sábado, 3 de novembro de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo



X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 
 


continuando...


O convencional prosseguiu: 

— Vejo que não gosta do rigor da verdade, senhor padre! Gostava Cristo, que pegava numa vara e varria o templo. O seu azorrague cheio de relâmpagos dizia bem rudes verdades. Quando exclamava: Sinite parvulos, não fazia distinção entre as crianças. Não teria escrúpulo de juntar o filho de Barrabás com o filho de Herodes. O tratamento de Alteza não serve de nada à inocência, porque tão augusta é coberta de andrajos como quando adornada de arminhos! 

— É exato — disse o bispo em voz baixa. 

— Insisto, pois, na minha opinião — continuou o convencional. — Falou-se em Luís XVII, entendamo-nos, portanto. Devemos chorar sobre todos os inocentes, sobre todos os mártires, sobre todas as crianças, sejam filhos do povo, sejam filhos do rei? De acordo. Mas então, repito, é necessário retroceder muito além de 93, porque é antes de Luís XVII que as lágrimas devem começar a ser derramadas. Estou pronto a chorar com o senhor os filhos dos reis, contando que o senhor chore comigo, os filhos do povo! 

— Eu choro por todos — disse o bispo. 

— Igualmente! — exclamou G... — Mas se a balança deve inclinar para alguma parte, que seja antes para o lado dos filhos do povo, porque há mais tempo que sofrem! 

Seguiu-se nova pausa, a qual foi interrompida pelo convencional. Firmou-se num dos cotovelos, apertou entre o polegar e o índice dobrado a pele da cara, com o gesto maquinal de quem interroga ou reflete, e fitou no bispo um olhar perscrutador, que respirava toda a energia da agonia. Foi quase uma explosão. 

— Sim, senhor bispo, há muito que o povo sofre! Mas faça o favor de dizer-me: o que pretendia ao vir interrogar-me e falar-me sobre Luís XVII, o senhor aquem eu nem sequer conheço? Desde que resido nesta terra, tenho vivido sempre aqui encerrado, sem companhia, sem ver ninguém, além desse rapazinho que me tem servido. O seu nome é verdade que o ouvi por duas ou três vezes e, devo dizê-lo, pronunciado com respeito, mas isso nada quer dizer; os homens astuciosos sabem perfeitamente como se lança poeira nos olhos do povo. É verdade, eu não ouvi o ruído da sua carruagem; deixou-a decerto oculta no arvoredo, à entrada do caminho que conduz aqui? Repito-lhe, não o conheço, disse-me que era o bispo, mas isso nada me adianta no conhecimento das suas qualidades morais. Em suma, o senhor é um bispo, quer dizer, um príncipe da Igreja, um desses homens que se cobrem de oiro e arminhos, vivem no fausto e nos regalos, cobram boas rendas, disfrutam bispados: por exemplo, o de Digne que tem de renda fixa quinze mil francos e dez mil de emolumentos, soma vinte e cinco mil francos: é um desses homens que têm lacaios, mesa lauta, onde à sexta-feira se serve o melhor peixe; que rodeados de criados se pavoneiam em coches de gala e habitam palácios, tudo em nome de Jesus Cristo, que andava descalço! O senhor é um prelado, quer dizer, um homem com rendimentos, palácios, cavalos, lacaios, boa mesa, todas as sensualidades da vida, enfim, que possui como os outros e das quais como qualquer outro goza. Está muito bem, mas isso diz mais ou menos que o suficiente; não me esclarece sobre o seu valor intrínseco, essencial para quem, como o senhor, talvez, vem aqui com o intuito de me dar sabedoria e luz? Com quem estou a falar? Quem é o senhor? 

O bispo inclinou a cabeça e respondeu: 

Vermis sum. 

— Um verme de carruagem! — murmurou o convencional. 

Chegara a sua vez de se mostrar altivo e o bispo humilde. 

— Pois seja assim! — replicou o bispo suavemente. — Mas explique-me de que modo prova a minha carruagem, que deixei oculta entre o arvoredo, a minha boa mesa, o peixe que nela se serve à sexta-feira, o meu rendimento de vinte e cinco mil francos, o meu palácio e os meus lacaios, como é que tudo isto prova não ser a piedade uma virtude, a clemência um dever e que 93 não foi inexorável? 

O convencional passou a mão pela fronte como que para afastar um pensamento e em seguida disse: 

— Antes de lhe responder, peço-lhe que me perdoe a falta que cometi. O senhor está em minha casa, é meu hóspede, devo tratá-lo com cortesia. Discute as minhas ideias, devo limitar-me a combater os seus raciocínios. As suas riquezas, os seus gozos são outras tantas vantagens que eu tenho a meu favor no debate, mas de que parece mal servir-me Prometo, portanto, não o tornar a fazer. 

— Agradeço-lhe a intenção — disse o bispo. 

G... continuou: 

— Voltemos à explicação que me pediu. Em que ponto estávamos? Dizia-me, se bem me lembro, que 93 foi inexorável. 

— Inexorável, isso mesmo! — repetiu o bispo. 

— Que ideia faz de Marat batendo as palmas em frente da guilhotina? — Que ideia faz de Bossuet entoando um Te-Deum, depois das dragonadas? 

A resposta era cruel, mas foi direita ao alvo com a rigidez de uma ponta de aço. O bispo estremeceu e emudeceu, mas sentiu-se ofendido ao ouvir citar Bossuet de semelhante modo. Os espíritos mais esclarecidos têm os seus ídolos e às vezes como que se agastam com os desacatos da lógica. 

O convencional principiava a respirar com dificuldade, a asma da agonia entrecortava lhe já a voz; todavia, notava-se-lhe ainda nos olhos perfeita lucidez da alma e prosseguiu:

— Digamos ainda algumas palavras sobre o assunto, que desejo imenso. Tirando a revolução, que, tomada em geral, foi uma grande afirmava humana, 93 é uma réplica. O senhor acha-a inexorável, mas que tem sido a monarquia? Carrier é um facínora, mas que nome dá a Montrevel? Fouquier-Finville é um miserável, mas que conceito forma de Lamoignon-Bâville? Maillard é uma criatura repugnante, mas que diz de Saulx Tavannes? O padre Duchesne é um homem feroz, mas que epíteto acha o senhor que merece o padre Letellier? Jourdan-Coup-Tête é um monstro, mas muito menos hediondo do que o marquês de Louvois. Lamento Maria Antonieta, arquiduquesa e rainha, mas lamento também aquela pobre mulher huguenote, que em 1685, no reinado de Luís o Grande, foi atada a um poste, nua até à cintura, com o filhinho que amamentava abandonado a alguma distância; o seio transbordava-lhe de leite e o coração de angústia; a infeliz criancinha, esfomeada e pálida, agonizava e gritava, sem poder colar os lábios naquele seio, e o algoz dizia à infeliz mãe: «Abjura!», dando-lhe a escolher entre a morte do filho e a da consciência. Que lhe parece este suplício de Tântalo acomodado a uma pobre mãe? Creia, senhor bispo, a revolução francesa teve as suas razões. A sua ira há-de encontrar absolvição no futuro. O resultado dela será um mundo melhor. Os seus golpes mais terríveis escondem um afago ao gênero humano. Mas não posso mais... fiz o meu... dever... a morte avizinha-se. 

E, desfitando os olhos do bispo, concluiu o seu pensamento nestas poucas palavras: 

— As brutalidades do progresso chamam-se revoluções! Depois delas terminadas todos reconhecem que o gênero humano foi severamente maltratado, mas que deu alguns passos em frente! 

Mal suspeitava o convencional que, uns após outros, acabava de derrubar todos os redutos do espírito do bispo. Todavia, ainda um ficava de pé, e dele, supremo recurso da resistência de Monsenhor Bemvindo, saíram estas palavras, que deixava de novo transparecer toda a severidade de há pouco: 

— O progresso deve crer em Deus. O bem não pode ter por servidora a impiedade. Mal vai ao género humano, se o ateísmo é seu guia! 

O antigo representante do povo não respondeu. Sentiu um estremecimento, fitou os olhos no céu e duas lágrimas lhe deslizaram pelas faces lívidas. Depois, lentamente, em voz baixa, como que falando consigo mesmo, murmurou: 

— Só tu, ó ideal, só tu existes! 

O bispo sentiu uma inexplicável comoção. 

Depois de alguns instantes de silêncio, o convencional ergueu um dedo para o céu, dizendo: 

— O infinito existe, está bem! Se o infinito não tivesse um eu, o eu seria o seu limite e, portanto, não seria infinito, ou, por outras palavras, não existiria. Ora ele existe. Logo tem um eu. O eu do infinito é Deus! 

Estas palavras foram proferidas em voz alta pelo moribundo, com o estremecimento do êxtase, como se estivesse vendo alguma coisa extraordinária. Apenas acabou de falar, fechou os olhos. O esforço que fizera extenuara-o. Era evidente que aquele homem acabava de viver num minuto as poucas horas que lhe restavam de vida. Chegara, enfim, o momento supremo. 

O bispo compreendeu-o, compreendeu toda a urgência da ocasião e que fora ali como sacerdote. Passando então gradualmente do extremo da frieza à extrema comoção, contemplou aqueles olhos fechados, pegou na mão inerte e gelada do moribundo, dizendo-lhe: 

— Esta hora pertence a Deus! Não acha que seria para lamentar que o nosso encontro não tivesse resultado? 

A estas palavras, o convencional reabriu os olhos com aspecto de sombria gravidade. 

— Senhor bispo — disse ele com lentidão, procedida talvez mais da dignidade de alma do que da falta de forças — tenho passado a minha vida na meditação, no estudo e na contemplação. Tinha sessenta anos quando fui chamado pelo meu país, para tomar parte na direção dos seus negócios. Obedeci. Combati os abusos que nele se davam; havia tiranias, destruí-as; havia direitos e princípios, proclamei-os e professei-os. O território estava invadido, defendi-o; a França estava ameaçada, ofereci-lhe o meu sangue. Não era rico e fiquei pobre. Fui um dos senhores do Estado; os subterrâneos do Banco encontravam-se atulhados de dinheiro, a ponto de ser preciso escorar as paredes para não abaterem com o peso do oiro e da prata, e eu ia comer todos os dias a uma hospedaria da rua de l’Abre-Sec, onde se jantava por vinte e dois sous. Socorri os oprimidos, protegi os que sofriam. Rasguei as toalhas dos altares, é verdade, mas foi para ligar as feridas da pátria. Sustentei sempre o progresso da humanidade para a luz e opus-me algumas vezes ao progresso inexorável. Protegi sempre que me foi possível os meus próprios adversários; haja em vista o convento de urbanistas chamado de Santa Clara, situado no lugar de Petegben, na Flandres, exatamente onde os reis merovíngios possuíam o seu palácio de Verão, que eu salvei em 1793. Cumpri com o meu dever até onde pude e fiz o bem que me foi possível. No fim de tudo isto, fui expulso, perseguido, escarnecido, conspurcado, amaldiçoado, proscrito. Passados já tantos anos e apesar dos meus cabelos brancos, muita gente se julga ainda com direito de me desprezar; para a multidão ignorante tenho rosto de condenado e eu resigno-me sem ódio ao isolamento do ódio. Agora, com oitenta e seis anos, vou morrer. Que pretende o senhor de mim? 

— A sua bênção — disse o bispo, ajoelhando. 

Quando o prelado ergueu a cabeça, sentiu-se impressionado pela augusta expressão do convencional. Aquele homem sublime havia expirado. 

O bispo regressou a casa profundamente absorto nos seus pensamentos. Aquela noite passou-a a orar. No dia seguinte, alguns curiosos tentaram falar-lhe no convencional G...; o bispo, por única resposta, limitou-se a apontar-lhes para o céu. De então em diante, o prelado redobrou de afeto e comiseração para com os pequenos e os desvalidos. 

A menor alusão ao «velho celerado G...» fazia-o cair em profunda meditação. Ninguém podia negar que a passagem daquele espírito pela frente do seu e que o reflexo daquela grande consciência sobre a sua, tinham contribuído para o aproximar da perfeição. 

Como era de esperar, a «visita pastoral» ao antigo membro da Convenção deu que falar durante algum tempo aos ociosos da terra. 

— É porventura à cabeceira de tal moribundo o lugar de um bispo? Era evidente não haver ali a esperança de conversão; todos os revolucionários são relapsos. Para que foi lá o bispo? Que tinha afazer em semelhante lugar? Sempre era preciso estar com muita vontade de ver como o diabo levava uma alma! 

Certa ocasião, uma senhora já idosa, pertencente à classe que se julga espirituosa, disse-lhe:

 — Andam todos ansiosos por saber quando recebe Vossa Grandeza o barrete vermelho. 

— É uma cor muito viva — respondeu o bispo. — Felizmente, os que a desprezam nos barretes, veneram-na nos chapéus.





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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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