Simone de Beauvoir
33. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
V
" seu ser-para-os-homens é sua condição concreta "
CONSIDEREMOS, POR EXEMPLO, a sorte das camponesas. Na França, constituem elas a maioria das mulheres que participam do trabalho produtor e são geralmente casadas. A celibatária, com efeito, permanece o mais das vezes servente na casa paterna ou na casa de um irmão ou de uma irmã; só se torna dona de um lar aceitando submeter-se a um marido; os costumes e tradições determinaram-lhe papéis diversos segundo as regiões: a camponesa normanda preside as refeições, ao passo que a mulher corsa não se senta à mesa dos homens. Em todo caso, desempenhando, na economia doméstica, papel dos mais importantes, ela participa das responsabilidades do homem, está associada aos seus interesses, reparte com ele a propriedade; é respeitada e é muitas vezes quem efetivamente governa. Sua situação lembra a que tinha nas antigas comunidades agrícolas. Ela tem, não raro, tão grande prestígio moral como o marido, ou maior, mas sua condição concreta é muito mais dura. Incumbe-lhe, a ela exclusivamente, cuidar do jardim, do galinheiro, do curral, do chiqueiro; executa trabalhos pesados: limpa os estábulos, espalha o esterco e a semeadura, ara, capina, ceifa; cava, arranca ervas daninhas, colhe, vindima e por vezes ajuda a carregar e descarregar as carroças de palha, feno, lenha, forragem etc. Ademais prepara as refeições, cuida da limpeza da casa: lava, costura etc, atende aos duros encargos da maternidade e dos filhos. Levanta-se de madrugada, dá comida às aves do galinheiro e aos animais domésticos, serve a primeira refeição dos homens, cuida das crianças e vai trabalhar no campo, no bosque ou na horta; vai buscar água na fonte, serve a segunda refeição, lava a louça, trabalha novamente no campo até a hora do jantar; depois da última refeição aproveita a noite para costurar, limpar, debulhar o milho etc. Como não tem tempo para se ocupar da saúde, mesmo durante a gravidez, deforma-se depressa prematuramente enrugada e gasta, corroída pelas doenças. As poucas compensações que o homem encontra de vez em quando na vida social, são-lhe recusadas: ele vai à cidade aos domingos e dias de feira, encontra-se com outros homens, vai ao bar, bebe, joga cartas, caça, pesca. Ela fica em casa e não conhece lazeres. Somente as camponesas abastadas, que têm criadas ou que não se veem obrigadas a trabalhar no campo, levam uma vida harmonicamente equilibrada. São socialmente respeitadas e gozam de certa autoridade no lar, sem ser esmagadas pelas tarefas necessárias. Mas, em geral, o trabalho rural reduz a mulher à qualidade de animal de carga.
A comerciante, a dona de alguma pequena empresa, sempre foram privilegiadas; são as únicas a quem o código, desde a Idade Média, outorga capacidades civis. A merceeira, a leiteira, a dona de hotel, a vendedora de cigarros, têm uma posição equivalente à do homem: celibatárias ou viúvas, são por si mesmas uma razão social; casadas, gozam da mesma autonomia que o marido. Têm a sorte de seu trabalho se exercer no mesmo local do lar e de não ser em geral muito absorvente.
Com a operária, a empregada, a secretária, a vendedora, que trabalham fora de casa, a situação é muito diferente. É-lhes muito mais difícil conciliar o ofício com a vida doméstica (compras, refeições, limpeza, cuidado da roupa, coisas que lhes tomam três horas e meia de trabalho quotidiano, pelo menos, e seis horas no domingo, o que é considerável quando se acresce ao número de horas da fábrica ou do escritório). Quanto às profissões liberais, embora advogadas, médicas, professoras consigam quem as auxilie em casa, o lar e os filhos representam para elas encargos e preocupações que constituem um pesado handicap, Na América do Norte o trabalho doméstico é simplificado pelo emprego de técnicas engenhosas; mas a apresentação e a elegância que se exigem da mulher que trabalha impõem-lhe outras servidões; ela continua responsável pela casa e pelos filhos.
Por outro lado, a mulher que busca sua independência no trabalho tem muito menos possibilidades do que seus concorrentes masculinos. Em muitos ofícios, seu salário é inferior aos dos homens; suas tarefas são menos especializadas e, portanto, menos bem pagas que as de um operário qualificado e, em igualdade de condições, ela é menos bem remunerada. Pelo fato de ser uma recém-chegada ao mundo dos homens, tem menores possibilidades de êxito. A homens e mulheres igualmente repugna submeterem-se às ordens de uma mulher, têm mais confiança no homem; ser mulher, se não chega a constituir uma tara, é pelo menos uma singularidade. Para realizar-se, a mulher precisa assegurar-se um apoio masculino. São os homens que ocupam melhores lugares, que detêm os postos mais importantes. É essencial sublinhar que homens e mulheres constituem economicamente duas castas (1).
(1) Na América do Norte grandes fortunas acabam caindo nas mãos das mulheres; mais jovens do que seus maridos, sobrevivem-lhes e deles herdam. Mas, já então, são idosas e raramente tomam a iniciativa de novos empreendimentos; agem mais como usufrutuanas do que como proprietárias. São os homens, na realidade, que "dispõem" dos capitais. Como quer que seja, essas ricas privilegiadas constituem apenas uma pequena minoria. Na América do Norte, mais ainda do que na Europa, é quase impossível a uma mulher alcançar uma posição elevada como advogada, médica etc.
O fato que determina a condição atual da mulher é a sobrevivência obstinada, na civilização nova que se vai esboçando, das tradições mais antigas. Ê o que não percebem os observadores apressados que estimam ser a mulher inferior às possibilidades que lhe são oferecidas, ou que só veem nessas possibilidades tentações perigosas. Na verdade, a situação é sem equilíbrio e é por essa razão que lhe é difícil adaptar-se a ela. Abrem-se as fábricas, os escritórios, as faculdades às mulheres, mas continua-se a considerar que o casamento é para elas uma carreira das mais honrosas e que a dispensa de qualquer outra participação na vida coletiva. Como nas civilizações primitivas o ato amoroso constitui para ela um serviço que tem o direito de cobrar mais ou menos diretamente. A não ser na U.R.S.S. (2), em toda parte se permite à mulher moderna encarar o corpo como um capital passível de exploração. A prostituição é tolerada (3), a galanteria encorajada. A mulher casada é autorizada
(2) Pelo menos de acordo com a doutrina oficial.
(3) Nos países anglo-saxões, a prostituição nunca foi regulamentada. Até 1900 a Common Law inglesa e norte-americana só a encarava como um delito quando escandalosa e suscetível de provocar desordens. Desde então, a repressão exerceu-se com maior ou menor rigor, com maior ou menor êxito, na Inglaterra e em diversos Estados dos E.U.A., cujas legislações são. nesse ponto, muito diferentes. Na França, em conseqüência de longa campanha abolicionista, a lei de 13 de abril de 1946 decretou o fechamento das casas de tolerância e a intensificação da luta contra o proxenetismo: "Considerando que a existência dessas casas é incompatível com os princípios essenciais da dignidade humana e o papel reservado à mulher na sociedade moderna..." Entretanto, a prostituição continua a existir. Não será, evidentemente, com medidas negativas e hipócritas que se poderá modificar a situação.
a viver a expensas do marido; demais, adquire uma dignidade social muito superior à da celibatária. Os costumes estão longe de outorgar a esta possibilidades sexuais idênticas às do homem celibatário; a maternidade, em particular, é-lhe, por assim dizer, proibida, sendo a mãe solteira objeto de escândalo. Como, portanto, não conservaria o mito de Cinderela todo o seu valor? (Philipp Wyllie, Generation of Vipers.). Tudo encoraja ainda a jovem a esperar do "príncipe encantado" fortuna e felicidade de preferência a tentar sozinha uma difícil e incerta conquista. E, principalmente, pode ela assim esperar ascender, graças a ele, a uma casta superior à sua própria, milagre que o trabalho de uma vida inteira não compensaria. Mas uma tal esperança é nefasta, porque divide suas forças e seus interesses; e essa divisão é, sem dúvida, o maior handicap contra a mulher. Os pais ainda educam suas filhas antes com vista ao casamento do que favorecendo seu desenvolvimento pessoal. E elas veem nisso tais vantagens, que o desejam elas próprias; e desse estado de espírito resulta serem elas o mais das vezes menos especializadas, menos solidamente formadas do que seus irmãos, e não se empenham integralmente em suas profissões; desse modo, destinam-se a permanecer inferiores e o círculo vicioso fecha-se, pois essa inferioridade reforça nelas o desejo de encontrar um marido. Todo benefício tem, como reverso, um encargo; mas se os encargos são demasiado pesados, o benefício já se apresenta como uma servidão; para a maioria dos trabalhadores, o trabalho é hoje uma corveia ingrata; para a mulher não é essa tarefa compensada por uma conquista concreta de sua dignidade social, de sua liberdade de costumes, de sua autonomia econômica; é natural que numerosas operárias e empregadas só vejam no direito ao trabalho uma obrigação de que o casamento as libertaria. Entretanto, pelo fato de ter tomado consciência de si e de poder libertar-se também do casamento pelo trabalho, a mulher não mais aceita a sujeição com docilidade. O que ela desejaria é que a conciliação da vida familiar com um ofício não exigisse dela desesperantes acrobacias. Mesmo assim, enquanto subsistem as tentações da facilidade — em virtude da desigualdade econômica que favorece certos indivíduos e do direito reconhecido à mulher de se vender a um desses privilegiados — ela precisa de um esforço moral maior que o do homem para escolher o caminho da independência. Não se compreendeu suficientemente que a tentação é também um obstáculo, e até dos mais perigosos. E essa tentação se acompanha de uma mistificação, porquanto, na realidade, só uma ganha, entre milhares, na loteria do bom casamento. A época atual convida as mulheres ao trabalho, obriga-as mesmo a isso, mas acena-lhes com paraísos de ócio e delícias e exalta as eleitas bem acima das que permanecem presas a este mundo terrestre.
O privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o prestígio do casamento, a utilidade de um apoio masculino, tudo impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos homens. Em conjunto, elas ainda se encontram em situação de vassalas. Disso decorre que a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define. Cumpre-nos, portanto, descrevê-la primeiramente como os homens a sonham, desde que seu ser-para-os-homens é um dos elementos essenciais de sua condição concreta.
mitos...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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O Segundo Sexo - 24. Fatos e Mitos: admite-se que "uma mulher vale um homem"
O Segundo Sexo - 25. Fatos e Mitos: Ei-lo, eis o verdadeiro mártir!
O Segundo Sexo - 26. Fatos e Mitos: muitas vezes, ela esgota-se na luta
O Segundo Sexo - 27. Fatos e Mitos: a mulher... volta a ser duramente escravizada
O Segundo Sexo - 28. Fatos e Mitos: dava preferência às mulheres casadas...
O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos
O Segundo Sexo - 30. Fatos e Mitos: e o direito de voto é concedido
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 31. Fatos e Mitos: faz da mulher casada uma morta cívica
O Segundo Sexo - 32. Fatos e Mitos: "Com saias, que quer que se faça?"
O Segundo Sexo - 34. Fatos e Mitos: "Agradecemos a Deus por ter criado a mulher."
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