sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Pedagogia do Oprimido - Ninguém Educa Ninguém (4)

Paulo Freire






“educação como prática da liberdade”:

alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica



O Homem Como Um Ser Inconcluso,
Consciente de Sua Inconclusão, e Seu
Permanente Movimento de Busca 
do SER MAIS (4)





A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade

Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo.

Sua “duração” – no sentido bergsoniano do termo – como processo, está no jogo dos contrários permanência-mudança.

Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança.

Deste modo, a prática “bancária", implicando no imobilismo a que fizemos referência, se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora que, não aceitando um presente “bem comportado”, não aceita igualmente um futuro pré -dado, enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária.

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionária, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa [1]. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” – como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para traz não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Dai que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.


[1] Em Ação Cultural para a libertação, discutimos mais amplamente este sentido profético e esperançoso da educação (ou aço cultural) problematizadora. Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico de tal forma de aço, tomando- se a utopia como a unidade, inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em qu e os homens possam ser mais. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico.


O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos. Mas, como não há homens sem mundo, sem realidade, o movimento parte das relações homens-mundo. Dai que este ponto de partida esteja sempre nos homens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que se encontram ora imersos, ora emersos, ora insertados.

Somente a partir desta situação, que lhes determina a própria percepção que dela estão tendo, é que podem mover-se.

E, para fazê-lo, autenticamente, é necessário, inclusive, que a situação em que estão não lhes apareça
como algo fatal e intransponível, mas como uma situação desafiadora, que apenas os limita.


Enquanto a prática “bancária”, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta ou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens sua situação como problema. Propõe a eles sua situação como incidência de seu ato cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou ingênua que dela tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber- se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la.

Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser trans-formada por eles.

O fatalismo cede, então, seu luga r ao ímpeto de transformação e de busca, de que os homens se sentem sujeitos.

Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres históricos e necessariamente inseridos num movimento de busca, com outros homens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento.

Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta. Não importa os meios usados para esta proibição. Fazê-los objetos é aliená- los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.

Este movimento de busca, porém, só se justifica na medida em que se dirige ao ser mais, à humanização dos homens. E esta, como afirmamos no primeiro capítulo, é sua vocação histórica, contraditada pela desumanização que, não sendo vocação, é viabilidade, constatável na história. E, enquanto viabilidade, deve aparecer aos homens como desafio e não como freio ao ato de buscar.

Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos.

Ninguém pode ser, autenticamente, proibido que os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Precisamente porque é, não pode o ter de alguns converter- se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de poder.

Para a prática "bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar esta situação, mantendo, porém, as consciências imersas nela. Para a educação problematizadora, enquanto um quefazer humanista e libertador, o importante está, em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação.

Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador “bancário”, supera também a falsa consciência do mundo.

O mundo, agora, já não é algo sare que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da aço transformadora dos homens, de que resulte a sua humanização.

Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação não pode servir ao opressor.

Nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”

Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pela sociedade que fez a revolução, isto não significa que a liderança revolucionária espere a chegada ao poder para aplicá-la.

No processo revolucionário, a liderança não pode ser “bancária”, para depois deixa r de sê-lo [2].


[2] No Capítulo IV analisamos detidamente este aspecto, ao discutirmos as teorias antidialógica e dialógica da aço.




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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido

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