segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XL - [Deus Esculturou-te]

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







[DEUS ESCULTUROU-TE]
                                      À grandiosa atrizinha brasileira Julieta dos Santos,
                                       homenagem no dia do seu benefício.


                                       Isto pensava, isto escrevo;
                                       Isto tinha n’alma, isto vai no papel,
                                       Que d’outro modo não sei escrever.
                                       (Alm. Garrett)


Deus esculturou-te no molde das auroras
Ó misto de prodígio, herdeira dos assombros
E soube colocar-te por sobre os débeis ombros
Dos mundos do ideal, as músicas sonoras!

Cravou-te nessa fronte o gênio que fulmina.
Dos astros fez-te os olhos, os risos de alvoradas
E deu-te o vaporoso das grandes matinadas
A maga compleição talmática, divina!

E disse-te: ao tablado!... eleva-te, arrebata
A alma de granito suplanta-a, dilata...
Reergue-te na luz, exalta-te, deslumbra!...

E mostra as mil falanges de bravos, hodiernas
As tuas criações quais mágicas lanternas
Deixando todo o orbe envolto na penumbra.


                                                           17 de janeiro de 1883.






ASPIRAÇÃO


Tu és a estrela e eu sou o inseto triste!
Vives no Azul, em cima nas esferas,
No centro das risonhas primaveras
Onde por certo o amor eterno existe.

E nem de leve a glória vã me assiste
De erguer o voo às olímpicas quimeras
Do teu brilho ideal, lá onde imperas
Nesse esplendor a que ninguém resiste.

Enquanto te fulgires nas alturas
Eu errarei nas densas espessuras,
Da terra sobre a rigidez de asfalto.

Embalde o teu clarão me enleva e clama!
Mas como a ti voarei, se senti a chama,
Sou tão pequeno e o céu tão alto?







ABSTRAÇÃO


Cava, investiga a fonte dos instintos,
Da grande Ciência prodigiosa e viva...
Busca na escura Idade primitiva,
Desce aos antigos, fundos labirintos.

Que nunca mais como apertados cintos
De aço, tu tragas a razão cativa;
Que sintas cada vez mais expressiva
A luz, e os erros para sempre extintos.

Porém por mais que tanto te aprofundes
Que a humanidade, os séculos inundes
Com toda a ciência que o teu crânio encerra;

Sempre terás, homem moderno, a mágoa
Do princípio de tudo – como o da água
Que livre sai do coração da terra.






_______________________


De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



______________________


Leia também:


Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXV - Visão Medieva
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVI - Vanda
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVII - Êxtase
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVIII - A Partida
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIX - Manhã
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXX - Aspiração
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXI - Pássaro Marinho
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXII - Magnólia dos trópicos
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIII - Os Mortos
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIV - Horas de sombra
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXV - Vozinha
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXVI - Repouso
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXVII - Harpas Eternas
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXVIII - Entre Chamas...
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIX - [Brancas Aparições]
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XLI - Asas de Ouro

Nenhum comentário:

Postar um comentário