O Cadáver
do Calçacurta – 3ª edição
revisada
Eu sei, General
baitasar
baitasar
Não
vá o senhor pensar que estou de reclamação. A decisão foi minha. Eu acho.
Enfim, eu concordei com a missão porque era relevante e influente ser o
motorista do General Calçacurta. Um homem sem meios e medidas. Inimigo dos
inimigos, mas não era um antagonista simplório, dedicava aos adversários o
mesmo sentimento que destinava ao diabo, o aniquilamento. Inimigos não eram vítimas, mas perigos que cedo ou tarde chegavam às suas mãos para o estrago final
— Chupa-racha, inimigo bom é aquele que
fica espremido sob a botina até a parada do respiradouro.
Amigo
dos amigos e dos amigos dos amigos. Capaz dos maiores sacrifícios e desatinos
para saciar o contentamento do afeiçoado. Todo indivíduo ajustado as suas
exigências e rotinas era um aliado. Não tinha medidas de controle, amigos eram
crianças que precisava contentar. Eis a realidade das coisas. Era mais vantagem
ter o General como amigo, ser simplório aos seus olhos. Não embaraçar a sombra
da sua justiça com problemas desnecessários.
E
claro, houve outro interesse da minha parte. A cobiça por carros velozes e
furiosos. Outra decisão estúpida. Jamais usei a força de fuga ou perseguição do
seu carrão. Um desperdício, entre tantos, nestes anos de desmandos contra essa
gente subversiva, não usar aquela viatura criada para a velocidade. E não foi
por falta de reza. Rezei, uma ou outra vez, para que o senhor entrasse na viatura
dos seus passeios secretos, foram tantos, e fosse gritando
— Vamos rápido! Siga aquele fusca!
Não
sei por que os subversivos gostavam tanto do Fusca e da Kombi, raramente usaram
outro veículo nos seus ataques criminosos. Não tinham bom gosto nem para os carros
— Toda velocidade, soldado!
Nunca
aconteceu.
O
General entrava na viatura com o olhar perdido em algum assunto distante. A
respiração tranquila, desarmada e despida de qualquer bravura ou contentamento.
Um tempo de acomodação e desprezo com as leis. O senhor era as leis. Ficava em
silêncio. O único ruído vinha do motor frio e rouco. Outras
vezes, o General chegava à viatura com jeito de indecência e travessura. Um
guri malicioso e engraçado. Subia na viatura alisando o bigode, sentava no assento atrás, cheirava os dois dedos do alisamento e soltava um suspiro contraditório, como se a solução dada não fosse do seu desejo, mas esse desconforto não durava nem o tempo do piscar dos olhos, já recuperado da insatisfação, o senhor recomendava
— Devagar, chupa-racha. Não ultrapasse os
limites da via. A lei é para ser cumprida.
Essa
foi uma dúvida que me assaltou naquele abismo de incoerências, General. Nunca
me atrevi, mas deveria ter perguntado
— Qual das leis é para valer, General? —
nunca perguntei, agora não tem mais graça. Mantive a salvo o topo do meu
pescoço. Calado. Os comunistas fascinados pelas lorotas de Moscou
perdiam tudo, o pescoço, os dentes, os dedos, o desfiladeiro dos intestinos. Tagarelas. Aprendi a ficar quieto no meu lugar, atrás do volante da sua viatura, General.
Fiz pouco uso da garganta. Medo? Claro! Apego ao meu próprio conforto. Sou um supervivente
— Chupa-racha! Quem não deve não teme!
Eu
sei, General. Ouvi tanto isso que fiquei surdo para as palavras de coragem que
nos convocam a não temer. Mas o que interessa daqui para frente é a lei do nada.
Chegou o seu tempo de imobilidade enquanto se transforma em nada. E ser coisa
nenhuma é como ser soldado raso, superior ao tempo e inferior à merda. Lembra
disso, General? Soldado raso é boi de piranha
— O que é isso, soldado!
— Eu sei, General! Na guerra alguém
precisa morrer ou não é guerra. É sacanagem! Um dos lados precisa sentir o peso da pólvora do outro lado, experimentar o lodo de sangue da sua gente sob os pés.
Acho
que se o defunto pudesse colocar as mãos em mim nada me sobrava. Por sorte,
acabou esse tempo do Calçacurta torturador, mas a arrogância não lhe saiu da
cara antiquada e retrógrada. Ele é que conhece a conduta da honra, sabe tratar com dignidade e gentileza o privilégio da glória, mas não foi bem assim
— Rapazinho, você nunca fez guerra ou lhe
fizeram guerra. Não saiu do volante porque eu não quis. Impedi que o gosto do
sangue lhe abrisse o apetite. Não se ponha a falar das coisas que só os
guerreiros conhecem e calam.
Poderia
ter encerrado tudo ali, um pequeno discurso patriótico. Ao melhor estilo, ame-o
ou deixe-o. Mas não consegui deixar de provocar o defunto
— Eu sei, General. O bom guerreiro luta
contra outro bom guerreiro, mas sabem que o campo sagrado da luta tem regras que
não podem ser esquecidas, nem o inimigo é abandonado à própria morte. Pode
haver honra na luta entre dois guerreiros, mas é sempre a morte querendo vencer a vida.
O
falecido pareceu recobrar suas energias. O corneteiro soprava no clarim o toque
de reunir e avançar sobre o inimigo
— É isso, soldado! A morte rondava os
filhos da puta! Eu era a morte!
A
questão não é o senhor, General. Essa parte já foi decifrada ou pelo menos vão
sendo desvendados da cegueira coletiva os seus interrogatórios que executava
cientificamente. O prédio do Porão abrigou um dos mais sofisticados aparelhos
de tortura. E o senhor comandava tudo por lá
— Não tinham tratamento de guerra.
A
Convenção de Genebra era a mesma coisa que se não tivesse existido
— Convenção de Genebra? Menos,
chupa-racha. Gostava de variar nos interrogatórios. A pressão psicológica
começava sem as roupas, ficavam apenas com o capuz. Depois vinha afogamento,
pau-de-arara, choques. Gostava do telefone. É muito fácil, um fio na boca e
outro no ouvido. E a descarga. O folclore diz que inventamos o telefone
celular. Bobagem. Você já experimentou a ligação direta? Um fio enfiado na
boquinha do mastro, outro no cu. E a descarga.
É
isso, General. A dificuldade dessa gente toda, que faz festa pela sua morte, é
o fim sem fim que o senhor deu aos seus prisioneiros — Quantos viraram cinzas
em suas mãos?
Pronto,
o defunto levantou. Aos berros, cuspindo as palavras da sua boca flácida,
cambaleante e furiosa
— O que está acontecendo, soldado? Os
postes se puseram a mijar nos cachorros? — não pode continuar, precisou fechar
a boca, os dentes lhe caíram. Pareciam falsos. Hoje, não seria mais reconhecido
pelos dentes. As gengivas retraíram murchas e não seguravam mais a armação.
Quando abria a boca eles resvalavam. Procurou empurrar os dentes com o polegar
direito, mas lhe pareceu que aquele dedo estava morto — Os cachorros é que
mijam nos postes!
O
General gostava de se repetir. Afinal, todos têm algumas coisas que gostamos de
desdizer. Obedecemos aos vícios de distração e gozos refugiados em nós mesmos.
O soldado Jacaré, por exemplo, meu subordinado, a sua estratégia para
sobreviver é obedecer. Acho que não se importa com a compreensão das ordens.
Nunca perguntei. Ordens são ordens. Soldado não precisa compreender. Não
precisa decidir. Obedece, e pronto
— Por que o senhor nunca me deixou entrar
no Porão?
O
defunto já tinha voltado a sua aparência constrangida. Não acho que foi devido
a minha pergunta. É a situação toda. Não deve ser moleza descobrir que morreu, e
depois esse abandono do morto. É embaraçoso. Nenhuma visita, até agora. Mas eles
virão, senhor.
Mirei
o morto nos olhos, continuavam fechados. Encarava a morte. Frente a frente.
Buscava respostas recolhendo as possíveis. Insisti, mais uma vez — O senhor
está em uma posição privilegiada, não tem nenhuma razão para mentir. Pelo
contrário, os mentirosos vão para o inferno.
— E torturador vai para onde, chupa-racha?
— olhei outra vez aquele homem que não era mais homem, um corpo frio e inerte,
as carnes amolecidas começando a desgrudar dos ossos. A boca em silêncio, as
palavras aprisionadas na sua não vida.
Um
zum-zum-zum anunciou a confusão.
Uma
mosca arriou-se no bigode do General. Em seguida, ergueu-se nervosa no ar
desenhando piruetas e desceu na testa do gelado general sem meias de lã.
Escorregou até o nariz, entrou em uma das ventas e sumiu. Entrei em pânico. A
minha primeira reação foi matar a intrusa, um animalzinho deselegante. Procurei
nos bolsos por alguma arma. Nunca tive arma de fogo. O General não achava necessário
que o seu motorista andasse armado
— Eu cuido de mim mesmo. Esses comunistas
não me metem susto.
Encontrei
uma navalha, presente do General. Lembra? Quando completei meu primeiro ano na
sua ajudância. Claro, junto com a arma branca vieram os conselhos
— Caso precise fazer uso, precisa estar
bem perto para melhor eficácia e menor risco. O golpe além de certeiro tem que
ser de surpresa. Como se fosse uma traição. Não pode dar tempo para queixumes.
Sem oposição. — agradeci e guardei no bolso, não tive uso imediato.
Abri
a navalha. Examinei seu fio com meu polegar opositor direito, levemente. Um
pequeno fio de sangue apareceu. Não tinha eficácia melhor que uma baioneta para
um golpe de frente, mas para um golpe que chegue por trás, num despreparo da
vítima, é mortal. Pode-se cortar o pescoço de um lado ao outro. Senti um leve
estremecimento. Fechei a lâmina e guardei a arma golpista no bolso.
Examinei
o local, mas não desatendia a atenção nas ventas do General. Pode que o
animalzinho queira se evadir. Não podia deixar o inimigo ir-se, com certeza
voltava com os reforços. Minhas mãos saiam e entravam nos bolsos. Apalpei e
revisei os bolsos. Uma ou duas vezes. Vazios. Sorrateiro como qualquer patrulha
de reconhecimento fui ao banheiro. Arranquei o rolo de papel higiênico da
parede e voltei ao meu posto. Rápido com um soldado em carga de ataque.
Destaquei uma folha do rolo e amassei, amassei e amassei. Fiz uma bolinha de
papel. Separei outra folha, mais uma bolinha. Enfiei uma bolinha na primeira
venta. O mesmo com a outra bolinha. Enterrei o animalzinho dentro do General.
Agora, não escapa mais. Morre dentro do morto.
Achei
tudo aquilo poético.
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