Diante da Dor dos Outros
continuando....
Edmund Gosse, em Pai e filho (1907), suas memórias da infância passada na Inglaterra em meados do século XIX, relata como a Guerra da Criméia penetrou até no ambiente da sua família rigidamente religiosa e devota, ligada a uma seita evangélica chamada Irmandade de Plymouth:
A declaração de guerra contra a Rússia trouxe o primeiro sopro de vida exterior para o nosso claustro calvinista. Meus pais assinaram um jornal diário, o que nunca haviam feito, e fatos em locais pitorescos, que meu pai e eu íamos procurar no mapa, eram debatidos com ardor.
A guerra era, e ainda é, a notícia mais irresistível — e pitoresca. (Junto com este inestimável sucedâneo da guerra, o esporte internacional.) Mas aquela guerra era mais do que notícia. Era má notícia. O abalizado, e não ilustrado, jornal londrino a que os pais de Gosse sucumbiram, The Times, atacava os líderes militares cuja incompetência fora responsável pelo prolongamento da guerra, motivo de tantas perdas de vidas inglesas. O número de baixas devido a outras causas que não o combate era aterrador — 22 mil soldados morreram em razão de doenças; muitos milhares perderam pernas e braços devido ao congelamento e à gangrena durante o longo inverno russo em que ocorreu o demorado sítio a Sebastopol — e muitos combates redundaram em desastre. Ainda era inverno quando Fenton chegou à Criméia para uma estada de quatro meses, depois de fechar um contrato para publicar suas fotos (na forma de estampas) em um jornal semanal menos tradicional e menos crítico, The Illustrated London News, expor as fotos em uma galeria e comercializá-las em forma de livro, quando voltasse à Inglaterra.
Instruído pelo Ministério da Guerra a não fotografar os mortos, os mutilados e os doentes, e impedido de fotografar a maioria dos demais temas em virtude da precária tecnologia da fotografia na época, Fenton não se acanhou de apresentar a guerra como uma honrosa excursão em grupo exclusivamente para homens. Como cada imagem demandava uma preparação química individual na câmara escura e um tempo de exposição de não menos de quinze segundos, Fenton só podia fotografar oficiais ingleses em confabulações ao ar livre, ou soldados comuns cuidando dos canhões, depois de lhes pedir que ficassem juntos, de pé ou sentados, seguissem suas instruções e não saíssem do lugar. Suas fotos são quadros vivos da vida militar atrás das linhas de frente; a guerra — movimento, desordem, drama — permanece longe da câmera. A única foto tirada por Fenton na Criméia que ultrapassa a documentação benévola é “O vale da sombra da morte”, cujo título evoca o consolo oferecido pelo salmista bíblico bem como a desgraça ocorrida no mês de outubro precedente, quando seiscentos soldados britânicos foram atacados de emboscada na planície acima de Balaklava — Tennyson chamou o local de “o vale da morte”, no poema que escreveu em memória aos soldados mortos, “A carga da Brigada Ligeira”. A foto de Fenton, em memória aos soldados mortos, é um retrato em ausência: a morte sem os mortos. É a única foto que não precisaria ser posada, pois mostra apenas uma estrada larga, sulcada por rodas, atulhada de pedras e balas de canhão, que descreve uma curva através de uma planície árida e ondulada, rumo ao vazio distante.
Uma coleção mais corajosa de imagens de morte e devastação pós-batalha, que denotam não as baixas sofridas mas uma destemida intimação dirigida ao poder militar britânico, foi feita por outro fotógrafo que esteve na Guerra da Criméia. Felice Beato, um inglês naturalizado (nascido em Veneza), foi o primeiro fotógrafo a testemunhar várias guerras: além de estar na Criméia em 1855, esteve na Rebelião de Sepoy (chamada pelos ingleses de Motim Indiano) em 1857-58, na segunda Guerra do Ópio, na China, em 1860, e nas guerras coloniais sudanesas, em 1885. Três anos depois de Fenton ter feito suas imagens anódinas de uma guerra que não correu nada bem para os ingleses, Beato festejava a feroz vitória do exército britânico contra um motim de soldados nativos indianos, que se achavam sob o comando dos ingleses, o primeiro desafio mais sério ao domínio britânico na Índia. A foto impressionante tirada por Beato do palácio Sikandarbagh devastado pelo bombardeio britânico, em Lucknow, mostra o pátio coalhado de ossos de rebeldes.
A primeira tentativa em grande escala de documentar uma guerra foi levada a efeito poucos anos depois, durante a Guerra Civil Americana, por uma empresa de fotógrafos nortistas, liderada por Mathew Brady, que fizera retratos oficiais do presidente Lincoln. As fotos de guerra de Brady — em sua maioria, tiradas por Alexander Gardner e Timothy O’Sullivan, embora o patrão deles haja sempre recebido o crédito — mostravam temas convencionais, como acampamentos povoados por oficiais e por soldados de infantaria, cidades em estado de guerra, material bélico, embarcações e também, com enorme celebridade, soldados mortos da União e da Confederação, estirados no solo devastado de Gettysburg e Antietam. Embora o acesso ao campo de batalha representasse um privilégio concedido a Brady e sua equipe pelo próprio Lincoln, os fotógrafos não tinham uma missão oficial, como no caso de Fenton. Sua situação se desdobrou de um modo mais americano, com o patrocínio nominal do governo cedendo espaço para a força de motivações empresariais e autônomas.
A primeira justificativa para as fotos brutalmente claras, que obviamente violavam um tabu, residia no puro dever de registrar. “A câmera é o olho da história”, teria dito Brady. E a história, evocada como uma verdade inapelável, se aliava ao crescente prestígio de uma certa ideia de temas que demandavam maior atenção, conhecida como realismo — ideia que, em breve, viria a ter mais defensores entre romancistas do que entre fotógrafos.[1] Em nome do realismo, permitia-se — exigia-se — que se mostrassem fatos desagradáveis, brutais. Fotos desse tipo também transmitem “uma moral útil” ao mostrar “o puro horror e a realidade da guerra, em oposição à sua pompa” — escreveu Gardner no texto que acompanha a foto tirada por O’Sullivan, de soldados confederados caídos, com os rostos em agonia voltados para o espectador, no álbum de fotos dele e de outros fotógrafos da firma de Brady, publicado após a guerra. (Gardner deixou a firma de Brady em 1863.) “Aqui estão os detalhes pavorosos! Que sirvam para impedir que outra calamidade como esta desabe sobre a nação.” Mas a franqueza das fotos mais memoráveis em Gardner’s Photographic Sketch Book of The War (1866) não significava que ele e seus colegas houvessem necessariamente fotografado seus temas da forma como os encontraram. Fotografar era compor (no caso de temas vivos, posar), e o desejo de dispor melhor os elementos da foto não desaparecia porque o tema estava imobilizado, ou era imóvel.
[1] O atenuante realismo das fotos de soldados mortos, estirados no campo de batalha, é dramatizado no romance A marca rubra da coragem, em que tudo é visto através da consciência aturdida e aterrorizada de alguém que poderia muito bem ter sido um daqueles soldados. O romance aguçadamente visual, monovocal e antibelicista de Stephen Crane — publicado em 1895, trinta anos após o fim da guerra (Crane nasceu em 1871) — está a uma enorme e simplificadora distância emocional do contemporâneo e multiforme tratamento que Walt Whitman dispensou ao “incidente vermelho” da guerra. Em Drum- Taps, ciclo de poemas de Whitman publicado em 1865 (mais tarde enfeixado no livro Folhas da relva), muitas vozes são chamadas a falar. Embora nada entusiástico a respeito dessa guerra, que ele igualava a um fratricídio, e a despeito de toda a sua dor com os sofrimentos de ambos os lados, Whitman não pôde deixar de ouvir a música épica e heroica da guerra. Seu ouvido o manteve marcial, ainda que ao seu modo generoso, complexo e amoroso.
continua pág 142...
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
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