terça-feira, 7 de janeiro de 2020

tempo é história: Calçacurta: 3A - o dente siso inflamado

CalçaCurta

novela


o dente siso inflamado
3A - 4ª ed

baitasar



não cheguei lá, mas andei perto, não precisei matar nenhum comunista de merda  nunca tive licença para aniquilar o inimigo , acho que foi melhor assim, pra mim e pra eles, esse é um caminho sem volta, quando se pisa no lodo sangrento não tem como limpar as botas do sangue dessa gente arruaceira, sangue é sangue, é impossível se desatar do ensanguentado

não gosto de vagabundo, amotinador, baderneiro e desordeiro nem do choro de desespero, de qualquer maneira, esse tempo de pesadelos não vai acabar, sempre vamos ter gente ingênua que acredita que somos todos iguais, irmãos que devem amar uns aos outros...

...isso é coisa de viado, No fim, e ao cabo do pesadelo comunista, a gente de bem sempre virá buscar socorro e conselho com a gente do Senhor

a história se repete, é só prestar atenção

eu, da minha parte, sempre fui leal e acreditei no calçacurta, cresci na linha de montagem do serviço, já sou maior que esses merdinhas lá pra baixo que vivem rente onde o gado deve estar comendo, mereço mais respeito, Isso nos deixa parecidos, Não entendi, Xupa-racha... 

esse é o calçacurta que eu conheci, sempre se fazendo de desentendido pra ganhar sapato novo 

Eu também tenho em quem mandar e exigir obediência, Senhor. 

Ah... e qual a importância dessas ordens?

Tenho governo sobre a vontade do Jacaré. Esse é boa gente. O Senhor não chegou a conhecer. Acho que gostaria de mandar neste. É mais um daqueles sem ideias que não inventam nem modificam. Lembra dos seus discursos convocatórios? Nunca esqueci: Eu exijo obediência que cega!, pois com ele não ressoam os clarins da traição. Só precisa de algum comando pra cumprir às ordens dadas – é só mais uma criança amarrada ao pé da mesa, pouco afeita a viver longe do pé da mesa –, mas basta colocar chumbo, pólvora e um alvo na mira que muda do vinagre pra vinho. Volta e meia, meia-volta, quase sempre preciso mostrar a ele se agiu certo. Não é preciso ensinar a pensar, está sempre de prontidão. 

Ainda bem, isso é bom...

Ele já nasceu sabendo que é o mínimo que espero dele: cumprir as ordens de modo valente, sem resistências ou frouxidão. Ordens são ordens, bonecos são bonecos, arapongas são arapongas, não precisam conversar, não entendem nada. É qualidade que vem do berço, o sujeito tem ou não tem... o Senhor está escutando?

às vezes, acho que falo demais, falo sem pensar, mas logo me corrijo, aprendi com o calçacurta que em boca fechada não entra mosca nem sai cuspe

passei, parte da minha vida – acho que a melhor parte, pelo menos, é assim que decifro minhas lembranças do passado; na verdade, eu sinto que todo aquele esforço não é passado nem presente, impossível explicar essa sensação que a resistência vermelha não tem fim e parece sempre longe do garrote final –, levando e trazendo o senhor do seu serviço delicado de informação e contra-informação, tudo pra encontrar respostas pras suas perguntas, custasse o que custasse

nunca lhe dirigi a palavra sem a convocação pra falar, aprendi com o calçacurta que existe um tempo de silêncio e recolhimento, é o tempo dos reparos, pequenos oásis da gritaria – esse é o tempo que gente comum e simplória canta liberdades que não compreende, não reconhecem quanto foi dura, pungente e implacável a luta contra esses comunistinhas de merda, eu mesmo nunca vi nenhum, só posso acreditar que tanta crueldade e imbecilidade foi pra proteger a família, a pátria amada, acima de todos, e deus acima de tudo, dessa gente cheia de ódio que come as criancinhas, rouba nossas casas e grita que deus não existe

Xupa-racha! Em tempos de calmaria mudam o cardápio e a fé. É quando precisamos estar alertas! A Família sempre!

Sim, Senhor!

bati os calcanhares e olhei retorcido o ataúde, o calçacurta levantou a cabeça, olhou para os lados – cantava na posição do mais puro sentimento, a mão no coração que não pulsava mais havia muito tempo –, parecia preocupado com a própria morte, reconheci aquele olhar desfigurado de pura estupidez, ríspido e rígido de coletor de bolchevista, Na calmaria, começam com murmúrios, depois espalham aos gritos que quem comem as criancinhas são os padres. Tudo lorota, Xupa-racha! Pura maldade. Não se deixe confundir, use a sua intuição e repita comigo...

Repetir o quê, Senhor?

O comunismo é o demônio! Não se torne mais um cego. Não esqueça do essencial...

Sim, Senhor.

... as armas defendem a Família, a Pátria amada e Deus, acima de tudo e todos!

Senhor...

O que foi, Xupa-racha?

Por que Deus precisa de armas?

Não entendeu, Xupa-racha?

Sim, Senhor! Entendido!

bati os calcanhares, adoro o som dos calcanhares se juntando e a energia que brota sólida e tesa, precisei me controlar pra não endurecer as virilhas

Explique-se, Xupa-racha! O que está entendido?!

aprumei o corpo, alinhei o queixo com a testa, não lembro mais quando deixei de reclamar da disciplina do corpo e da mente, só tenho que agradecer ter descoberto a mim mesmo, fui convocado pra falar

Eu entendo, Senhor... que assim como não se pode culpar um exército de guerreiros da fé pelo desertor, também não se julga a fé pelo filho-da-puta do padre comedor de criancinha. Esses comunistas são foda!

Não diga isso, Xupa-racha!

Sim, Senhor!

Foda é uma obrigação boa!

o calçacurta sentou no ataúde, tinha um olhar grave de defunto e um sorriso sinistro nos lábios arroxados

Desculpe, Senhor!

Nunca se desculpe, Xupa-racha! Pedir desculpa é pura viadagem. Mas tenha mais cuidado com esse linguajar desasseado de tropa.

Sim, Senhor!

estirou-se no ataúde forrado com cetim amarelo e coberto até a cintura com flores brancas, não sei que flores são estas, a combinação está perfeita, mas eu sei – não por experiência própria –, pelas histórias dos irmãos, ninguém acaba consigo mesmo no meio da confusão das trincheiras, é na calmaria que a vida fica dura, por sorte, as lutam retornam sob outros pés com botas, mas o inimigo continua o mesmo no curso da vida no mundo, Precisamos de mais calçacurtas como o Senhor! Precisamos desatar os nós destes comunistas. Agora, aqui e sempre! Escutou, Senhor? 

eu sei que o calçacurta que está escutando, isso tudo é fingimento de morto, Não é, Senhor? Não faça isso conosco. Precisamos muito dos seus planos e movimentos quando tudo parece que não tem mais cura.

sinto que tudo foi um engano, fingimento de morto pra fugir um pouco do tédio

Um herói lendário precisa mais que uma espada selvagem, Xupa-racha! Às vezes, precisa fingir-se de morto. Não há no mundo lealdade bastante para que ainda acreditemos que não seremos traídos. Uma vida longa é possível, mas ficar atento é imprescindível. Depois do fingimento, acordamos revigorados.

arrisco um palpite que é quase uma legítima defesa pela dor que causamos: as mortes foram pra prevenir e as mentiras pra proteger as nossas regras, é impossível quererem desarrumar nossas vidas e escaparem ilesos

Sei, bem, Senhor. É preciso vencer a sina de ser incompreendido.

o calçacurta não pareceu discordar do meu palpite, mas dava para sentir que ele continuava ávido pelas reverências da villa, adorava ser temido, nunca vi um gesto seu preocupado com a repressão a antigos aliados que o desagradavam

Não acho que seja uma sina, mas a tristeza de ver que não aprendemos nada com a história: o preço do nosso modo de vida é a eterna vigilância. Cuidar e castigar é um dever cívico.

eu sei bem do assunto, vi de perto essa lenta e gradual luta do bem contra o mal, nunca se termina, depois da revolução será preciso outra e depois mais outra, essa gente não sossega o pinto, brotam como os musgos nas pedras, Nós sabemos disso, não é, Senhor? Sofremos com essa cruz que carregamos da eterna vigilância e não somos compreendidos.

fechei os olhos

não dormi, não

foi uma piscadela e o calçacurta aproveitou pra ficar sentado no ataúde, A incompreensão desses merdinhas dos direitos humanos – ô caralho! direitos da puta que os pariu! – com a missão de proteger e matar se preciso for em nome do nosso jeito de viver em liberdade. O melhor e único jeito de gente de bem.

Eu entendo, Senhor.

Entende... ô caralho!

Calma, Senhor... deite-se... no mundo dos vivos temos muitos jeitos de viver.

Impossível aceitar o feitio desses comunistinhas de merda!

Eu sei, Senhor. Lutamos e matamos para defendermos a nossa aparência de viver em liberdade.

Muito bem, Xupa-racha! Viva e deixe viver o nosso jeito de viver. E não incomodem com jeitos alternativos. É assim, e pronto!

procuro pelo recinto do velório a champanhe e as taças pra um brinde de despedida – o defunto do calçacurta veio do preparo funerário com a devida maquiagem antes da hora combinada –, mas só vejo uma térmica com café e outra com chá

Xupa-racha!

Sim, Senhor!

Estou com comichão. Serão os vermes? Já estou sendo comido?

Com certeza não, Senhor. Mas diga o onde está comichando que eu coço.

Acho melhor não...

argumentei que de puxa-saco pra coça-saco não tem muita diferença, bastava só alimentar a ideia que podia ser pior, o coça-coça poderia não ser no saco

prossegui na teimosia do meu oferecimento, argumentei que só queria ajudar na estreitura do seu sofrimento

O que há de perigoso em coçar?

Não é preciso. É uma comichão moderada.

Mas, Senhor...

Não. Eu prefiro esse meu mau humor que os seus dedos me coçando.

sei que me chamam de despreparado – um joão ninguém raso –, mas não abandono minha missão, ordem dada é ordem executada, doa a quem doer

Posso colocar luvas...

Não. Vamos mudar de assunto... não íamos fazer um brinde?

Isso mesmo, Senhor. Acompanhe o brinde. Mas não esqueça, senhor...

O que, Xupa-racha?

Não existe coceira boa ou má, Senhor. Coceira é só mais uma coceira que precisa ser coçada. Vivemos amarrados uns aos outros.

Eu não estou mais vivo, Xupa-racha.

Eu sei, Senhor. Eu só acho que não tem necessidade do Senhor ficar se desmanchando em coceira.

Xupa-racha! Tem coisa pior que coçar o saco de alguém?

Sim, Senhor!

Você é uma bichona, Xupa-racha?

Não, Senhor! Cruz e credo!

Então, por que essa fixação de coçar o meu saco?

Isso é solidariedade, Senhor! A vida é mais embaraçada e confusa que preto ou branco.

Mas qual vida, Xupa-racha? Preto é preto, branco é branco e morto é morto, não se mistura óleo na água.

o calçacurta tem razão, estou aqui mais pela aparência da gratidão que sirvo de mim aos vivos do que uma solidariedade viva e honesta ao morto, um sujeito mau que se serviu dos bons com tanta safadeza, e não falo dos comunistinhas – esses mereceram cada porrada, choque e desamando –, mas me refiro ao fogo amigo que o calçacurta usou nos aliados, que se dane

O brinde, Senhor...

o calçacurta ergueu a cabeça da almofada vermelha no esquife, olhou à sua volta em silêncio, acho que queria entender o significado de estar morto, Xupa-racha! Será que uma das minhas putas virá? Sirva champanhe! Entendido?

eu desvio do seu olhar mortiço, prefiro mudar o assunto, enfio as mãos nos bolsos procurando cigarros – desisti de não fumar mais, pelo menos, enquanto durar essa vigilância –, não encontro nada, inspeciono a capela funerária do calçacurta, Onde poderia encontrar uma bagana?

vou até o defunto e enfio as mãos nos bolsos do extinto vivo, Quem guarda tem... achei!

O que foi isso, Xupa-racha?

fechei minhas pálpebras como se estivessem coladas, queria me esconder da morte, Não é nada, Senhor...

Como assim, não é nada...

não respondo, que se desmanche

levo a bagana ao faro como um bom entendedor, insuflo com entusiasmo o influxo da maré-cheia daquele perfume caprichado e puro da minha destruição, Amanhã eu paro. Eu controlo isso, acendo a bagana e sento na cadeira de rodas – eu mesmo pedi as duas cadeiras, espero algum velho amigo do calçacurta arrastando os pés durante o féretro até a tumba

uma, duas e três tragadas em silêncio e a bagana se foi, existe um desafio nisso, o exercício do poder sobre si mesmo, e não vou falhar, Aprendi com o Senhor a rir do meu próprio medo, Isso mesmo, Xupa-racha! É assim que um homem de verdade vive.

Senhor, estão faltando alguns castiçais e a cruz da crucificação...

E daí, estou me lixando para essa merda toda.

levei um susto, esse não é o defunto do vivo que eu conheci, de quem é esse defunto? louco, gênio ou farsante? o calçacurta que conheci sempre foi um abnegado pela família, mas em nome da cruz era capaz da vingança mais cruel

Xupa-racha! Nenhuma puta, ainda? Nem a Clara?

o defunto moribundo não parece que mudou, e não se entrega, sabe que passou a oportunidade de render uma ideia por outra sem dramas ou traumas, mas enfim, o que foi feito já está feito

Xupa-racha! Quero ir para o quarto!

Calma, Senhor...

Xupa-racha! Estou dando uma ordem! Obedeça! Quero sair daqui, seu porra louca!

Senhor, o Jacaré ainda não teve tempo de providenciar o embelezamento da vigília de corpo presente já sem a alma.

o morto voltou a descansar a cabeça na almofada vermelha, não mexia mais a boca – amarrei um lenço na queixada, até ficar tudo durinho no lugar –, olhava a sua volta com os olhos fechados – dei um ou dois pinguinhos de cola nas pálpebras, velório com o defunto arregalado não dá, né

Não consigo abrir os olhos, Xupa-racha.

E o Senhor precisa dos olhos? É impossível alguém enxergar mais e melhor que o Senhor. Use os nossos olhos, estamos de prontidão, é só continuar confiando.

quanto sofrimento inútil, eu e o jacaré sabemos como ele se sente, sempre quis saber de tudo, gostava mais de perseguir do que seguir, tudo pessoalmente, sempre foi mais pelo divertimento, o movimento, a gritaria, depois o silêncio

Xupa-racha, tira a porra desse lenço! Não consigo abrir a boca nem sentir o ranger áspero dos dentes!

Não dá, Senhor. Ordens...

Ordens de quem, porra!

Ordens do dentista.

Dentista? Mas que porra é essa?

O siso, Senhor...

Que porra é isso?

O dente siso, Senhor.

E daí, caralho?

O seu dente siso está inflamado e vai incomodar pra mastigar.

o morto voltou a descansar a cabeça, não mexia a boca e olhava à sua volta com os olhos colados; mas ainda assim enxergava mais que os vivo, tudo se remexia nele quando ficava mais exaltado

Xupa-racha...

Sim, Senhor.

Que merda é essa de alma, Xupa-racha?

pensei em avisá-lo que as palavras depois de ditas espontâneas ou sob tortura iriam lhe perseguir pela eternidade da lama, não me pareceu que daria importância

Essa mesma que o Senhor já teve e ficou perdida nos porões quando se decidiu pelo caminho das confissões e revelações com porrada e choque.

Ah, isso... nunca existiu.





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