses. Decerto atravessa qualquer crise especial. Quanto ao resto, como digo, o seu porte é irrepreensível, exemplar... 

Sentia-me, meu anjo, como que no meio de um círculo de chamas infernais, que me queimavam e tostavam vivo! Eu... Já não era nada, havia exalado o último suspiro, tinha morrido e estava morto. 

— Bem — disse sua excelência em voz alta —, é preciso fazer outra cópia. Dievuchkin, venha cá; vai copiar isto novamente, sem erros; e os senhores… 

Dizendo isto sua excelência voltou-se para os circunstantes e deu-lhes diferentes ordens, após o que eles se foram retirando. Logo que o último saiu, sua excelência tirou prontamente a carteira do bolso, da qual pegou numa nota de cem rublos. 

— Olhe, é quanto posso dar-lhe... Pegue lá. Atribua ao meu gesto o sentido que entender... 

E meteu-me na mão a nota. 

Estremeci com a comoção, meu anjo. Não sei explicar o que se passou dentro de mim. Quis agarrar-lhe na mão para a beijar, mas ele pôs-se vermelho, meu amor, é pura verdade o que lhe digo, e pegou nesta indigna mão e apertou-a — tudo isto como se se tratasse da mão de um igual, de qualquer personagem da sua categoria. 

— Bem, pode retirar-se — disse. — É quanto posso fazer por si. Copie o documento outra vez, mas veja que não se engane. Esta cópia pode rasgar-se. 

Pois agora, meu amor, ouça o que pensei: rogar a si e à Fédora, como o faria aos meus filhos se os tivesse, que nas suas orações peçam a Deus, não pelo seu pai, mas por sua excelência, e que rezem por ele enquanto forem vivas. Sim, minha querida, vou dizer-lhe mais uma coisa solenemente e preste-lhe toda atenção: por maior que fosse a penúria em que me achava e por muito que a nossa falta de recursos me fizesse sofrer, ao pensar na necessidade da minha boa amiga e nas dificuldades com que se debatia e, portanto, ao lembrar-me da minha triste condição e da minha inutilidade, juro-lhe que estes cem rublos não representam para mim tanto como o gesto de sua excelência ao dar-me a mim, o bêbedo, o mau entre os maus, a sua mão e dignar-se apertar a minha, tão indigna. Com este movimento, sua excelência restituiu-me ao meu verdadeiro ser; ressuscitou-me de entre os mortos; suavizou-me a vida para sempre. E estou firmemente convencido de que, embora pecador aos olhos do Altíssimo, as minhas preces pela saúde e prosperidade de sua excelência hão de chegar ao trono de Deus e Ele há de ouvi-las!... 

Querida, meu amor! Encontro-me, neste momento, inusitadamente excitado, perturbado. O meu coração palpita e dá saltos, e sinto-me tão fatigado como se todas as minhas forças fossem abandonar-me. 

Mando-lhe quarenta e cinco rublos; dei vinte à minha patroa e fico com trinta e cinco para mim. Destes, vinte destino-as à aquisição de algumas peças de roupa, e o restante para ir fazendo face às necessidades de cada dia. 

Todas as impressões desta manhã deixaram-me tão fatigado, que me sinto muito fraco. Vou-me deitar. De resto, agora, estou absolutamente tranquilo. Apenas experimento uma espécie de peso no coração e, no fundo, não sei onde, sinto como que a minha alma a agitar-se, a esvoaçar. Irei vê-la em breve, mas, de momento, ainda tenho a cabeça transtornada com todas estas sensações... 

Deus vê tudo, minha querida, tudo! 

Seu digno amigo



Makar Dievuchkin




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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