sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O Segundo Sexo - 34. Fatos e Mitos: "Agradecemos a Deus por ter criado a mulher."

Simone de Beauvoir



34. Fatos e Mitos


Terceira Parte
Os Mitos

CAPITULO I


V




" 'Agradecemos a Deus por ter criado a mulher.' "




A HISTÓRIA mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro. Esta condição servia os interesses dos homens, mas convinha também a suas pretensões ontológicas e morais. Desde que o sujeito busque afirmar-se, o Outro, que o limita e nega, é-lhe entretanto necessário: ele só se atinge através dessa realidade que ele não é. Por isso, a vida do homem nunca é plenitude e repouso, ela é carência e movimento, é luta. Diante de si, o homem encontra a Natureza; tem possibilidade de dominá-la e tenta apropriar-se dela. Mas ela não pode satisfazê-lo. Ou ela só se realiza como uma oposição puramente abstrata e é então obstáculo e permanece alheia, ou se dobra passivamente ao desejo do homem e deixa-se assimilar por ele; ele só a possui consumindo-a, isto é, destruindo-a. Nesses dois casos, ele continua só; está só quando toca uma pedra, só quando digere um fruto. Só há presença do outro se o outro é ele próprio presente a si; isso significa que a verdadeira alteridade é a de uma consciência separada da minha idêntica a ela. É a existência dos outros homens que tira o homem de sua imanência e lhe permite realizar a verdade de seu ser, realizar-se como transcendência, como fuga para o objeto, como projeto. Mas essa liberdade alheia, que confirma minha liberdade, entra também em conflito com ela: é a tragédia da consciência infeliz; toda consciência aspira a colocar-se como sujeito soberano. Toda consciência tenta realizar-se reduzindo a outra à escravidão. Mas o escravo no seu trabalho e no seu medo sente-se, ele também, como essencial e em virtude de uma reviravolta dialética é o senhor que a ele se apresenta como inessencial. O drama pode ser resolvido pelo livre reconhecimento de cada indivíduo no outro, cada qual pondo, a um tempo, a si e ao outro como objeto e como sujeito em um movimento recíproco. Mas a amizade e a generosidade que realizam concretamente esse reconhecimento das liberdades, não são virtudes fáceis; são seguramente a mais alta realização do homem e, desse modo, é que ele se encontra em sua verdade: mas essa verdade é a de uma luta incessantemente esboçada e abolida. Ela exige que o homem se supere a cada instante. Pode-se dizer também, numa outra linguagem, que o homem atinge uma atitude autenticamente moral quando renuncia a ser para assumir sua existência; com essa conversão, ele renuncia também a toda posse, porque a posse é um modo de procura do ser; mas a conversão pela qual ele atinge a verdadeira sabedoria nunca se completa, é preciso fazê-la sem cessar, ela reclama uma tensão constante. De maneira que, incapaz de se realizar na solidão, o homem em suas relações com seus semelhantes acha-se permanentemente em perigo: sua vida é uma empresa difícil cujo êxito nunca se encontra assegurado.

Mas ele não aprecia a dificuldade; teme o perigo. Contraditoriamente, aspira à vida e ao repouso, à existência e ao ser; sabe muito bem que "a inquietação do espírito" é o preço que tem de pagar pelo seu desenvolvimento, que sua distância em relação ao objeto é o que lhe custa sua presença em si: mas êle sonha com a quietude na inquietude e com uma plenitude opaca que a consciência habitaria contudo. Esse sonho encarnado é precisamente a mulher; ela é o intermediário desejado entre a natureza exterior ao homem e o semelhante que lhe é por demais idêntico (1). Ela não lhe opõe nem o silêncio inimigo da Natureza, nem a dura exigência de um reconhecimento recíproco; por um privilégio único, ela é uma consciência e no entanto parece possível possuí-la em sua carne. Graças a ela, há um meio de escapar à implacável dialética do senhor e do escravo, que tem sua base na reciprocidade das liberdades. 


(1) "... A mulher não é a repetição inútil do homem, mas sim o lugar encantado em que se realiza a aliança viva do homem com a Natureza. Se desaparecer, os homens ficarão sós, estrangeiros sem passaporte em um mundo glacial. Ela é a própria terra elevada ao cimo da vida, e a terra tornada sensível e alegre; e, sem ela, a terra é para o homem muda e morta", escreve Michel Carrouges ("Les pouvoirs de Ia femme", Cahiers du Sud, n.º 292).


Viu-se que não houve, a princípio, mulheres livres que os homens teriam escravizado e que nunca a divisão dos sexos criou uma divisão em castas. Assimilar a mulher ao escravo é um erro. Houve mulheres entre os escravos, mas sempre existiram mulheres livres, isto é, revestidas de dignidade religiosa e social; elas aceitavam a soberania do homem e este não se sentia ameaçado por uma revolta que o pudesse transformar, por sua vez, em objeto. A mulher apresentava-se assim como o inessencial que nunca retorna ao essencial, como o Outro absoluto, sem reciprocidade. Todos os mitos da criação exprimem essa convicção preciosa do macho e, entre outras, a lenda do Gênese que, através do cristianismo, se perpetuou na civilização ocidental. Eva não foi criada ao mesmo tempo que o homem; não foi fabricada com uma substância diferente, nem como o mesmo barro que serviu para moldar Adão: ela foi tirada do flanco do primeiro macho. Seu nascimento não foi autônomo; Deus não resolveu espontaneamente criá-la com um fim em si e para ser por ela adorado em paga: destinou-a ao homem. Foi para salvar Adão da solidão que ele lhe deu, ela tem no esposo sua origem e seu fim; ela é seu complemento no modo do inessencial. E assim ela surge como uma presa privilegiada. É a natureza elevada à transparência da consciência, uma consciência naturalmente submissa. E é essa maravilhosa esperança que muitas vezes o homem pôs na mulher. Ele espera realizar-se como ser possuindo carnalmente um ser e ao mesmo tempo que consegue confirmar-se em sua liberdade através de uma liberdade dócil. Nenhum homem consentiria em ser uma mulher, mas todos desejam que haja mulheres. "Agradecemos a Deus por ter criado a mulher." "A Natureza é boa demais, pois deu a mulher aos homens." Nessas frases, e outras análogas, o homem afirma uma vez mais com arrogante ingenuidade que sua presença neste mundo é um fato inelutável e um direito, enquanto a da mulher é um simples acidente: um bem-aventurado acidente. Aparecendo como o Outro, a mulher aparece ao mesmo tempo como uma plenitude de ser em oposição a essa existência cujo vazio o homem sente em si; o Outro, sendo posto como objeto aos olhos do sujeito, é posto como em si, logo como ser. Na mulher encarna-se o nada que o existente traz no coração, e é procurando alcançar-se através dela que o homem espera realizar-se.

Entretanto, ela não representou, para ele, a única encarnação do Outro, e nem sempre conservou, no decorrer dos tempos, a mesma importância. Houve momentos em que foi eclipsada por outros ídolos. Quando a Cidade, o Estado devoram o cidadão, este não tem mais a possibilidade de se ocupar de seu destino particular. Destinada ao Estado, a espartana tem uma condição superior à das outras mulheres gregas, mas não é por isso mesmo transfigurada por nenhum sonho masculino. O culto do chefe seja ele Napoleão, Mussolini, Hitler, exclui qualquer outro culto. Nas ditaduras militares, nos regimes totalitários, a mulher não é mais um objeto privilegiado. Compreende-se que seja divinizada num país rico e cujos habitantes não sabem muito bem que sentido dar à vida: é o que ocorre na América do Norte. Em compensação, as ideologias socialistas que exigem a assimilação de todos os seres humanos não admitem que no futuro, e mesmo desde o presente, qualquer categoria humana seja objeto ou ídolo. Na sociedade autenticamente democrática que profetiza Marx não há lugar para o Outro. Entretanto, poucos homens coincidem exatamente como o soldado, o militante que escolheram ser; na medida em que se conservam indivíduos, a mulher guarda a seus olhos um valor singular. Vi cartas escritas por soldados alemães a prostitutas francesas, nas quais, a despeito do nazismo, o sentimentalismo tradicional se evidenciava ingenuamente vivaz. Escritores comunistas como Aragon na França, Vittorini na Itália, dão em suas obras um lugar de grande importância à mulher, amante ou mãe. Talvez o mito da mulher se extinga um dia: quanto mais se afirmam como seres humanos mais definha nelas a maravilhosa qualidade do Outro. Mas, atualmente, esse mito ainda existe no coração de todos os homens.

Todo mito implica um Sujeito que projeta suas esperanças e seus temores num céu transcendente. As mulheres, não se colocando como Sujeito, não criaram um mito viril em que se refletissem seus projetos; elas não possuem nem religião nem poesia que lhes pertençam exclusivamente; é ainda através dos sonhos dos homens que elas sonham. São os deuses fabricados pelos homens que elas adoram. Estes forjaram para sua própria exaltação as grandes figuras viris: Hércules, Prometeu, Parsifal; no destino desses heróis a mulher tem apenas um papel secundário. Sem dúvida, existem imagens estilizadas do homem enquanto preso a suas relações com a mulher: pai, sedutor, marido ciumento, bom filho, mau filho; mas foram  igualmente os homens que as fixaram e elas não atingem a dignidade do mito: não passam, por assim dizer, de clichês. Ao passo que a mulher é exclusivamente definida em relação ao homem. A assimetria das duas categorias, masculina e feminina, manifesta-se na constituição unilateral dos mitos sexuais. Diz-se, por vezes, "o sexo" para designar a mulher; é porque ela é a carne com suas delícias e seus perigos. Quanto ao fato de, para a mulher, ser o homem o sexual e o carnal, é uma verdade que nunca foi proclamada porque não houve ninguém para a proclamar. A representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta.

É sempre difícil descrever um mito; ele não se deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca postar-se diante delas como um objeto imóvel. É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atená, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a que cura e a que enfeita; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser.

"Ser mulher, diz Kierkegaard, em Etapas no Caminho da Vida, é algo tão estranho, tão complexo, tão complicado que nenhum predicado consegue exprimi-lo e que os múltiplos predicados que desejaríamos empregar se contradiriam de tal modo que só uma mulher o pode suportar." Isso decorre do fato de que ela não é considerada positivamente, tal qual é para si, mas negativamente, tal qual se apresenta ao homem. Pois, se há outros Outro, ela continua contudo sempre definida como Outro. E sua ambiguidade é a da própria ideia de Outro: é a da condição humana enquanto se define na sua relação com o Outro. Já se disse: o Outro é o Mal; mas, necessário ao Bem, retorna ao Bem. É por ele que ascendo ao Todo, mas é por ele que me separo do Todo: é a porta do infinito e a medida de minha finidade. É por isso que a mulher não encarna nenhum conceito imoto; através dela realiza-se sem cessar a passagem da esperança ao malogro, do ódio ao amor, do bem ao mal, do mal ao bem. Sob qualquer aspecto que se considere é essa ambivalência que impressiona primeiramente.

O homem procura na mulher o Outro como Natureza e como seu semelhante. Mas conhecemos os sentimentos ambivalentes que a Natureza inspira ao homem. Ele a explora, mas ela o esmaga, ele nasce dela e morre nela; é a fonte de seu ser e o reino que ele submete à sua vontade; uma ganga material em que a alma se encontra presa, e é a realidade suprema; é a contingência e a ideia, a finidade e a totalidade; é o que se opõe ao Espírito e o próprio espírito. Ora aliada, ora inimiga, apresenta-se como o caos tenebroso de que surde a vida, como essa vida, e como o além para o qual tende: a mulher resume a natureza como Mãe, Esposa, e Ideia. Essas figuras ora se confundem e ora se opõem, e cada uma delas tem dupla face. O homem mergulha suas raízes na Natureza: foi engendrado como os animais e as plantas, sabe que só existe enquanto vive. Mas, desde o advento do patriarcado, a Vida revestiu a seus olhos um duplo aspecto: ela é consciência, vontade, transcendência e espírito; e é matéria, passividade, imanência e carne. Esquilo, Aristóteles, Hipócrates proclamaram que na terra, como no Olimpo, é o princípio masculino que é verdadeiramente criador. Dele saíram a forma, o número, o movimento. Com Deméter multiplicam-se as espigas, mas a origem da espiga e sua verdade está em Zeus; a fecundidade da mulher é encarada tão-somente como uma virtude passiva. Ela é a Terra e o homem, a semente, ela é a Água e ele, o Fogo. A criação foi amiúde imaginada como um casamento do fogo com a água: é a unidade quente que dá nascimento aos seres vivos. O Sol é o esposo do Mar (2); Sol e Fogo são divindades masculinas; o Mar é um dos símbolos maternos mais universais. Inerte, a água sofre a ação dos raios flamejantes que a fertilizam. Da mesma forma, a gleba entalhada pelo arado recebe, imóvel, as sementes em seus sulcos. Entretanto seu papel é necessário: é ela que alimenta o germe, que o nutre e lhe fornece sua substância. Eis por que, mesmo depois de destronada a Grande-Mãe, o homem continua a render um culto às deusas da fecundidade (3); ele deve a Cibele suas colheitas, seus rebanhos, sua prosperidade. Deve-lhe a própria vida. Ele exalta a água assim como o fogo. "Glória ao mar! Glória às suas vagas envoltas em fogo sagrado! Glória à onda! Glória ao fogo! Glória à estranha aventura!", escreve Goethe no Segundo Fausto. Ele venera a terra: The matron Clay como a chama Blake. Um profeta indiano aconselha seus discípulos a não cavar a terra porque "é um pecado ferir ou cortar, dilacerar nossa mãe comum com trabalhos agrícolas. . . Irei armar-me de uma faca para mergulhá-la no seio de minha mãe. . . Irei mutilar-lhe as carnes para arrancar-lhe os ossos? Como ousaria cortar os cabelos de minha mãe?" Na índia Central, os Baja também consideram que é um pecado "dilacerar o seio da terra-mãe com o arado". Inversamente Esquilo diz de Édipo que "ousou semear o sulco sagrado em que se formara". Sófocles fala dos "sulcos paternos" e do "lavrador, dono de um campo longínquo que só visita uma vez na época da semeadura". A bem-amada de uma canção egípcia declara: "Eu sou a Terra!" Nos textos islâmicos a mulher é chamada "campo... vinha". São Francisco de Assis, em um de seus hinos, fala de "nossa irmã, a Terra, nossa mãe, que nos conserva e de nós cuida, que produz os mais variados frutos e as flores multicores e a relva". Michelet tomando banhos de lama em Acqui exclama: "Querida mãe comum! Somos um. Venho de ti e a ti retorno!. . ." E há mesmo épocas em que se afirma um romantismo vitalista que aspira ao triunfo da Vida sobre o Espírito: então a fertilidade mágica da terra, da mulher, se apresenta como mais maravilhosa do que as operações projetadas do homem; e o homem sonha então com se confundir novamente com as trevas maternas para reencontrar as fontes verdadeiras de seu ser. A mãe é a raiz plantada nas profundezas do cosmo e que suga os sucos, é a nascente de que jorra a água viva que é também um leite nutriz, uma cálida fonte, uma lama feita de terra e água, rica de forças regeneradoras(4).


(2) Mar, no caso, é feminino (N. do T.). 

(3) "É a terra que cantarei, mãe universal de sólidos alicerces, venerável avó que nutre sobre o seu solo tudo o que existe", diz um hino homérico. Esquilo também glorifica a terra que "engendra todos os seres, nutre-os e deles recebe de novo o germe fecundo".

(4) "Ao pé da letra, a mulher é Ísís, a Natureza fecunda. Ela é o rio e o leito do rio, a raiz e a rosa, a terra e a cerejeira, a cepa e a uva" (M. Carrouges, Artigo citado).


Porém mais generalizada é no homem a revolta contra sua condição carnal; ele considera-se um deus destronado; sua maldição está em ter caído de um céu luminoso e se ter formado nas trevas caóticas do ventre materno. Esse fogo, esse sopro ativo e puro em que ele aspira a se reconhecer, a mulher o mantém prisioneiro na lama da terra. Ele se desejaria necessário como uma pura Ideia, como o Um, o Todo, o Espírito Absoluto; e encontra-se encerrado em um corpo limitado, em um lugar e um tempo que não escolheu, a que não era chamado, inútil, incômodo, absurdo. A contingência carnal é a de seu próprio ser que sofre em seu desamparo, em sua injustificável gratuidade. Ela impõe-lhe igualmente a morte. Essa gelatina trêmula que se elabora na matriz (a matriz secreta e fechada como um túmulo) evoca demasiado a mole viscosidade da carniça para que dela não se afaste com arrepios. Por toda parte onde a vida se vai criando, germinação, fermentação, ela provoca repugnância porque só se faz em se desfazendo; o embrião visguento abre o ciclo que se fecha com a podridão da morte. Por ter horror à gratuidade e à morte, o homem abomina ter sido engendrado; gostaria de renegar suas ligações animais; em consequência de seu nascimento a Natureza assassina e domina. Entre os primitivos, o parto é cercado dos mais severos tabus; a placenta, em particular, deve ser cuidadosamente queimada ou jogada ao mar, pois quem quer que dela se apossasse teria nas mãos o destino do recém-nascido; essa ganga em que se formou o feto é o sinal de sua dependência; aniquilando-a, dá-se ao indivíduo a possibilidade de se desprender do magna vivo e realizar-se como ser autônomo. A mácula do nascimento recai na mãe. O Levítico e todos os códigos antigos impõem ritos purificadores à parturiente; e em muitas regiões rurais a cerimônia da purificação é conservada tradicionalmente. Conhece-se o embaraço espontâneo, embaraço que se mascara por vezes de escárnio, que sentem as crianças, as jovens, os homens diante do ventre de uma mulher grávida, dos seios intumescidos de uma nutriz. Nos museus Dupuytren, os curiosos contemplam os embriões de cera e os fetos em conserva com um interesse tão mórbido que os levaria a violar sepulturas. Através de todo o respeito de que a cerca a sociedade, a função da gestação inspira uma repulsa espontânea. E se o menino, na sua primeira infância, continua sensualmente ligado à carne materna, quando cresce, se socializa e toma consciência de sua existência individual, essa carne lhe inspira medo; ele quer ignorá-la e ver na mãe tão-sòmente uma pessoa moral; se procura imaginá-la casta e pura é menos por ciúme amoroso do que por recusa em lhe reconhecer um corpo. Um adolescente perturba-se, enrubesce, se, passeando com seus colegas, encontra a mãe, as irmãs, mulheres de sua família; é que a presença delas impele-o para as regiões da imanência de onde desejaria sair; elas revelam as raízes de que gostaria de se libertar. A irritação do meninote quando a mãe o acarinha e beija tem o mesmo sentido; ele renega a família, a mãe, o seio materno. Desejaria, como Atená, ter surgido no mundo adulto, armado dos pés à cabeça, invulnerável(5). Ter sido concebido e parido é a maldição que pesa sobre seu destino, a impureza que se cola a seu ser. E é o sinal de sua morte. O culto da germinação sempre se associou ao culto dos mortos. A Terra-Mãe encerra em seu seio as ossadas de seus filhos. São as mulheres — Parcas e Moiras — que tecem o destino humano; mas são elas igualmente que cortam os fios. Na maioria das representações populares, a morte é mulher, e é às mulheres que cabe chorar os mortos, porquanto a morte é obra sua (6).


(5) Ver, adiante, nosso estudo sobre Montherlant que encarna de maneira exemplar essa atitude. 

(6) Deméter é o tipo da mater dolorosa. Mas outras deusas — Ichtar, Ártemis — são cruéis. Cali traz, na mão, um crânio cheio de sangue. "As cabeças de teus filhos mortos recentemente pendem de teu pescoço como um colar. . . Tua forma é bela como a das nuvens que trazem a chuva, teus pés estão encharcados de sangue", diz a ela um poeta indiano. 


Tem, assim, a Mulher-Mãe um rosto de trevas: ela é o caos de que tudo saiu e ao qual tudo deve voltar um dia; ela é o Nada. Dentro da Noite confundem-se os múltiplos aspectos do mundo que o dia revela: noite do espírito encerrado na generalidade e na opacidade da matéria, noite do sono e do nada. No fundo do mar impera a noite: a mulher é o Mare tenebrarum temido dos antigos navegadores; a noite impera nas entranhas da terra. Essa noite pela qual o homem receia ser tragado, e que é o inverso da fecundidade, apavora-o. Ele aspira ao céu, à luz, aos picos ensolarados, ao frio puro e cristalino do azul; e, a seus pés, há um abismo úmido e quente, obscuro, pronto para abocanhá-lo; numerosas lendas mostram-nos o herói que se perde para sempre recaindo nas trevas maternas: caverna, abismo, inferno.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:

O Segundo Sexo - 28. Fatos e Mitos: dava preferência às mulheres casadas...

O Segundo Sexo - 29. Fatos e Mitos: a vida era então uma série ininterrupta de partos

O Segundo Sexo - 30. Fatos e Mitos: e o direito de voto é concedido

O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?

O Segundo Sexo - 31. Fatos e Mitos: faz da mulher casada uma morta cívica

O Segundo Sexo - 32. Fatos e Mitos: "Com saias, que quer que se faça?"

O Segundo Sexo - 33. Fatos e Mitos: seu ser-para-os-homens é sua condição concreta

O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo



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