quinta-feira, 4 de março de 2021

Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (02)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (02)


continuando...



A câmera é, de fato, o instrumento para “ver rápido”, como afirmou um modernista confiante, Alvin Langdon Coburn, em 1918, fazendo eco à apoteose futurista das máquinas e da velocidade. A atual atitude de dúvida da fotografia pode ser aferida pela recente afirmação de Cartier-Bresson de que ela pode ser rápida demais. O culto do futuro (de uma visão cada vez mais rápida) alterna com o desejo de voltar a um passado mais puro e mais artesanal — quando as imagens ainda tinham um atributo de manufatura, uma aura. A nostalgia de um estado ancestral da atividade fotográfica se encontra subjacente ao atual entusiasmo por daguerreótipos, cartões estereográficos, cartes de visite fotográficas, instantâneos de família, fotos de esquecidos fotógrafos provincianos e comerciais século XIX e início do XX.

Mas a relutância em usar o mais novo equipamento de alta potência não é a única nem, de fato, a mais interessante maneira como os fotógrafos expressam sua atração pelo passado da fotografia. Os anseios primitivistas que plasmam o gosto fotográfico atual são, na verdade, respaldados pelas incessantes inovações tecnológicas da câmera. Pois muitos desses avanços não apenas ampliam os poderes da câmera como também recapitulam — de um modo mais engenhoso, menos complicado — antigas possibilidades da fotografia, descartadas com o tempo. Assim, o desenvolvimento da fotografia depende da substituição do processo do daguerreótipo, em que se aplica diretamente o positivo sobre uma chapa de metal, pelo processo negativo-positivo, por meio do qual se pode obter um número ilimitado de cópias (positivos) a partir de um original (negativo). (Embora criadas simultaneamente em fins da década de 1830, não foi a invenção de Fox Talbot do processo negativo-positivo, mas sim a invenção de Daguerre, apoiada pelo governo e anunciada em 1839 com grande publicidade, que se tornou o primeiro processo fotográfico de uso geral.) Mas agora se pode dizer que a câmera está se voltando sobre os próprios passos. A câmera Polaroid revive o princípio da câmera de daguerreótipo: cada cópia é um objeto único. O holograma (uma imagem tridimensional criada com luz laser) poderia ser considerado uma variante dos heliogramas — as primeiras fotos feitas sem câmera, na década de 1820, por Nicéphore Niepce. E o emprego cada vez mais popular da câmera para produzir diapositivos — imagens que não podem ser expostas em caráter permanente, nem guardadas na carteira e em álbuns, mas que só podem ser projetadas na parede ou no papel (como um subsídio para desenhar) — remonta a uma época ainda mais antiga da pré-história da câmera, pois remete ao uso da câmera fotográfica para cumprir a função da câmera obscura.

“A história está nos empurrando para o limiar de uma era realista”, segundo Abbott, que exorta os fotógrafos a dar o salto por si mesmos. Porém, enquanto os fotógrafos exortam-se perpetuamente uns aos outros a ser mais corajosos, persiste uma dúvida em torno do valor do realismo, que os faz oscilar entre simplicidade e ironia, entre insistir no controle e cultivar o inesperado, entre a sofreguidão para tirar partido da complexa evolução dos equipamentos e o desejo de reinventar a fotografia a partir do zero. Os fotógrafos parecem precisar, periodicamente, resistir a seus conhecimentos e remistificar o que fazem.

Historicamente, questões acerca do conhecimento não figuram na primeira linha de defesa da fotografia. As primeiras controvérsias giravam em torno da questão de saber se a fidelidade da fotografia às aparências e sua dependência de uma máquina a impediam de ser uma das belas-artes — distinta de uma simples arte prática, de um ramo da ciência e de um negócio. (Era óbvio, desde o início, que a fotografia fornecia úteis e, muitas vezes, surpreendentes tipos de informação. Os fotógrafos só passaram a se preocupar com o que sabiam, e com que tipo de conhecimento, num sentido mais profundo, uma foto proporciona, após a fotografia ter sido aceita como uma arte.) Durante um século, a defesa da fotografia se identificou com a luta para estabelecê-la como uma bela-arte. Contra a crítica de que a fotografia era uma cópia mecânica e sem alma da realidade, os fotógrafos alegavam que se tratava de uma revolta de vanguarda contra os padrões comuns de visão, uma arte tão digna quanto a pintura.

Agora, os fotógrafos são mais seletivos em suas pretensões. Desde que a fotografia se tornou inteiramente respeitável como um ramo das belas-artes, eles não buscam mais o abrigo que a ideia de arte proporcionou de forma intermitente à atividade fotográfica. A despeito de todos os importantes fotógrafos americanos que orgulhosamente identificaram sua obra com os objetivos da arte (como Stieglitz, White, Siskind, Callahan, Lange, Laughlin), há outros muito mais numerosos que repudiam a questão em si mesma. Saber se “os produtos de uma câmera se enquadram na categoria de Arte é irrelevante”, escreveu Strand na década de 1920; e Moholy-Nagy declarou ser “totalmente impertinente discutir se a fotografia produz ‘arte’ ou não”. Os fotógrafos que chegaram à maturidade na década de 1940 ou depois são mais ousados, afrontam abertamente a arte, equiparam arte a rebuscamento vazio. Declaram, em geral, estar descobrindo, registrando, observando imparcialmente, testemunhando, explorando a si mesmos — tudo, enfim, menos criando obras de arte. No início, foi o compromisso da fotografia com o realismo que a pôs numa relação perpetuamente ambígua com a arte; agora, é sua herança modernista. O fato de fotógrafos importantes não mais desejarem discutir se a fotografia é ou não uma bela-arte e limitarem-se a proclamar que sua obra não está envolvida com arte mostra a que ponto eles simplesmente consideram como inquestionável o conceito de arte imposto pelo triunfo do modernismo: quanto melhor a arte, mais subverterá os objetivos tradicionais da arte. E o gosto modernista saudou com aplausos essa atividade despretensiosa que, quase a despeito de si mesma, pode ser consumida como arte.

Mesmo no século XIX, quando se julgava que a fotografia carecia, de um modo tão flagrante, ser defendida como uma bela-arte, a linha de defesa nada teve de estável. A tese de Julia Margaret Cameron de que a fotografia se qualifica como arte porque, a exemplo da pintura, almeja a beleza foi seguida pela tese wildiana de Henry Peach Robinson de que a fotografia é uma arte porque pode mentir. No início do século XX, o elogio de Alvin Langdon Coburn à fotografia como “a mais moderna das artes” por ser um modo rápido e impessoal de ver rivalizou com o elogio de Weston à fotografia como um novo meio de criação visual individual. Em décadas recentes, a ideia de arte se exauriu como um instrumento de polêmica; a rigor, boa parte do enorme prestígio adquirido pela fotografia como uma forma de arte decorre de sua declarada ambivalência quanto a se tornar uma arte. Quando os fotógrafos, hoje, negam que fazem obras de arte, a causa é pensarem que fazem algo melhor. Seus repúdios nos revelam mais sobre a condição sitiada de qualquer noção de arte do que sobre ser a fotografia uma arte ou não.

Apesar dos esforços de fotógrafos contemporâneos para exorcizar o fantasma da arte, algo perdura. Por exemplo, quando os profissionais se opõem a ter suas fotos impressas até a borda da página, em livros e revistas, invocam o exemplo de outra arte: assim como as pinturas são postas em molduras, deveriam as fotos ser emolduradas em espaços em branco. Outro exemplo: muitos fotógrafos continuam a preferir imagens em preto e branco, tidas por mais delicadas, mais decorosas do que as imagens em cores — ou menos voyeurísticas, ou menos sentimentais, ou cruamente reais. Mas o verdadeiro fundamento para tal preferência é, mais uma vez, uma comparação implícita com a pintura. Na introdução ao seu livro sobre fotos O momento decisivo (1952), Cartier-Bresson justificou sua resistência ao uso de cores citando limitações técnicas: a baixa velocidade do filme colorido, que reduz a profundidade do foco. Mas, com o rápido progresso da tecnologia do filme colorido nas duas últimas décadas, que permitiu toda a sutileza de tons e toda a alta resolução que se podia desejar, Cartier-Bresson teve de mudar sua argumentação, e agora propõe que os fotógrafos renunciem às cores por uma questão de princípio. Na versão de Cartier-Bresson do persistente mito segundo o qual — após a invenção da câmera — ocorreu uma divisão de territórios entre a fotografia e a pintura, a cor pertence à pintura. Ele recomenda aos fotógrafos que resistam à tentação e mantenham a sua parte do pacto.

Aqueles ainda empenhados em definir a fotografia como uma arte sempre tentam persistir numa linha de argumentação. Mas é impossível persistir na mesma linha: toda tentativa de restringir a fotografia a certos temas ou certas técnicas, por mais frutífera que se revele, está condenada a ser contestada e a sucumbir. Pois é da própria natureza da fotografia ser uma forma de ver promíscua e, em mãos talentosas, um meio de criação infalível. (Como observa John Szarkowski, “um fotógrafo hábil pode fotografar bem qualquer coisa”.) Daí sua antiga desavença com a arte, termo que (até recentemente) designava os frutos de uma forma de ver purificada e discriminatória e um meio de criação regido por padrões que tornavam uma realização genuína uma raridade. De forma compreensível, os fotógrafos têm se mostrado relutantes a desistir da tentativa de definir mais restritamente o que é a boa fotografia. A história da fotografia é marcada por uma série de controvérsias dualistas — como a da cópia direta contra a cópia modificada, ou a da fotografia pictórica contra a fotografia documental —, cada uma delas uma forma distinta do debate sobre a relação entre a fotografia e a arte: até que ponto pode a fotografia se aproximar da arte sem abrir mão de suas pretensões de aquisição visual ilimitada? Recentemente, tornou-se comum afirmar que todas essas controvérsias estão superadas, o que sugere que o debate se encerrou. Mas é improvável que a defesa da fotografia como arte um dia venha a cessar completamente. Enquanto a fotografia não for apenas um modo voraz de ver, mas sim um modo de ver que precisa ter a pretensão de ser especial e distintivo, os fotógrafos continuarão a buscar abrigo (quando não cobertura) no santuário profanado mas ainda prestigioso da arte.

Fotógrafos que, ao tirar fotos, supõem afastar-se das pretensões à arte tal como exemplificadas na pintura fazem-nos recordar aqueles pintores expressionistas abstratos que imaginaram estar afastando-se da arte, ou da Arte, pelo ato de pintar (ou seja, ao tratar a tela como um campo de ação e não como um objeto). E grande parte do prestígio que a fotografia adquiriu recentemente como arte se baseia na convergência de suas pretensões com aquelas da pintura e da escultura mais recente. [1] O apetite aparentemente insaciável por fotografia na década de 1970 expressa mais do que o prazer de descobrir e explorar uma forma de arte relativamente relegada; boa parte de seu fervor decorre do desejo de reafirmar a rejeição da arte abstrata, uma das mensagens do gosto pop da década de 1960. Prestar mais e mais atenção a fotos constitui um grande alívio para sensibilidades cansadas dos esforços mentais exigidos pela arte abstrata, ou ansiosas para evitar tais esforços. A pintura modernista clássica pressupõe habilidades altamente desenvolvidas de olhar, de par com uma familiaridade com outras artes e com certas ideias sobre a história da arte. A fotografia, como a arte pop, tranquiliza os espectadores mostrando que a arte não é difícil; parece ter mais a ver com os temas do que com a arte.


[1] As pretensões da fotografia são, é claro, muito mais antigas. Para a prática, hoje familiar, de substituir a fabricação pelo encontro, substituir objetos ou situações produzidos (ou inventados) por aqueles encontrados, substituir o esforço pela decisão, o protótipo é a arte instantânea da fotografia com a mediação de uma máquina. Foi a fotografia que primeiro pôs em circulação a ideia de uma arte produzida não por meio de gravidez e parto, mas por meio de um encontro marcado com um desconhecido. (A teoria do “rendez-vous”, de Duchamp.) Mas os fotógrafos profissionais são muito menos seguros do que seus contemporâneos influenciados por Duchamp no terreno das belas-artes estabelecidas, e em geral se apressam em sublinhar que uma decisão de momento pressupõe um treino demorado da sensibilidade, do olho, e em insistir que a falta de esforço no ato de tirar fotos não torna o fotógrafo menos artífice do que um pintor.


A fotografia é o mais bem-sucedido veículo do gosto modernista em sua versão pop, com seu zelo para desmascarar a alta cultura do passado (concentrando-se em cacos, lixo, velharias; sem excluir nada); com sua corte consciente à vulgaridade; sua afeição pelo kitsch; sua habilidade para conciliar as ambições da vanguarda com as compensações do comercialismo; seu desprezo pseudorradical da arte como reacionária, elitista, esnobe, insincera, artificial, sem contato com as verdades amplas da vida cotidiana; sua transformação da arte em documento cultural. Ao mesmo tempo, a fotografia incorporou gradualmente todas as inquietações e todos os escrúpulos de uma arte modernista clássica. Muitos profissionais agora se preocupam com terem levado essa estratégia populista longe demais e temem que o público se esqueça de que a fotografia é, afinal, uma atividade nobre e louvável — em suma, uma arte. Pois o incentivo modernista à arte ingênua contém uma cláusula disfarçada no contrato: que se deve continuar a respeitar sua oculta pretensão à sofisticação.


continua página 75...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
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