Diante da Dor dos Outros
3.
O que significa protestar contra o sofrimento, como algo distinto de reconhecer sua existência?
A iconografia do sofrimento tem uma longa linhagem. Os sofrimentos mais comumente considerados dignos de ser representados são aqueles tidos como frutos da ira, divina ou humana. (O sofrimento decorrente de causas naturais, como enfermidades ou parto, é escassamente representado na história da arte; o sofrimento causado por acidente quase não é representado — como se não existisse sofrimento causado por descuido ou por má sorte.) A escultura de Laocoonte e seus filhos a se retorcerem, as inúmeras versões da Paixão de Cristo em pintura e em escultura e o inesgotável catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires cristãos — essas são seguramente obras destinadas a comover e estimular, instruir e dar exemplo. O espectador pode condoer-se ante a dor do sofredor — e, no caso dos santos cristãos, sentir-se admoestado ou encorajado pela fé e pela força moral exemplares —, mas esses são destinos situados além da lástima e da controvérsia.
Parece que a fome de imagens que mostram corpos em sofrimento é quase tão sôfrega quanto o desejo de imagens que mostram corpos nus. Durante muitos séculos, na arte cristã, imagens do inferno proporcionavam essa dupla satisfação elementar. Às vezes, o pretexto podia ser uma narrativa bíblica de decapitação (Holofernes, João Batista), lendas de massacres (os meninos judeus recém-nascidos, as 11 mil virgens) ou algo do tipo, mas investidos da condição de um fato histórico real e de um destino implacável. Havia também o repertório de crueldades difíceis de olhar de frente, oriundas da antiguidade clássica; os mitos pagãos, mais ainda do que as histórias cristãs, oferecem pratos para todos os gostos. Não há nenhuma acusação moral que recai sobre a representação dessas crueldades. Apenas uma provocação: você é capaz de olhar para isso? Existe a satisfação de ser capaz de olhar para a imagem sem titubear. Existe o prazer de titubear.
Tremer ante a imagem criada por Goltzius na sua gravura em água-forte O dragão devorando os companheiros de Cadmo (1588), que mostra o rosto de um homem sendo abocanhado e arrancado do resto da cabeça, é muito diferente de tremer ante a foto de um veterano da Primeira Guerra Mundial cujo rosto foi destroçado por tiros. Um horror tem seu lugar numa cena complexa — figuras numa paisagem — que dá conta do engenho visual e manual do artista. O outro horror é o registro de uma câmera, feito bem de perto, o registro da indescritível e horrenda mutilação de um ser humano; isso e mais nada. Um horror inventado pode ser completamente avassalador. (Eu, por exemplo, acho difícil olhar a célebre pintura de Ticiano que representa o esfolamento de Mársias ou, na verdade, qualquer pintura sobre esse tema.) Mas, além de choque, sentimos vergonha ao olhar uma foto em close de um horror real. Talvez as únicas pessoas com direito a olhar imagens de sofrimento dessa ordem extrema sejam aquelas que poderiam ter feito algo para minorá-lo — digamos, os médicos do hospital militar onde a foto foi tirada — ou aquelas que poderiam aprender algo com a foto. Os restantes de nós somos voyeurs, qualquer que seja o nosso intuito.
Em cada exemplo, o horripilante nos convida a ser ou espectadores ou covardes, incapazes de olhar. Aqueles que têm estômago para olhar representam um papel autorizado por numerosas e célebres representações de sofrimento. O tormento, um tema canônico da arte, é não raro representado nas pinturas como um espetáculo, algo contemplado (ou ignorado) por outras pessoas. Subentende-se: não, isto não pode ser evitado — e a mistura de observadores atentos e desatentos sublinha essa ideia.
O costume de representar sofrimentos atrozes como algo para ser deplorado e, se possível, suprimido ingressa na história das imagens por meio de um tema específico: os sofrimentos padecidos por uma população civil nas mãos de um exército vitorioso e em furor. Trata-se de um tema essencialmente secular, que surge no século XVII, quando as reordenações de poder tornaram-se matéria para os artistas. Em 1633, Jacques Callot publicou uma série de dezoito gravuras em água-forte intituladas Les misères et les malheurs de la guerre (As misérias e os infortúnios da guerra), que representavam as atrocidades cometidas contra civis pelas tropas francesas durante a invasão e a ocupação da sua Lorraine natal, no início da década de 1630. (Seis pequenas gravuras sobre o mesmo tema, feitas por Callot antes da série maior, surgiram em 1635, ano da sua morte.) A concepção é ampla e profunda; trata-se de cenas com muitas figuras, cenas de uma história; e cada legenda é um comentário sentencioso, em versos, sobre as diversas energias e os diversos destinos retratados nas imagens. Callot começa com uma ilustração que mostra o recrutamento de soldados; põe em cena o combate feroz, o massacre, a pilhagem e o estupro, as máquinas de tortura e de execução (estrapada, forca, pelotão de fuzilamento, pelourinho, roda), a vingança dos camponeses contra os soldados; e termina com uma distribuição de recompensas. A insistência, gravura após gravura, na selvageria de um exército conquistador é espantosa e sem precedentes, mas os soldados franceses são apenas os principais malfeitores na orgia de violência e, na sensibilidade humanista cristã de Callot, há espaço não só para lamentar o fim do Ducado Independente de Lorraine como também para registrar os apuros dos soldados desamparados, após a guerra, que se põem de cócoras à margem de uma estrada, pedindo esmolas.
continua pág 117...
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
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