sábado, 4 de janeiro de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Primeira Promoção (XXIX - 2)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXIX

A PRIMEIRA PROMOÇÃO




Ele conheceu seu século, conheceu sua região e é rico. 

LE PRÉCURSEUR



continuando...



A carta era breve:

“Livre-se, meu caro senhor, de todos os incômodos da província, venha respirar um ar tranquilo, em Paris. Envio-lhe minha carruagem, que tem a ordem de esperar sua determinação durante quatro dias. Eu mesmo o aguardarei, em Paris, até terça-feira. Só preciso de um sim, da sua parte, para aceitar, em seu nome, uma das melhores paróquias dos arredores de Paris. O mais rico de seus futuros paroquianos jamais o viu, mas é mais devotado ao senhor do que pode imaginar: é o marquês de La Mole”.

Sem que suspeitasse, o severo abade Pirard gostava daquele seminário, povoado de inimigos, e ao qual, há quinze anos, dedicava todos os seus pensamentos. A carta do sr. de La Mole foi para ele como a chegada do cirurgião encarregado de fazer uma operação cruel e necessária. Sua destituição era certa. Ele marcou um encontro com o intendente para dali a três dias.

Durante quarenta e oito horas, viveu na febre da incerteza. Finalmente, escreveu ao sr. de La Mole e compôs, para o monsenhor bispo, uma carta, obra-prima de estilo eclesiástico, mas um pouco longa. Teria sido difícil encontrar frases mais irrepreensíveis e que transmitissem um respeito mais sincero. Todavia, essa carta, destinada a criar uma hora difícil para o sr. de Frilair frente a seu superior, articulava todos os motivos de queixas graves e descia até as pequenas patifarias que, tendo sido suportadas com resignação durante seis anos, forçavam o abade Pirard a abandonar a diocese.

Roubavam lenha do seu depósito, envenenavam seu cão etc. etc. 

Terminada a carta, ele mandou despertar Julien que, às oito da noite, já dormia, assim como todos os seminaristas.

– Sabe onde é a sede do bispado?, disse-lhe num belo estilo latino; leve esta carta ao monsenhor. Não lhe escondo que o envio para junto dos lobos. Seja todo olhos e ouvidos. Nada de mentiras em suas respostas; mas considere que quem o interroga sentiria talvez uma verdadeira alegria em poder prejudicá-lo. Folgo muito de proporcionar-lhe esta experiência antes de deixá-lo, meu filho, pois não lhe escondo: a carta que leva é minha demissão.

Julien permaneceu imóvel, ele gostava do abade Pirard. Em vão a prudência lhe dizia:
Depois que este homem honesto for embora, o partido do Sagrado Coração vai destituir-me e talvez expulsar-me.


Ele não podia pensar em si próprio. O que o embaraçava era uma frase que ele queria formular de uma maneira polida, mas não se sentia com espírito para isso.

– Então, meu amigo, por que não parte?

– É que dizem, disse timidamente Julien, que durante sua longa administração o senhor não fez nenhuma economia. Tenho seiscentos francos.

As lágrimas impediram-no de continuar.

Isso também ficará marcado, disse friamente o ex-diretor do seminário. Vá até a sede do bispado, está ficando tarde.

Quis o acaso que naquela noite o abade de Frilair estivesse de serviço no salão do bispado; o bispo jantava no Palácio do Governo. Foi portanto ao próprio sr. de Frilair que Julien, sem o conhecer, entregou a carta.

Com espanto ele viu o abade abrir ousadamente a carta endereçada ao bispo. A face do vigário-geral logo exprimiu uma surpresa mesclada de vivo prazer, depois mudada em gravidade. Enquanto lia, Julien, impressionado com sua fisionomia, teve tempo de examiná-la. Ela teria mais gravidade sem a finura extrema que se via em certos traços, e que chegaria até a denotar falsidade se o possuidor desse belo rosto se distraísse por um instante. O nariz, muito avançado, formava uma única linha perfeitamente reta, e dava a um perfil, não obstante distinto, uma semelhança irremediável com a fisionomia de uma raposa. De resto, esse abade, que parecia tão ocupado com a demissão do sr. Pirard, vestia-se com uma elegância que agradou muito a Julien, e que ele jamais vira num padre.

Só mais tarde Julien ficou sabendo qual era o talento especial do abade de Frilair. Ele sabia divertir seu bispo, velho amável, feito para morar em Paris, e que via Besançon como um exílio. Esse bispo tinha uma péssima visão e gostava apaixonadamente de peixe. O abade de Frilair tirava as espinhas do peixe que era servido ao monsenhor.

Julien observava em silêncio o abade, que relia a carta de demissão, quando de repente a porta abriu-se com estrépito. Um lacaio, ricamente vestido, passou rapidamente. Julien mal teve tempo de voltar-se para a porta, onde viu um velhinho com uma cruz peitoral. Prosternouse: o bispo dirigiu-lhe um sorriso afável e passou. O abade elegante o acompanhou, e Julien ficou sozinho no salão, cuja magnificência devota pôde admirar à vontade.

O bispo de Besançon, homem de espírito abatido mas não apagado pelos longos sofrimentos da emigração, tinha mais de setenta e cinco anos e pouco se importava com o que aconteceria nos próximos dez anos.

– Quem é o seminarista de olhar fino que acredito ter visto de passagem?, disse o bispo. Eles não devem, segundo meu regulamento, já estar deitados a esta hora?

– Asseguro que este está bem acordado, monsenhor, e traz uma grande notícia: a demissão do único jansenista que restava em vossa diocese. Aquele terrível abade Pirard compreendeu enfim o que falar quer dizer.

– Pois bem, disse o bispo, rindo, desafio o senhor a substituí-lo por um homem à altura dele. E, para mostrar-lhe todo o valor desse homem, vou convidá-lo para almoçar, amanhã.

O vigário-geral quis começar a falar da escolha do sucessor. O prelado, pouco disposto a tocar nesse assunto, disse-lhe:

– Antes de fazer entrar um outro, saibamos um pouco como este vai embora. Faça entrar esse seminarista, a verdade está na boca das crianças.

Julien foi chamado. Estarei entre dois inquisidores, pensou. Ele nunca sentira tanta coragem.

No momento em que entrou, dois camareiros, mais bem-vestidos que o próprio sr. Valenod, despiam o monsenhor. Este, antes de chegar ao sr. Pirard, acreditou dever interrogar Julien sobre seus estudos. Fez perguntas sobre dogma, e ficou surpreso. Logo passou às humanidades, a Virgílio, a Horácio, a Cícero. Esses nomes, pensou Julien, valeram-me a classificação com o número 198. Nada tenho a perder, tentemos brilhar. Foi bem-sucedido; o prelado, ele próprio excelente humanista, ficou encantado.

No jantar no Palácio do Governo, uma moça, justamente célebre, recitara o poema da Madalena. Ele estava querendo falar de literatura, e esqueceu depressa o abade Pirard e todos os problemas, para discutir, com o seminarista, a questão de saber se Horácio era rico ou pobre. O prelado citou várias odes mas às vezes sua memória falhava, e no mesmo instante Julien recitava a ode inteira, com um ar modesto; o que impressionou o bispo é que Julien não saía do tom da conversa; dizia vinte ou trinta versos latinos como se estivesse falando do que se passava no seminário. Falaram longamente de Virgílio, de Cícero. Por fim, o prelado não pôde deixar de fazer um elogio ao jovem seminarista.

– É impossível ter feito melhores estudos.

– Monsenhor, disse Julien, vosso seminário pode vos oferecer cento e noventa e sete motivos mais dignos de vossa alta aprovação.

– Como?, perguntou o prelado, surpreso com o número.

– Posso basear numa prova oficial o que tenho a honra de dizer diante do monsenhor. No exame anual do seminário, respondendo precisamente sobre as matérias que me valem, neste momento, vossa aprovação, obtive o número 198.

– Ah! É o benjamim do abade Pirard, exclamou o bispo, rindo e olhando para o abade de Frilair; devíamos esperar por isso; mas é um combate leal. Então, meu amigo, acrescentou dirigindo-se a Julien, fizeram-no acordar para enviá-lo até aqui?

– Sim, monsenhor. Saí do seminário uma única vez, para ajudar o padre Chas-Bernard a enfeitar a catedral, na festa de Corpus Christi.

Optime, disse o bispo; então foi você que demonstrou tanta coragem, colocando os buquês de plumas sobre o dossel? Eles me fazem tremer a cada ano; receio sempre que me custem a vida de um homem. Meu amigo, você irá longe; mas não quero deter sua carreira, que será brilhante, deixando-o morrer de fome.

E, por ordem do bispo, trouxeram biscoitos e vinho de Málaga, dos quais Julien serviu-se à vontade, e mais ainda o abade de Frilair, que sabia que seu bispo gostava de ver comerem alegremente e com bom apetite.

O prelado, cada vez mais contente com o final de sua noitada, falou por um momento de história eclesiástica. Viu que Julien não compreendia nada. Passou a falar sobre o estado moral do império romano, sob os imperadores do século de Constantino.

O fim do paganismo era acompanhado daquele estado de inquietude e de dúvida que, no século XIX, desola os espíritos tristes e entediados. O monsenhor notou que Julien ignorava quase até o nome de Tácito.

Julien respondeu com candura, ante o espanto do prelado, que esse autor não se achava na biblioteca do seminário.

– Fico realmente aliviado, disse o bispo alegremente. Você me tira de um embaraço: há dez minutos procuro um meio de agradecê-lo pela noitada agradável que me proporcionou, e certamente de um modo bastante imprevisto. Eu não esperava encontrar um doutor num aluno de meu seminário. Embora não seja muito canônico, quero presenteá-lo com um Tácito.

O prelado mandou trazer oito volumes muito bem encadernados, e quis escrever ele próprio, sobre o título do primeiro, uma saudação latina a Julien Sorel. O bispo orgulhava-se de seu latim; terminou por dizer-lhe, num tom sério, que contrastava inteiramente com o do resto da conversa:

– Jovem, se tiver juízo, um dia terá a melhor paróquia de minha diocese, e não a cem léguas do palácio episcopal; mas é preciso ter juízo.

Julien, carregado de seus volumes, retirou-se, muito espantado, quando soava a meia-noite.

O monsenhor não lhe dissera uma palavra sobre o abade Pirard. Julien estava espantado sobretudo com a extrema polidez do bispo. Não fazia ideia de maneiras tão elegantes, reunidas a um ar de dignidade tão natural. Ficou ainda mais impressionado com o contraste, ao rever o austero abade Pirard que o esperava, impaciente.

Quid tibi dixerunt? (Que te disseram?), disse-lhe com uma voz forte, assim que o avistou de longe.

Julien embaraçou-se um pouco ao traduzir em latim as palavras do bispo.

– Fale francês e repita as palavras mesmas do monsenhor, sem acrescentar nem suprimir nada, disse o ex-diretor do seminário, com seu tom duro e suas maneiras profundamente deselegantes.

Soavam duas horas quando, após um relato bem detalhado, ele permitiu a seu aluno favorito retornar a seu quarto.

– Deixe comigo o primeiro volume de seu Tácito, onde está a saudação do monsenhor, disse. Depois de minha partida, esta linha latina será seu para-raios nesta casa.

Erit tibi, fili mi, successor meus tanquam leo quaerens quem devoret. (Pois para ti, meu filho, meu sucessor será como um leão furioso e que busca devorar.)

Na manhã seguinte, Julien percebeu algo de estranho na maneira como seus colegas lhe falavam. Fez-se ainda mais reservado. Eis o efeito da demissão do sr. Pirard, pensou. Ela é conhecida de toda a casa e sou tido por seu favorito. Deve haver insulto nessas maneiras. Mas ele não chegava a vê-lo. Ao contrário, havia ausência de ódio nos olhos de todos aqueles que encontrava ao longo dos dormitórios. Que significa isso? Decerto é uma armadilha, sejamos cautelosos. Finalmente, o jovem seminarista de Verrières disse-lhe, rindo: Cornelii Taciti opera omnia (obras completas de Tácito).

A essa frase, que foi ouvida, todos quiseram ser os primeiros a cumprimentar Julien, não apenas pelo magnífico presente que recebera do monsenhor, mas também pela conversação de duas horas com que fora honrado. Sabiam até os menores detalhes. A partir desse momento, não houve mais inveja; passaram a cortejá-lo servilmente. O padre Castanède, que ainda na véspera tratava-o com insolência, veio pegá-lo pelo braço e convidá-lo a almoçar.

Por uma fatalidade do caráter de Julien, a insolência desses indivíduos grosseiros causara-lhe muita pena: a baixeza deles causou-lhe aversão e não prazer.

Por volta do meio-dia, o abade Pirard despediu-se de seus alunos, não sem antes dirigir-lhes uma severa alocução.

– Quereis as honrarias do mundo, disse-lhes, todas as vantagens sociais, o prazer de comandar, o de zombar das leis e ser impunemente insolente para com todos? Ou quereis vossa salvação eterna? Os menos esclarecidos dentre vós precisam apenas abrir os olhos para distinguir os dois caminhos.

Assim que ele partiu, os devotos do Sagrado Coração de Jesus foram entoar o Te Deum na capela. Ninguém no seminário levou a sério a alocução do ex-diretor. Ele está muito mal-humorado com sua demissão, diziam por toda parte. Nem um só seminarista teve a simplicidade de acreditar na demissão voluntária de um cargo que proporcionava tantas relações com grandes fornecedores.

O abade Pirard foi para a melhor hospedaria de Besançon e, a pretexto de negócios que não tinha, quis ficar ali dois dias.

O bispo convidara-o para jantar e, para zombar do vigário-geral de Frilair, procurava enaltecê-lo. Estavam na sobremesa quando chegou de Paris a estranha notícia de que o abade Pirard fora nomeado para a magnífica paróquia de N..., a quatro léguas da capital. O bom prelado felicitou-o sinceramente. Viu em todo aquele caso uma boa manobra que o deixou de bom humor e elevou seu conceito sobre os talentos do abade. Deu-lhe um certificado latino magnífico e impôs silêncio ao abade de Frilair, que se permitia algumas censuras.

À noite, o monsenhor levou sua admiração à casa da marquesa de Rubempré. Foi uma grande notícia para a alta sociedade de Besançon; faziam conjeturas sobre esse favor extraordinário. Viam já o abade Pirard como bispo. Os mais atilados imaginaram o sr. de La Mole ministro, e permitiram-se naquele dia sorrir dos ares imperiais que o abade de Frilair exibia nas rodas sociais.

No dia seguinte de manhã, quase seguiam o abade Pirard pelas ruas, e os comerciantes vinham até a porta de suas lojas quando ele foi falar com os juízes do marquês. Pela primeira vez foi recebido com polidez. O severo jansenista, indignado com tudo o que via, instruiu longa mente os advogados que escolhera para o marquês de La Mole e partiu para Paris. Teve a fraqueza de dizer a dois ou três amigos de colégio, que o acompanhavam até a caleche cujos brasões admiraram, que, após ter administrado o seminário durante quinze anos, deixava Besançon com cento e vinte francos de economias. Esses amigos o abraçaram chorando e disseram entre si: o bom abade poderia ter-se poupado essa mentira e também o ridículo.

As pessoas vulgares, cegas pelo amor ao dinheiro, não podiam compreender que era em sua sinceridade que o abade Pirard encontrara a força necessária para lutar sozinho, durante seis anos, contra Maria Alacoque, a Congregação do Sagrado Coração de Jesus, os jesuítas e seu bispo.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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