quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (01)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



ESTADOS UNIDOS, VISTO EM FOTOS, DE UM ÂNGULO SOMBRIO




Quando Walt Whitman contemplava o panorama democrático da cultura, tentava enxergar além da diferença entre beleza e feiura, importância e trivialidade. Parecia-lhe servil ou esnobe fazer qualquer discriminação de valor, exceto as mais generosas. O nosso mais audaz e delirante profeta da revolução cultural estabeleceu sérias exigências de honestidade. Ninguém se incomodaria com a beleza e com a feiura, sugeriu ele, se aceitasse um abraço suficientemente amplo do real, da inclusividade e da vitalidade da verdadeira experiência americana. Todos os fatos, mesmo os mesquinhos, são incandescentes nos Estados Unidos de Whitman — esse espaço ideal, tornado real por força da história, onde “os fatos, ao emitirem si mesmos, são regados com luz”.

A Grande Revolução Cultural Americana anunciada no prefácio da primeira edição de Folhas das folhas de relva (1855) não se cumpriu, o que frustrou muitos mas não surpreendeu ninguém. Um grande poeta não pode, sozinho, mudar o clima moral; mesmo quando o poeta tem milhões de Guardas Vermelhos a seu dispor, isso ainda não é fácil. Como qualquer profeta de uma revolução cultural, Whitman pensava discernir que a arte já fora superada, e desmistificada, pela realidade. “Os próprios Estados Unidos a partir da Segunda Guerra Mundial, o ditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeira experiência americana gorou. Ao fotografar anões, não se obtêm majestade e beleza. Obtêm-se anões.


Nas primeiras décadas da fotografia, esperava-se que as fotos fossem imagens idealizadas. Ainda é esse o objetivo da maioria dos fotógrafos amadores, para quem uma bela foto é uma foto de algo belo, como uma mulher, um pôr do sol. Em 1915, Edward Steichen fotografou uma garrafa de leite na saída de emergência de um prédio, um exemplo remoto de um conceito totalmente distinto do que é uma foto bela. E desde a década de 1920, profissionais ambiciosos, aqueles cuja obra alcança os museus, afastaram-se resolutamente dos temas líricos, explorando de forma conscienciosa um material comum, vulgar ou mesmo insípido. Em décadas recentes, a fotografia conseguiu, em certa medida, promover uma revisão, para todos, das definições do que é belo e do que é feio — na linha proposta por Whitman. Se (nas palavras de Whitman) “todo objeto ou condição ou combinação ou processo exibe uma beleza”, torna-se superficial privilegiar certas coisas como belas e outras não. Se “tudo o que uma pessoa faz ou pensa é relevante”, torna-se arbitrário tratar alguns momentos da vida como importantes e a maioria como triviais.

Fotografar é atribuir importância. Provavelmente não existe tema que não possa ser embelezado; além disso, não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, de conferir valor a seus temas. O significado do próprio valor pode ser alterado — como tem ocorrido na cultura contemporânea da imagem fotográfica, que é uma paródia do evangelho de Whitman. Nos palacetes da cultura pré-democrática, uma pessoa fotografada é uma celebridade. Nos campos abertos da experiência americana, como Whitman a catalogou com entusiasmo, e como Warhol a avaliou com pouco-caso, todo mundo é uma celebridade. Nenhum momento é mais importante do que outro, ninguém é mais interessante do que qualquer outra pessoa.

A epígrafe de um livro de fotos de Walker Evans, publicado pelo Museu de Arte Moderna, é um trecho de Whitman que parece o tema da mais prestigiosa aspiração da fotografia americana:



Não tenho dúvida de que a majestade e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo [...]. Não tenho dúvida de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha.


Whitman não pensava estar abolindo a beleza, mas generalizando-a. Assim fez, durante várias gerações, a maioria dos fotógrafos americanos em sua polêmica busca do trivial e do vulgar. Mas, entre os fotógrafos americanos que amadureceram a partir da Segunda Guerra Mundial, o ditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeira experiência americana gorou. Ao fotografar anões, não se obtêm majestade e beleza. Obtêm-se anões.A partir das imagens reproduzidas e consagradas na luxuosa revista Camera Work, que Alfred Stieglitz publicou entre 1903 e 1917, e expostas na galeria por ele dirigida, em Nova York, entre 1905 e 1917, no número 291 da Quinta Avenida (primeiro chamada de Little Gallery of the Photo-Secession e depois, apenas de “291”) — revista e galeria que constituíram o fórum mais ambicioso dos juízos whitmanianos —, a fotografia americana passou da afirmação para a erosão e, por fim, para uma paródia do programa de Whitman. Nessa história, a figura mais edificante é Walker Evans. Foi o último grande fotógrafo a trabalhar de forma séria e confiante num estado de ânimo derivado do humanismo eufórico de Whitman, recapitulando o que ocorrera antes (por exemplo, as espantosas fotos de imigrantes e de trabalhadores tiradas por Lewis Hine), antecipando boa parte da fotografia mais fria, mais rude, mais seca, feita a partir daí — como na prenunciadora série de fotos “secretas” de passageiros anônimos do metrô de Nova York, tiradas por Evans com uma câmera oculta entre 1939 e 1941. Mas Evans rompeu com o estilo heroico em que a visão whitmaniana fora divulgada por Stieglitz e seus discípulos, que desdenhavam Hine. Evans julgava rebuscado o trabalho de Stieglitz.

Como Whitman, Stieglitz não via contradição entre fazer da arte um instrumento de identificação com a comunidade e engrandecer o artista como um ego heroico, romântico e autoexpressivo. Em seu rebuscado e esplêndido livro de ensaios Port of New York (1924), Paul Rosenfeld aclamou Stieglitz como um “dos grandes afirmadores da vida. Não existe, em todo o mundo, nenhum tema tão tosco, banal e humilde que esse homem da caixa preta e do banho químico não consiga utilizar para expressar-se por inteiro”. Fotografar, e por conseguinte redimir o tosco, o banal e o humilde, é também um modo engenhoso de expressão individual. “O fotógrafo”, escreve Rosenfeld a respeito de Stieglitz, “lançou a rede do artista sobre o mundo material com mais largueza do que qualquer outro homem, antes ou junto dele.” A fotografia é um tipo de hipérbole, uma cópula heroica com o mundo material. A exemplo de Hine, Evans buscava um tipo mais impessoal de afirmação, uma reticência nobre, um lúcido subentendido. Nem nas impessoais naturezas-mortas arquitetônicas das fachadas americanas e nos inventários de cômodos que ele adorava fazer, nem nos retratos rigorosos de meeiros sulistas que ele tirou no final na década de 1930 (publicados no livro feito com James Agee, Let us now praise famous men [Agora vamos louvar homens famosos]) Evans tentava expressar a si mesmo.

Mesmo sem a inflexão heroica, o projeto de Evans ainda descende do de Whitman: o nivelamento das discriminações entre o belo e o feio, entre o importante e o trivial. Cada coisa ou pessoa fotografada se torna — uma foto; e se torna, portanto, moralmente equivalente a qualquer outra de suas fotos. A câ- mera de Evans ressaltava, no exterior das casas vitorianas de Boston no início da década de 1930, a mesma beleza formal que ressaltava nos armazéns das ruas centrais de cidades do Alabama, em 1936. Mas esse era um nivelamento por cima, e não por baixo. Evans queria que suas fotos fossem “cultas, abalizadas, transcendentes”. Como o universo moral da década de 1930 não é mais o nosso, tais adjetivos são, hoje, muito pouco confiáveis. Ninguém exige que a fotografia seja culta. Ninguém consegue imaginar como ela poderia ser abalizada. Ninguém compreende como qualquer coisa, muito menos uma foto, poderia ser transcendente.

Whitman preconizava a empatia, a concórdia na discórdia, a unidade na diversidade. O intercurso psíquico com tudo e com todos — e mais a união sensual (quando ele a conseguia) — é a grande viagem explicitamente proposta, vezes sem conta, nos prefácios e nos poemas. Essa ânsia de seduzir o mundo inteiro também determinou o tom e a forma de sua poesia. Os poemas de Whitman são uma tecnologia psíquica para encantar o leitor e levá-lo a um novo modo de ser (um microcosmo da “nova ordem” conjeturada para a sociedade); eles são funcionais, como mantras — maneiras de transmitir cargas de energia. A repetição, a cadência bombástica, os versos encadeados e a dicção atrevida constituem um ímpeto de inspiração secular, destinado a erguer fisicamente os leitores no ar, impeli-los para aquela altura onde são capazes de se identificar com o passado e com a comunidade do desejo americano. Mas essa mensagem de identificação com outros americanos é, hoje, estranha ao nosso temperamento.

O último suspiro do abraço erótico whitmaniano à nação, mas universalizado e despido de todas as exigências, foi ouvido em The Family of Man [A família do homem], exposição organizada em 1955 por Edward Steichen, contemporâneo de Stieglitz e cofundador da galeria Photo-Secession. Quinhentas e três fotos de 273 fotógrafos de 68 países deveriam convergir — a fim de provar que a humanidade é “una” e que os seres humanos, a despeito de todas as suas falhas e vilanias, são criaturas atraentes. As pessoas nas fotos eram de todas as raças, idades, classes, tipos físicos. Muitas tinham corpos excepcionalmente belos; algumas tinham rostos belos. Assim como Whitman exortava os leitores de seus poemas a identificar-se com ele e com os Estados Unidos, Steichen organizou a exposição de modo a permitir que cada espectador se identificasse com muitos dos povos retratados e, potencialmente, com o tema de todas as fotos: cidadãos da Fotografia Mundial, todos.

A fotografia só voltou a atrair ao Museu de Arte Moderna multidões semelhantes àquelas dezessete anos depois, para a retrospectiva da obra de Diane Arbus, em 1972. Na exposição de Arbus, 112 fotos tiradas por uma só pessoa, e todas semelhantes — ou seja, todas as pessoas nas fotos têm (de certo modo) a mesma aparência —, impunham um sentimento exatamente oposto ao afeto tranquilizador do material apresentado por Steichen. Em vez de pessoas cuja aparência agradava, gente representativa a cumprir seus honrados afazeres humanos, a exposição de Arbus perfilava monstros seletos e casos extremos — na maioria, feios; com roupas grotescas ou degradantes; em ambientes desoladores ou áridos — que se haviam detido para posar e, muitas vezes, para olhar com franqueza, com segurança, para o espectador. A obra de Arbus não solicita aos espectadores que se identifiquem com os párias e pessoas de aspecto miserável que ela fotografou. A humanidade não é “una”.

As fotos de Arbus transmitem a mensagem anti-humanista cujo impacto perturbador as pessoas de boa vontade, na década de 1970, queriam avidamente sentir, do mesmo modo como, na década de 1950, desejavam ser consoladas e distraídas por um humanismo sentimental. Não há entre essas mensagens tanta diferença como se poderia imaginar. A exposição de Steichen voltou-se para cima, e a de Arbus para baixo, mas as duas experiências servem igualmente para impedir a compreensão histórica da realidade.

A seleção de fotos de Steichen supõe uma condição humana, ou uma natureza humana, partilhada por todos. Ao proclamar a intenção de mostrar que os indivíduos, em toda parte, nascem, trabalham, riem e morrem do mesmo modo, The Family of Man nega o peso determinante da história — das diferenças, das injustiças e dos conflitos genuínos, historicamente enraizados. As fotos de Arbus solapam a política de um modo igualmente decisivo, ao sugerir um mundo em que todos são forasteiros, inapelavelmente isolados, imobilizados em identidades e relacionamentos mecânicos e estropiados. A elevação piedosa da antologia fotográfica de Steichen e o frio abatimento da retrospectiva de Arbus tornam irrelevantes a história e a política. Um o faz ao universalizar a condição humana, na alegria; o outro, ao atomizá-la, no horror.

O aspecto mais impressionante da obra de Arbus é que ela parece ter se engajado em uma das mais vigorosas empreitadas da arte fotográfica — concentrar-se nas vítimas, nos desgraçados —, mas sem servir ao propósito compassivo que se espera de tal projeto. Sua obra mostra pessoas patéticas, lamentáveis, bem como repulsivas, mas não desperta nenhum sentimento de compaixão. Mediante o que se poderia definir mais corretamente como seu ponto de vista dissociado, as fotos foram elogiadas por sua franqueza e por uma empatia não sentimental com seus temas. Aquilo que constitui de fato sua agressividade contra o público foi tratado como uma proeza moral: as fotos não permitem que o espectador se mantenha distante do tema. De modo mais plausível, as fotos de Arbus — com sua aceitação do horrível — sugerem uma ingenuidade que é, ao mesmo tempo, tímida e sinistra, pois se baseia na distância, no privilégio, num sentimento de que aquilo que o espectador é solicitado a ver é de fato outro. Buñuel, quando indagado, certa feita, sobre o motivo por que fazia filmes, respondeu que era “para mostrar que este não é o melhor dos mundos possíveis”. Arbus tirou fotos para mostrar algo mais simples — que existe outro mundo.






continua...





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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