quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (03)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag




O HEROÍSMO DA VISÃO (03)






continuando...


Enquanto a maioria das pessoas que tiram fotos está apenas reforçando ideias aceitas sobre o belo, profissionais ambiciosos creem, em geral, contestá-las. Segundo modernistas heroicos como Weston, a aventura do fotógrafo é elitista, profética, subversiva, reveladora. Os fotógrafos afirmavam levar a efeito a tarefa blakiana de purificar os sentidos, “revelar aos outros o mundo vivo à sua volta”, como Weston descreveu sua própria obra, “mostrar-lhes aquilo que seus olhos insensíveis perderam”.

Embora Weston (como Strand) também afirmasse ser indiferente à questão de saber se a fotografia é uma arte, suas exigências quanto à fotografia ainda continham todas as suposições românticas sobre o fotógrafo como Artista. Na segunda década do século xx, alguns fotógrafos apropriaram-se ousadamente da retórica de uma arte de vanguarda: armados de câmeras, eles travavam uma dura batalha contra as sensibilidades conformistas, atendendo plenamente aos apelos de Pound no sentido de “renovar”. A fotografia, e não a “pintura mole e sem entranhas”, diz Weston com um desdém viril, está mais bem equipada para “sondar o espírito do nosso tempo”. Entre 1930 e 1932, os diários de Weston, ou Daybooks, estão repletos de premonições efusivas de mudanças iminentes e de declarações sobre a importância da terapia de choque visual que os fotógrafos administravam. “Velhos ideais desmoronam de todos os lados, e a precisa e indiferente visão da câmera é, e será cada vez mais, uma força mundial na reavaliação da vida.”

A noção de Weston sobre o agon do fotógrafo partilha muitos temas com o vitalismo heroico da década de 1920, popularizado por D. H. Lawrence: afirmação da vida sensual, ira contra a hipocrisia sexual da burguesia, defesa farisaica do egotismo a serviço da própria vocação espiritual, apelos viris em prol de uma união com a natureza. (Weston chama a fotografia de “um modo de autodesenvolvimento, um meio de descobrir-se e de identificar-se com todas as manifestações de formas básicas — com a natureza, com a fonte”.) Mas, enquanto Lawrence desejava restabelecer o conjunto da apreciação sensorial, o fotógrafo — mesmo um fotógrafo cujas paixões parecem tão reminiscentes das paixões de Lawrence — insiste forçosamente na preponderância de um sentido: a visão. E, ao contrário do que Weston afirma, o hábito da visão fotográfica — de olhar a realidade como uma série de fotos potenciais — cria, em lugar de uma união, um rompimento com a natureza.

A visão fotográfica, quando se examinam suas aspirações, revela-se sobretudo a prática de um tipo de visão dissociativa, um hábito subjetivo reforçado pelas discrepâncias objetivas entre o modo como a câmera e o olho humano focalizam e julgam a perspectiva. Essas discrepâncias foram bastante notadas pelo público nos primeiros tempos da fotografia. Assim que começaram a pensar fotograficamente, as pessoas pararam de falar de distorção fotográfica, como então se chamava. (Hoje, como observou William Ivins, Jr., as pessoas de fato buscam tais distorções.) Assim, um dos êxitos mais duradouros da fotografia foi sua estratégia de transformar seres vivos em coisas, e coisas em seres vivos. As pimentas que Weston fotografou em 1929 e 1930 são voluptuosas de um modo que raramente acontece em suas fotos de mulheres nuas. Tanto os corpos nus como as pimentas são fotografados pelo jogo de formas — mas o corpo é mostrado, caracteristicamente, curvado sobre si mesmo, todas as extremidades cortadas, a carne tão opaca quanto o permitem a iluminação e o foco, reduzindo assim sua sensualidade e elevando o caráter abstrato da forma do corpo; a pimenta é vista em close mas em sua inteireza, a pele lustrosa ou oleosa, e o resultado é uma descoberta da sugestão erótica de uma forma ostensivamente neutra, uma ampliação de sua palpabilidade aparente.

Foi a beleza das formas na fotografia industrial e científica que deslumbrou os projetistas da escola da Bauhaus, e, de fato, a câmera registrou poucas imagens formalmente mais interessantes do que aquelas produzidas por metalurgistas ou cristalógrafos. Mas a maneira de tratar a fotografia proposta pela Bauhaus não prevaleceu. Hoje, ninguém supõe que a beleza revelada nas fotos esteja condensada na microfotografia científica. Segundo a tradição dominante do belo na fotografia, a beleza requer a marca de uma decisão humana: a decisão de que isso daria uma boa foto e de que a boa foto formularia um comentário. Constatou-se que revelar a forma elegante de uma privada, tema de uma série de fotos feitas por Weston no México, em 1925, era mais importante do que a magnitude poética de um floco de neve ou de um fóssil de carvão.

Para Weston, a beleza em si era subversiva — como pareceu se confirmar quando algumas pessoas se escandalizaram com seus nus ambiciosos. (De fato, foi Weston — seguido por André Kertész e Bill Brandt — que tornou respeitável a foto de nus.) Hoje, os fotógrafos tendem antes a enfatizar a humanidade comum de suas revelações. Embora os fotógrafos não tenham deixado de procurar a beleza, não se crê mais que a fotografia, sob a égide da beleza, produza uma ruptura psíquica. Modernistas ambiciosos, como Weston e Cartier-Bresson, que entendem a fotografia como um modo genuinamente novo de ver (preciso, inteligente e até científico), foram contestados por fotógrafos de uma geração posterior, como Robert Frank, que almejam para a câmera um olhar que não seja penetrante, mas sim democrático, que não reivindique estabelecer novos padrões de visão. A afirmação de Weston de que “a fotografia retirou as vendas para uma nova visão do mundo” parece típica das esperanças excessivamente oxigenadas do modernismo, em todas as artes, durante a primeira terça parte do século XX — esperanças abandonadas a partir de então. Embora a câmera tenha de fato produzido uma revolução psíquica, ela certamente não se deu no sentido positivo e romântico que Weston imaginava.

Na proporção em que a fotografia de fato descasca o envoltório seco da visão rotineira, cria um outro hábito de ver: intenso e frio, solícito e desprendido; encantado pelo detalhe insignificante, viciado na incongruência. Mas a visão fotográfica tem de ser constantemente renovada por meio de novos choques, seja de tema, seja de técnica, de modo a produzir a impressão de violar a visão comum. Pois, desafiada pelas revelações dos fotógrafos, a visão tende a se acomodar às fotos. O ponto de vista de vanguarda de Strand, na década de 1920, e de Weston, no final da década de 1920 e início da de 1930, foi rapidamente assimilado. Seus rigorosos estudos em close de plantas, conchas, folhas, árvores murchas, algas, troncos levados pelo rio, pedras erodidas, asas de pelicano, raízes nodosas de cipreste e mãos nodosas de trabalhadores tornaram-se clichês de um modo de ver meramente fotográfico. Aquilo que, antes, demandou um olho muito inteligente para enxergar, agora qualquer um pode ver. Instruídos por fotos, todos são capazes de visualizar esse conceito outrora puramente literário, a geografia do corpo: por exemplo, fotografar uma mulher grávida de modo que seu corpo pareça um morro, fotografar um morro de modo que pareça o corpo de uma mulher grávida.

Uma familiaridade maior não explica, de todo, por que certas convenções de beleza se desgastam ao passo que outras perduram. O desgaste é moral, bem como perceptual. Strand e Weston jamais imaginariam como essas ideias de beleza poderiam tornar-se banais, embora isso pareça inevitável quando se insiste — como fez Weston — em um ideal de beleza tão maleável como é a perfeição. Enquanto o pintor, segundo Weston, sempre “tentou aperfeiçoar a natureza por uma autoimposição”, o fotógrafo “provou que a natureza oferece um número interminável de ‘composições’ perfeitas — ordem em toda parte”. Por trás da atitude beligerante dos modernistas em favor de um purismo estético, encontra-se uma aceitação do mundo espantosamente generosa. Para Weston, que passou a maior parte de sua vida fotográfica no litoral da Califórnia, perto de Carmel, a Walden da década de 1920, era relativamente fácil achar beleza e ordem, ao passo que para Aaron Siskind, fotógrafo da geração seguinte à de Strand, e nova-iorquino, que começou a carreira tirando fotos de arquitetura e de tipos humanos da cidade, a questão era criar uma ordem. “Quando faço uma foto”, escreve Siskind, “quero que seja um objeto inteiramente novo, completo e autônomo, cuja condição básica é a ordem.” Para Cartier-Bresson, tirar fotos é “encontrar a estrutura do mundo — regozijar-se no puro prazer da forma”, desvendar que “em todo este caos, existe ordem”. (Talvez seja impossível falar sobre a perfeição do mundo sem soar hipócrita.) Mas exibir a perfeição do mundo era uma ideia de beleza demasiado sentimental, demasiado aistórica, para respaldar a fotografia. Parece inevitável que Weston, mais comprometido com a abstração e com a descoberta de formas do que Strand jamais chegou a ser, produzisse uma obra muito mais limitada do que a de Strand. Assim, Weston nunca se sentiu motivado a produzir uma fotografia socialmente consciente e, exceto no período entre 1923 e 1927, que passou no México, evitou as cidades. Strand, como Cartier-Bresson, sentia-se atraído pela desolação pitoresca e pelos estragos da vida urbana. Mas, mesmo longe da natureza, tanto Strand como Cartier-Bresson (poderíamos citar também Walker Evans) ainda fotografam com o mesmo olhar meticuloso que distingue a ordem em toda parte.

A opinião de Stieglitz, Strand e Weston — de que as fotos deveriam ser, antes de tudo, belas (ou seja, compostas com beleza) — parece, hoje, pobre, obtusa demais diante da verdade da desordem: assim como o otimismo a respeito da ciência e da tecnologia que está por trás das ideias da Bauhaus sobre fotografia parece quase pernicioso. As imagens de Weston, conquanto admiráveis, conquanto belas, tornaram-se menos interessantes para muita gente, ao passo que as fotos tiradas pelos fotógrafos primitivos, ingleses e franceses, de meados do século, e por Atget, por exemplo, despertam mais entusiasmo do que nunca. A avaliação de Atget como “um técnico deficiente”, feita por Weston em seus Daybooks, reflete perfeitamente a coerência da visão de Weston e seu afastamento do gosto contemporâneo. “Os halos destruíram muita coisa e a retificação da cor não é boa”, anota Weston; “seu instinto para o tema é aguçado, mas seu registro é fraco — sua construção, imperdoável [...] muitas vezes, tem-se a impressão de que ele deixou escapar o que mais interessava”. Com sua devoção à reprodução perfeita, Weston carece de gosto contemporâneo, ao contrário de Atget e de outros mestres da tradição popular da fotografia. A técnica imperfeita passou a ser apreciada exatamente porque rompe a entorpecida equação entre Natureza e Beleza. A natureza tornou-se antes um tema de nostalgia e de indignação do que um objeto de contemplação, como se observa na distância de gosto que separa, de um lado, as paisagens majestosas de Ansel Adams (o discípulo mais conhecido de Weston) e a última leva importante de fotos na tradição da Bauhaus, A anatomia da natureza (1965), de Andreas Feininger e, de outro lado, as imagens fotográficas contemporâneas da natureza profanada.

Assim como esses ideais formalistas de beleza parecem, em retrospecto, ligados a um certo estado de ânimo histórico, a saber, o otimismo a respeito da era moderna (a visão nova, a era nova), também o declínio dos padrões da pureza fotográfica representado por Weston e pela escola da Bauhaus acompanhou o relaxamento moral vivido nas décadas recentes. No ânimo histórico atual de desencanto, pode-se extrair cada vez menos sentido da ideia formalista de beleza atemporal. Modelos de beleza mais sombrios, delimitados pelo tempo, tornaram-se predominantes, inspirando uma reavaliação da fotografia do passado; e, numa aparente reação violenta contra o Belo, as gerações recentes de fotógrafos preferem mostrar a desordem, preferem destilar uma anedota, em geral perturbadora, a isolar uma “forma simplificada” (expressão de Weston), em última instância, tranquilizadora. Mas a despeito dos objetivos declarados da fotografia indiscreta, sem pose, não raro tosca, de revelar a verdade e não a beleza, a fotografia ainda embeleza. De fato, o triunfo mais duradouro da fotografia foi sua aptidão para descobrir a beleza no humilde, no inane, no decrépito. De um modo ou de outro, o real tem um páthos. E esse páthos é — beleza. (A beleza dos pobres, por exemplo.)






continua página 60...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."




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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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